domingo, 30 de setembro de 2012

A Energia do Vácuo



O leitor que não estiver familiarizado com o vocabulário usado nesta postagem não deve se deixar intimidar. O formalismo matemático envolvido é, de fato, complicado. E a intuição física ainda é obscura para muitos pesquisadores. Mas os resultados apontados são bem reais. O vácuo tem um papel muito ativo na natureza.

A eletrodinâmica quântica (QED, na sigla em inglês) é uma teoria relativista (no sentido de empregar a Relatividade Restrita de Einstein) para certos fenômenos quânticos. Foi a primeira teoria quântica a viabilizar a descrição dos processos de interação entre matéria e campo, algo que vai muito além do escopo da limitada mecânica quântica não-relativista. Na formulação canônica da QED costuma-se descrever uma fonte de fótons ("pacotes" de energia associados a campo eletromagnético) como um oscilador. Este oscilador pode ser matematicamente tratado via uma função conhecida como Hamiltoniano. Tal Hamiltoniano é quantizado, no sentido de que é formulado como um operador que atua sobre um espaço de Fock (uma espécie de espaço de estados que permite descrever sistemas nos quais o número de partículas pode variar) cujos autovalores apresentam uma distribuição discreta (contável). Mesmo quando se assume o caso mais elementar possível, o de um oscilador harmônico simples, percebe-se um fenômeno extremamente bizarro. O oscilador harmônico simples, devidamente quantizado nesta formulação canônica, permite prever inúmeras situações de emissão de fótons. Mas a mais surpreendente é aquela na qual não são gerados fótons, o chamado estado de vácuo. 

É comum os físicos (sejam pesquisadores, autores ou professores) distinguirem mecânica quântica não-relativista de eletrodinâmica quântica da seguinte forma: a primeira lida com fenômenos de baixa energia, enquanto a segunda trata de fenômenos de alta energia. Mas esta visão está evidentemente equivocada. Pois é justamente a eletrodinâmica quântica que permitiu prever, pela primeira vez na história, que o estado de vácuo (aquele no qual mesmo um oscilador harmônico simples não deveria emitir um único fóton) ainda admite uma energia residual não nula. É uma energia muito pequena, mas está lá.

Em 1948, intrigado com esta previsão, o holandês Hendrik Casimir mostrou uma curiosa consequência desta energia do estado do vácuo, descrita no próximo parágrafo.

Considere o caso de duas placas planas perfeitamente condutoras (ou seja, que refletem todos os fótons incidentes), colocadas face-a-face, de modo que a distância entre essas placas paralelas é muito menor do que as dimensões laterais das mesmas. E admita que, entre as placas e ao redor delas, tenhamos um estado de vácuo no ambiente em que elas estão inseridas. Assim como a QED prevê uma energia não nula deste estado de vácuo, também admite um correspondente momento linear não nulo. Como a distribuição dos modos de campo do estado de vácuo entre as placas é discreta (afinal as placas estão muito próximas uma da outra) e a distribuição dos modos de campo deste mesmo estado podem ser considerados como assumindo uma distribuição contínua no restante do espaço ao redor (afinal, as dimensões laterais das placas são muito maiores do que a distância entre elas), temos uma situação em que existe uma diferença detectável de pressão sobre as placas, correspondente à maneira como esses modos de campo se distribuem. A pressão devida ao momento linear associado aos modos de campo entre as placas é inferior à pressão devida ao momento linear associado aos modos de campo que envolvem as placas no restante do espaço. Consequentemente, Casimir previu uma força de atração entre essas superfícies condutoras, a qual é inversamente proporcional à quarta potência da distância entre elas. 

Qualquer matemático que leia esta conclusão perceberá que existe aqui um argumento absurdo. Isso porque a distribuição de modos de campo que envolvem as placas jamais poderia ser tratada como contínua. Se a teoria prevê uma distribuição discreta em qualquer situação, não são condições de contorno (por mais ideais que sejam) que permitem interpretar o discreto como contínuo. Mas o leitor não deve esquecer que física tem um caráter epistemológico radicalmente diferente da matemática. Uma discussão sobre este tema pode ser vista na postagem sobre erros que funcionam muito bem.

De início, a extraordinária previsão de Casimir passou praticamente despercebida entre os físicos. Com o passar dos anos, porém, pesquisadores começaram a dar mais atenção a esta peculiaridade da QED. Mas foi apenas em 1997 que Steve K. Lamoreaux publicou na prestigiadíssima Phyical Review Letters a confirmação experimental de que o efeito Casimir era mensurável em uma região da ordem de 0,6 a 6 micrômetros e com uma margem de erro de 5%. Hoje estes resultados são bem mais precisos. 

Ou seja, os matemáticos podem torcer o nariz a vontade contra o discreto que é tratado como um contínuo. Mas contra fatos não há argumentos. 

Uma vez que os matemáticos fiquem um pouco mais calmos e tolerantes, perguntamos: como modelar matematicamente o efeito Casimir?

Em 1988 Peter W. Milonni e colaboradores propuseram uma interpretação física para o efeito Casimir em termos de pressão de radiação do vácuo. De acordo com eles "os fótons virtuais do vácuo carregam momento linear". Tais fótons seriam chamados de virtuais simplesmente porque não são diretamente detectáveis por chapas fotográficas. Percebe-se, porém, a pressão que eles exercem sobre a matéria. 

Milonni e colegas procederam, então, às contas. A pressão interna sobre as placas é dada por um somatório (distribuição discreta) sobre todos os possíveis modos de campo. Já a pressão externa é dada por uma integral (distribuição contínua). Aplicando a célebre fórmula de Euler-MacLaurin, que estabelece a diferença entre um somatório e a integral da função correspondente (em termos de uma série infinita com coeficientes de Bernoulli) obtém-se (por aproximação dada por um limite) a força de Casimir.

No entanto, as contas que Milonni e colaboradores fizeram não estão em acordo com o discurso empregado por eles mesmos. Todas as contas realizadas se referem, na prática, apenas a pressão de radiação. E o discurso desses pesquisadores envolve partículas chamadas de fótons virtuais. Esta é uma situação extremamente comum em livros e artigos sobre teorias quânticas de campos. Os físicos falam de partículas, mas fazem as contas como se estivessem tratando de campos. Lembro que em um dos seminários organizados por Patrick Suppes, na época em que estive em Stanford, Max Dresden (pesquisador do acelerador de partículas daquela instituição, lamentavelmente falecido em 1997) demonstrou claramente seu ceticismo a respeito desses supostos fótons virtuais.

Por conta disso, Daniel C. Freitas e eu criamos um modelo diferente, cujas contas estão em melhor sintonia com a intuição física de alguns a respeito desses fótons virtuais. Assumimos que os tais fótons virtuais formam, de fato, um gás quântico ao redor e entre as placas perfeitamente condutoras. Fizemos as contas usando ferramentas muito comuns de mecânica estatística e chegamos exatamente ao mesmo resultado, ainda empregando a fórmula de Euler-MacLaurin. 

Este foi um projeto de iniciação científica de Daniel Freitas, quando ele era aluno do Curso de Física da UFPR, que rendeu publicação no International Journal of Applied Mathematics em 2000 (a convite do editor búlgaro Drumi Bainov, o mais prolífico matemático da atualidade, com cerca de 800 artigos em periódicos especializados). 

Neste trabalho Freitas e eu chegamos a discutir brevemente sobre as possíveis distribuições quânticas desses supostos fótons virtuais, os quais, matematicamente falando, podem obedecer à estatística de Fermi-Dirac (absolutamente atípica para fótons, que normalmente obedecem à distribuição de Bose-Einstein). 

O fato é que o mundo microscópico das partículas elementares de matéria e campo ainda é um mistério. E uma das principais críticas que se faz às interpretações que infestam a literatura especializada sobre este mundo microscópico reside na frequente analogia que se promove entre fenômenos quânticos e o emprego de formalismos usados em física clássica. Mas este já é tema para outra postagem futura.

O que eu gostaria mesmo é que a maioria dos alunos deste país fosse tão ativa quanto o vácuo.

sábado, 29 de setembro de 2012

Provando a Segunda Lei de Newton



É claro que qualquer formulação axiomática para a mecânica newtoniana deve, em princípio, permitir a dedução das leis de Newton. E, para tanto, basta que tais leis sejam colocadas na forma de axiomas. Uma vez que todo axioma é teorema em qualquer teoria axiomática, a prova das leis de Newton se torna obviamente trivial. No entanto, o título desta postagem se refere a uma demonstração não trivial da segunda lei de Newton.

Existe um arranjo experimental muito famoso no estudo de mecânica clássica conhecido como a experiência do balde. Imagine um balde parcialmente cheio de água e pendurado por uma corda torcida. Ao soltar o balde, a corda tende a voltar para a sua configuração natural, antes de ser torcida, fazendo com que o balde com água gire. Durante o giro do balde, aos poucos a água tende a acompanhar este movimento, rotacionando também. E quando a água finalmente acompanha o movimento do balde, sua superfície (antes plana) fica curvada. É uma brincadeira muito fácil de fazer em casa.

Ora, se a superfície da água fica curva, em movimento que acompanha a rotação do balde, podemos concluir que esta água está acelerada. A pergunta, portanto, é a seguinte: qual é o agente material que está provocando esta aceleração? Responder a esta pergunta equivale a questionar a origem da inércia. Se nos obrigarmos a considerar que qualquer sistema de referência deve ser material, existem pelo menos três possíveis respostas à pergunta: o balde, o planeta Terra e as estrelas distantes. 

Se a água está acompanhando o movimento do balde, certamente não está acelerada relativamente ao balde. Pelo contrário, ela está parada relativamente a este sistema. Portanto, o balde em si não justifica a curvatura da superfície da água.

Como o balde está pendurado por uma corda torcida, fixa em relação à Terra, podemos pensar em nosso planeta como referencial. No entanto, a única força que a Terra exerce sobre a água é a gravitacional, a qual aponta para baixo. No entanto, a curvatura da superfície da água indica uma aceleração com componentes horizontais não nulas, além das verticais. Logo, o planeta Terra não pode ser o agente responsável pela aceleração da água.

E as estrelas distantes? Se considerarmos que a distribuição de massa das estrelas distantes é isotrópica (a mesma distribuição em todas as direções), podemos modelar esses corpos como uma esfera oca, de tal modo que o balde se encontre no interior de tal esfera. No entanto, ao integrarmos a força da gravitação universal de Newton no interior de uma esfera oca com distribuição isotrópica de massa, o resultado é obrigatoriamente uma força total nula em qualquer ponto do interior da esfera. Este é um teorema bem conhecido em mecânica clássica. Como força nula, em mecânica, implica em aceleração nula, novamente não conseguimos justificar a aceleração da água do balde. E assumir que as estrelas distantes formam uma distribuição de massa não isotrópica vai em escandaloso desencontro com evidências experimentais. 

Portanto, estamos em uma situação realmente complicada. Afinal, como explicar a inércia de corpos materiais? Quando Isaac Newton desenvolveu suas ideias a respeito de mecânica e gravitação, ele percebeu essa constrangedora dificuldade. Sua solução para o problema do balde foi muito bizarra. Newton considerou que a água do balde está acelerada em relação àquilo que ele chamou de espaço absoluto.

Para muitos críticos da teoria de Newton (especialmente Ernst Mach), essa explicação carece de sentido físico. Afinal, como afirmar que a água do balde está acelerada em relação ao espaço absoluto? Espaço não tem massa! Matéria deve interagir com matéria e não com o espaço!

Em função disso, muitos físicos e filósofos da ciência assumem, de maneira usualmente informal, a existência de um princípio de Mach, segundo o qual "a inércia de um corpo material é devida à sua interação com outros corpos materiais". No entanto, vale observar que o próprio Mach jamais enunciou explicitamente alguma lei física sobre inércia que justifique a expressão "Princípio de Mach", apesar da literatura fazer recorrentes referências a esta alegada lei física.

O brasileiro André Koch Torres Assis propôs, em 1989, uma solução interessante para o problema do balde, a qual foi batizada de mecânica relacional. Inspirado nas antigas ideias de Wilhelm E. Weber sobre eletrodinâmica, ele introduziu uma teoria de gravitação na qual a força gravitacional entre duas partículas materiais depende não apenas da distância entre elas, mas também da velocidade relativa entre ambas e da aceleração de uma em relação à outra. Além disso, ele assumiu que a soma de todas as forças sobre uma partícula material é sempre nula, em qualquer sistema de referência. 

A partir desses pressupostos, Assis provou que mesmo uma distribuição isotrópica de massa das estrelas distantes consegue explicar a aceleração da água no balde. Deste modo, ele criou uma teoria de gravitação que justifica a inércia dos corpos com massa. Além desta conquista, a mecânica relacional consegue modelar com sucesso até mesmo a precessão do periélio dos planetas, fenômeno este normalmente explicado via Teoria da Relatividade Geral de Einstein.

Já discutimos em postagem anterior que a mecânica relacional de Assis tem sérias limitações, se comparada com a Relatividade Geral. Não queremos nos estender sobre este ponto. Mas em artigo publicado em parceria com Peter Graneau em 1996, Assis defendeu uma tese muito ousada e, convenhamos, irresponsável pela falta de qualificação. Ele afirmou que o princípio de Mach (na forma como apresentado acima) não pode ser implementado se usarmos a força newtoniana de gravitação universal. Esta afirmação é um suposto argumento em favor da mecânica relacional. É justamente neste ponto que entra um trabalho que publiquei em 2001 em parceria com Clóvis Achy Soares Maia (na época aluno de Iniciação Científica e hoje professor da Universidade de Brasília). 

Maia e eu desenvolvemos um sistema axiomático para uma teoria que chamamos de mecânica machiana (em homenagem a Mach). Inspiramo-nos em uma formulação axiomática para a mecânica newtoniana devida a J. C. C. McKinsey, A. C. Sugar e P. Suppes, publicada originalmente em 1953. 

Na axiomatização de McKinsey, Sugar e Suppes há dois tipos de forças: de interação e externa. As forças de interação deveriam dar conta de fenômenos como forças de contato, a gravitação universal de Newton e a força de Coulomb entre cargas elétricas. E a força externa se refere às inevitáveis forças perturbativas que existem em qualquer sistema físico tratado de forma realista. 

Matematicamente falando, essas duas forças são muito diferentes uma da outra. As forças de interação são descritas por funções que têm como domínio o produto cartesiano entre P, P e T, sendo P o conjunto de partículas do sistema estudado e T um intervalo de números reais fisicamente interpretado como tempo. Isso significa que a cada partícula p de P e a cada partícula q de P, em cada instante t de T, associamos uma força descrita por um vetor em um espaço vetorial real tridimensional. Já a força externa é tratada como uma função cujo domínio é o produto cartesiano entre P e T. Para cada partícula p de P em cada instante t de T existe uma força externa associada, dada novamente por um vetor em um espaço vetorial real tridimensional.

Considere, por exemplo, um estudo sobre a dinâmica do sistema Terra-Lua. É bem sabido que nossos planeta e satélite natural têm interação gravitacional não apenas entre si, mas também com uma gigantesca miríade de corpos espalhados pelo universo. Tratar de todas as interações gravitacionais da Terra e da Lua com todos esses astros é matematicamente impossível, pois teríamos que lidar com uma quantia assombrosa de equações. A solução é tratar as forças entre Terra e Lua como interativas e as demais forças atuantes como uma ação perturbativa (a força externa). O objetivo deste recurso é tornar o problema matematicamente tratável.  

Na mecânica machiana que Maia e eu criamos, a força externa assume um papel não apenas matemático, mas físico também. Ela é justamente a força responsável pela inércia dos corpos materiais (e, portanto, de natureza distinta das forças interativas gravitacionais). Por isso mesmo assumimos como postulado que a força externa sobre qualquer partícula material é o simétrico aditivo do produto entre sua massa e a aceleração da mesma, relativamente a um sistema inercial. Desta forma fizemos uma distinção matematicamente clara entre forças locais (interativas) e forças globais (a força externa). Estas últimas correspondem a uma tradução matemática do princípio de Mach acima mencionado.

Conjugando o postulado sobre forças perturbativas (externas) com o axioma que estabelece que a soma de todas as forças atuantes sobre qualquer partícula material é sempre nula, conseguimos facilmente deduzir a célebre segunda lei de Newton, segundo a qual (grosseiramente falando) a soma das forças interativas sobre uma partícula p de P é o produto entre a massa de p e sua aceleração. 

Em seguida, Maia e eu mostramos que tanto a gravitação newtoniana quanto a gravitação weberiana da mecânica relacional podem servir como modelos de nossa mecânica machiana. Fizemos, portanto, não apenas uma generalização das ideias de Assis, mas também a prova de que é perfeitamente possível compatibilizar gravitação newtoniana com o princípio de Mach. Este último resultado contradiz uma tese central de Assis e Graneau sobre as vantagens da mecânica relacional em relação à gravitação newtoniana.

Enfim, a aceleração da água no balde não precisa apelar para interações entre massa e espaço, se adotarmos uma distinção entre forças locais e forças de ação global. Este foi um exemplo interessante de como o método axiomático pode ajudar na compreensão teórica e até mesmo experimental de teorias físicas. 

Ciência se faz com discurso qualificado. E desconheço técnica mais eficaz para qualificação de discurso do que o método axiomático.

Para o leitor interessado nos detalhes, a referência principal desta postagem é o artigo "Axioms for Mach's Mechanics", de A. S. Sant'Anna e C. A. S. Maia, em Foundations of Physics Letters, volume 14, páginas 247-262 (2001). Este trabalho teve uma ótima resenha em Mathematical Reviews e contou com críticas e sugestões de Newton da Costa, Giancarlo Cavalleri, E. Toni e, claro, André Assis. Este último, porém, não endossa nossa proposta.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O Poder do Professor


"Tenho pensado muito nas desgraças da humanidade e cheguei à conclusão que, para seus males, não há remédio. Porque esse enfermo, muitas vezes secular, crava o punhal no peito de seu médico, mata-o e logo fecha os olhos, dizendo tranquilamente: 'Na verdade, era um bom médico.'" J. E. A.

Como já escreveu o autor acima citado "para ser feliz, o homem deve viver como ermitão no meio da sociedade". 

Tive a felicidade de trabalhar em parceria com Glaci Zancan em uma comissão criada pela Pró-Reitoria de Planejamento da UFPR, anos atrás. Ela era uma fervorosa defensora da meritocracia na vida acadêmica. Zancan morreu pouco depois de se aposentar e hoje se diz: "Ela foi uma grande pensadora." 

Em 2009, no Dia Internacional da Mulher, a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do bizarro estado do Paraná chegou a instituir o troféu "Mulheres da Ciência - Glaci Zancan". Mas o fato é que a meritocracia neste país ainda é um discurso completamente ignorado no seio da vida acadêmica brasileira. A macacada daqui (não é pretensão minha ofender os macacos) sequer entende o significado desta palavra, insistindo como crianças perdidas que concursos públicos avaliam mérito. Portanto, pergunto: existe alguma homenagem real a Glaci Zancan? Existe algum reconhecimento real sobre a sua obra? Ou a única homenagem que faremos é para algumas mulheres que, por conta de hercúleo esforço individual, conseguem realizar pesquisas técnicas, mas cujas visões realmente relevantes são simplesmente ignoradas? 

A escultura "Fita de Moebius" (uma óbvia referência matemática), da artista plástica Patrícia Fumiko Tristão, foi escolhida para o troféu Mulheres da Ciência. Tal escultura simboliza o infinito. O objetivo é expressar o desejo de que o prêmio se perpetue. Mas o que exatamente será perpetuado? Foi criado, de fato, um prêmio à altura dos ideais de Glaci Zancan? Em conversas que tive com esta renomada pesquisadora jamais fiquei com a impressão de que ela estivesse satisfeita com as políticas locais e nacionais de ciência e tecnologia. A impressão era exatamente a oposta. Mas essas políticas têm se perpetuado, sem a necessidade de símbolos com apelos poéticos. É como o filme Gabriela, de Bruno Barreto: queremos mudanças sim, desde que as coisas continuem como estão. Esta película é um excelente retrato do Brasil. 

Na postagem Sem Fronteiras? ilustrei como se perpetua o pacto de silêncio sobre nossa educação. Mas este pacto de silêncio é sustentado somente fora da sala de aula. Afinal, no dia-a-dia de nossas instituições de ensino, se promove algo bem mais ativo. Como disse a personagem de Richard Burton no filme Equus (de Sidney Lumet), "Paixão pode ser destruída por um doutor. Não pode ser criada." Este princípio garante que os boçais encontrem terreno livre na sociedade e que os sonhadores sejam esmagados, mesmo quando são hipocritamente reconhecidos após as suas mortes. E esta visão não é exclusivamente minha e muito menos original. Ver, por exemplo, a postagem assinada pelo Professor José Mario Martínez, que recebeu uma inesperada avaliação negativa de um leitor deste blog.

O doutor que a personagem de Richard Burton menciona é um médico psiquiatra. Mas a citação é perfeitamente cabível para os influentes professores que infestam as salas de aula deste país, em uma sociedade que ignora por completo a noção de mérito profissional na docência.

O único poder comum a todos os professores é o da destruição. E estou me referindo à destruição de sonhos dos jovens. São raríssimos os docentes que têm condições de exercer o poder da construção. E mais raros ainda são aqueles que efetivamente exercem este poder. Vejamos um exemplo histórico bem conhecido: Carl Friedrich Gauss. 

Quando o húngaro Janos Bolyai resolveu o polêmico problema do quinto postulado de Euclides, seu pai Farkas Bolyai ficou extremamente orgulhoso do filho. Afinal, um problema que persistiu entre as mais brilhantes mentes durante dois mil anos foi finalmente resolvido. O velho Farkas enviou, então, carta para o amigo Gauss, o qual já havia recusado anteriormente Janos como pupilo. Gauss, o mais importante matemático da época, respondeu que o trabalho do jovem Janos era interessante, mas que ele próprio já havia resolvido esta questão anos antes. Apenas preferiu não publicar o resultado. Tal resposta do grande mestre Gauss desestimulou profundamente o iniciante Janos, o qual simplesmente abandonou a carreira de matemático. Um ano depois, de maneira independente, o russo Nicolai Lobachevsky descobriu a mesma solução para o mesmo problema. Publicou o resultado e hoje ele é conhecido como o criador das geometrias não euclidianas. A criação das geometrias não euclidianas foi um rompimento de paradigma científico que revolucionou toda a ciência moderna. O historiador Eric Temple Bell chegou a se referir a Lobachevsky como o Copérnico de todo o pensamento humano. 

Não existem evidências de que Gauss tenha tentado desestimular Janos Bolyai propositalmente. Ao que parece, ele foi apenas honesto. Mas esta honestidade destruiu um sonho. Gauss chegou a escrever para um amigo uma carta, na qual se referia ao jovem Janos como um talento matemático de primeira grandeza. No entanto, jamais o apoiou diretamente. Por isso o leitor deve tomar muito cuidado ao interpretar minha tese: "O único poder comum a todos os professores é o da destruição." Não estou insinuando que professores em geral queiram destruir os sonhos de seus alunos. Apenas digo que, em geral, é o que fazem. Como especialmente no Brasil a profissão de professor é abraçada por fracassados do ensino médio (os melhores alunos do ensino médio geralmente procuram outras carreiras), fica mais evidente o poder destruidor destes profissionais. Trata-se de uma cadeia sem fim, um segmento autofágico da sociedade brasileira. 

Tendo isso em mente, recomendo apenas o seguinte aos jovens sonhadores:

1) Evitem discussões prolongadas com docentes desestimuladores e incompetentes. Estes docentes sempre terão apoio social muito mais poderoso do que um jovem que normalmente é considerado inexperiente e ingênuo.

2) Procurem e mantenham contato próximo com profissionais e colegas que compartilhem de sonhos semelhantes. Mas sempre desconfiem daqueles que são dominados por certezas a respeito de suas visões.

3) Procurem e mantenham contato íntimo com amigos e familiares que apoiem seus sonhos, mesmo que não sejam capazes de compreender os aspectos técnicos envolvidos. Todos os grandes pensadores puderam contar com o suporte de familiares e amigos.

4) Mantenham distância daqueles que contaminam seus sonhos, mas jamais deixem de ouvir o que eles têm a dizer. Mesmo de uma pessoa invejosa é possível aprender algo a respeito de nós mesmos. Mesmo daqueles que fracassaram em suas vidas profissionais poderemos eventualmente aprender lições importantes. 

5) Não se desestimule com críticas negativas e não se anime com elogios. Apenas reflita sobre o que vê, ouve e lê. E discuta criticamente com seus pares sobre as questões que julga relevantes. 

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Qual é o tamanho de um ponto?



Observe a imagem acima. Parece, sob o olhar desatento, retratar um robô de braços abertos cuja sombra é projetada sobre o solo que pisa e uma parede logo adiante. No entanto, se observar atentamente, o que parece chão e parede (formando um ângulo reto em perspectiva) é, na verdade, um único plano. A ilusão de profundidade é dada por uma sombra fisicamente impossível. Além disso, a frase "My shadow tickles me" (Minha sombra me faz cócegas) reforça uma confusão sobre ponto de vista. De fato, a sombra do braço esquerdo está sob a axila direita, justificando a brincadeira de estar fazendo cócegas. Porém, essa visão é virtualmente impossível do ponto de vista do robô. Portanto, a sombra faz cócegas em quem?

Esta imagem foi feita para ilustrar como é fácil criar ilusões com imagens. O verdadeiro mestre de ilusões, no entanto, foi o grande artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher, o qual concebeu inúmeras gravuras intimamente associáveis aos célebres Triângulo de Penrose e Escada de Penrose. 

Desperto atenção para isso com o objetivo de destacar a diferença fundamental entre desenho e geometria. Em nossas terras até hoje se promove uma gigantesca confusão entre essas duas áreas da cultura mundial. É muito comum professores de matemática lecionarem geometria com o auxílio de réguas, compassos e transferidores. Réguas, compassos e transferidores são ferramentas úteis para o ensino de desenho, mas não de geometria. Pelo contrário, depender de instrumentos de desenho para aprender geometria é certamente um disparate.

Quando Euclides de Alexandria escreveu o monumental Elementos (sem dúvida a obra científica mais bem sucedida da história), sua visão de geometria foi interpretada durante dois mil anos como um compromisso matemático com as intuições humanas a respeito de espaço físico. 

Quando o matemático russo Nicolai Lobachevsky provou a independência do célebre quinto postulado de Euclides, introduzindo aquilo que hoje conhecemos como as geometrias não euclidianas, esse compromisso entre geometria e intuição sobre espaço físico foi severamente ameaçado. Lobachevsky percebeu que a geometria euclidiana era apenas uma, entre infinitas geometrias possíveis. 

Mas foi em 1899 que a geometria euclidiana atingiu seu primeiro grande amadurecimento depois de dois milênios de história. Foi neste ano que o alemão David Hilbert (o último matemático de visão genuinamente universal) publicou seu célebre Grundlagen der Geometrie, um livro no qual a geometria se reduzia a uma estrutura axiomática em que conceitos como ponto, reta e plano têm um status meramente linguístico. 

Felizmente no Brasil existe pelo menos um livro de matemática originalmente escrito em português e, ao mesmo tempo, excelente. É a obra Fundamentos da Geometria, de Benedito Castrucci (LTC, 1978). Neste livro a geometria euclidiana é desenvolvida de tal forma que possa ser fundamentada, com todo o rigor, em qualquer das teorias de conjuntos usuais, como ZF e NBG. 

No primeiro capítulo do livro de Castrucci, fortemente inspirado na obra original de Hilbert, um plano de incidência é definido como um par ordenado de dois conjuntos, a saber, um conjunto de pontos e um conjunto de retas. Pontos e retas nada mais são do que conjuntos. Ponto!

A versão original de Elementos, de Euclides, foi perdida. Resultado da ignorância dos cristãos que, em nome de Deus, incendiaram a Biblioteca de Alexandria e atrasaram o desenvolvimento científico da civilização durante séculos. O que se sabe hoje deste livro é por conta de traduções da obra para o latim e outros idiomas, bem como cópias de fragmentos em grego arcaico. Nas traduções que se popularizaram há uma suposta definição para ponto. Historiadores não têm certeza se essa definição é originalmente devida a Euclides ou se é uma contribuição de tradutores, com a finalidade de facilitar a compreensão. O fato é que a alegada definição apela para a noção intuitiva de que pontos não têm tamanho. E até hoje, em nossas escolas, se corrompe a mente de alunos com afirmações do seguinte tipo: "Ponto não tem largura, nem altura, nem profundidade". Ora, o administrador deste blog não tem escamas e nem tentáculos. No entanto, essa afirmação não pode ser considerada como algo que efetivamente defina quem sou eu. 

Nos moldes do que a geometria euclidiana é hoje, não faz sentido perguntar qual é o tamanho de um ponto. É como perguntar qual é a cor da mulher. Mulher? Qual mulher?

Pontos, retas, planos e espaço são conceitos abstratos, usualmente fundamentados em teorias de conjuntos. E conjuntos são definidos única e exclusivamente pelos seus elementos (em ZF e NBG isso fica caracterizado pelo Axioma da Extensionalidade). Não há, nas teorias conjuntistas usuais, conceitos como os de tamanho, escamas ou tentáculos. 

Portanto, se o professor de ensinos fundamental e médio deseja lecionar geometria, deve parar de uma vez por todas de seguir a literatura medíocre que assola este país. Se não consegue ler alemão (para ter acesso à obra de Hilbert), que pelo menos conheça bem o livro de Castrucci. Isso significa que deve conhecer detalhadamente pelo menos a teoria intuitiva de conjuntos. Feito isso, o próximo passo é a transposição de conhecimentos. A sofisticada linguagem usada hoje em dia para fundamentar a geometria deve ser adaptada para os limites intelectuais dos alunos. 

Lecionar matemática para os ensinos fundamental e médio é uma tarefa extremamente complexa. Demanda conhecimentos profundos de matemática e treinamentos igualmente profundos em didática. 

Se professores tanto anseiam pela valorização de suas carreiras, que façam justiça sobre suas reivindicações. Comecem a estudar.

Qual é o seu valor?



Ao ler Jorge E. Adoum descrevendo o Líbano do início do século 20, o autor parece estar se referindo metaforicamente ao Brasil de hoje em várias passagens. "Se afastássemos as cabras e o clero seria o paraíso", "Os libaneses combinaram estar sempre em desacordo", "Diante das cataratas do Niagara, o libanês pensaria como cantá-las em versos, enquanto o americano pensaria como explorá-las", "Apesar do libanês adorar sua liberdade, notamos sempre entre o povo a eterna escravidão: o pobre é escravo do rico; o poderoso está sujeito ao governante", "Cada um se sente capaz de tudo, embora não seja capaz de nada". 

Em outras passagens há discrepâncias evidentes. "No Líbano também não existe a mendicância, tendo desaparecido completamente do cenário da vida social esses atores da miséria", "A fome e o frio não perturbam a felicidade do país, e se vier um mendigo de fora, um homem de outras regiões, que viva da caridade, será tão bem recebido como qualquer pessoa libanesa", "Se o habitante do Líbano for ofendido, ou mesmo esbofeteado, pode olvidar a ofensa e perdoar a bofetada; porém, quando se trata de seu nome e sua honra, nem mesmo o rei escapará à sua ira". 

É claro que essa avaliação retrata tão somente um mero ponto de vista, tão subjetivo quanto as avaliações que você leitor possa fazer. Afinal, como bons brasileiros, você e eu provavelmente discordamos em inúmeros pontos sobre o perfil da sociedade deste país. 

No entanto, apesar de diferenças culturais profundas entre povos, vários comportamentos das sociedades parecem apontar para uma busca pelo imutável, pelo invariante, pela constante que permite suportar as variáveis humanas. Na poesia esse imutável é frequentemente retratado pelo eterno, pelo amor maternal, pela fidelidade do firmamento, entre outras visões. O eterno deve garantir a continuidade das gerações, apesar de a cada indivíduo ser emprestada uma vida com começo, meio e fim. O amor de um casal pode se dissolver com o passar do tempo. Mas o amor de uma mãe deve ser eterno, pois não se pode substituir uma mãe por outra. E as estrelas do céu noturno inspiram a confiança de que há uma ordem superior que aponta para a esperança de que algo deve continuar, mesmo quando nossos corpos não puderem mais suportar a vida.

Na mente de muitos outros o único imutável é Deus. Ainda que Deus seja percebido de diferentes maneiras pelos mutáveis humanos, todos os crentes parecem concordar que Ele deve ser eterno, invariante, sempre presente. 

As ciências, por irresponsável analogia minha, também se suportam sobre invariantes. Todas as variadas manifestações de ondas eletromagnéticas devem obedecer aos mesmos princípios das equações de Maxwell. Todas as modelagens de fenômenos físicos devem partir da invariância de momento angular, momento linear, energia total do sistema, ou alguma outra grandeza física que se mantenha constante com o passar do tempo. A topologia dos matemáticos se ocupa dos chamados invariantes topológicos. A dinâmica da vida deve seguir a padrões constantes da evolução das espécies. 

E na vida individual de cada um de nós? O que usamos como referência invariante para suportar a dinâmica de nossas vidas? Em outras palavras, quais são os nossos valores individuais? 

Posições profissionais podem ser conquistadas, mas também perdidas. Mesmo a estabilidade que tanto critico dos funcionários públicos brasileiros e, principalmente, dos professores de instituições federais de ensino superior, não reflete invariância alguma. Pois em algum momento esses profissionais serão aposentados, descartados. E as instituições de ensino que um dia os abrigaram rapidamente esquecerão deles. Há exceções, porém. Não vejo evidências de que tão cedo esqueceremos de Glaci Zancan. Isso porque ela deixou uma marca mais perene do que sua simples presença física neste mundo. Não vejo perspectivas de que um dia esqueceremos de Newton Freire Maia, pois além de obras seminais, ele deixou discípulos que formam hoje outros discípulos. Mas almas como as de Zancan e Maia conquistaram a eternidade não por conta da estabilidade que usufruíram durante suas vidas como funcionários públicos. Eles transcenderam essa ilusória invariância investindo em valores pessoais que genuinamente espelham uma sólida base: o conhecimento crítico e o exemplo pessoal. Se você não sabe quem foram Glaci Zancan e Newton Freire Maia, deve avaliar se essa ignorância ocorreu por mero descuido ou se espelha uma natureza fútil que precisa ser reavaliada.

Bens materiais podem ser facilmente perdidos, mas o conhecimento crítico é algo mais resistente. 

De meu frágil ponto de vista, não vejo como possamos usar Deus como referência para guiar nossas vidas. Sou adepto parcial da visão do grande matemático e crítico cristão Blaise Pascal, que defendia que a condição humana é de miserabilidade. Afinal, se Deus existir, quem somos nós para poder reconhecer ou negar Sua existência? Deus, segundo Pascal, é como o horizonte. Por mais que tentemos alcançá-lo, sempre estará distante demais de uma percepção mais íntima. 

Prefiro abraçar algo que está mais próximo de minha limitada compreensão, ainda que eu não consiga perceber de forma muito clara: a ciência. A ciência sobrevive, mesmo que mude de forma na maneira como pessoas a percebem ao longo dos séculos. Mas, pelo menos, permite que seja tocada e que beneficie ao investigador e às pessoas que o cercam. O que existe em comum entre a ciência do passado e a ciência de hoje é justamente a crítica. Mas não falo da crítica que tenta destruir gratuitamente o que já está aparentemente estabelecido. Falo da crítica que revisa as crenças contemporâneas e que, portanto, avalia até a si mesma. Um exemplo muito bonito é o de Max Planck, quando este introduziu o conceito de quantização de energia eletromagnética. Planck resolveu o problema da catástrofe do ultravioleta, mas não estava contente com sua solução. Acreditava ele que uma ideia melhor era exigida. Isso é crítica. 

O Professor Newton Freire Maia teve momentos, em sua vida, nos quais procurava fervorosamente por Deus. Mas também teve momentos em que questionava o suposto Criador. No entanto, jamais abandonou a ciência ou a educação. Fazia parte de seu íntimo o cultivo do conhecimento científico e a constante crítica. Em meu primeiro encontro com o Professor Maia, tentei iniciar um diálogo para conversar sobre o seu livro intitulado A Ciência Por Dentro (já na quarta edição, naquela época). Ele imediatamente interrompeu e, brincando, afirmou que tudo naquele livro estava errado. Ou seja, o Professor Newton Freire Maia não teve dúvidas apenas a respeito de Deus. Ele teve dúvidas a respeito de si mesmo, como cientista e como pensador. Este é o verdadeiro crítico!

Pode parecer contraditório usar como base de vida a eterna dúvida. Afinal, a incerteza pode parecer aos olhos dos precipitados um terreno pouco seguro. Mas é este terreno que tem garantido nossa evolução e consequente sobrevivência como espécie.

Existem umas poucas evidências de que o Brasil possa despontar em algum futuro distante como uma relevante sociedade no cenário mundial. Sabemos claramente que as melhores universidades do mundo são as norte-americanas. Sabemos também que nosso sistema educacional é um dos piores do mundo. Mas os Estados Unidos contam com certas características que parecem refletir uma sociedade extremamente frágil. Afinal, como pode durar uma nação que conta com várias prisões federais, mas nenhuma universidade federal? No Brasil, pelo menos, existem universidades federais. Nos Estados Unidos não existe saúde universal. É a única nação desenvolvida do planeta que não conta com saúde universal. No Brasil essa realidade é totalmente diferente. Nossas universidades federais são obviamente péssimas, diante do cenário internacional. Nossa saúde pública talvez seja pior ainda. Mas, pelo menos, parece que percebemos a necessidade de educação pública de qualidade e a necessidade de saúde universal, disponível para todos. Tudo o que precisamos fazer agora é avaliar criticamente nosso Estado e revisar o que já temos. Precisamos mudar sim. E precisamos mudar radicalmente. Mas o espírito deve se manter o mesmo: a busca por uma sociedade justa e feliz.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Imposturas Intelectuais



Cerca de três anos atrás vendi um roteiro para um filme de ficção sobre o sistema educacional brasileiro, com ênfase nos bastidores das universidades federais. O título provisório é Academia. O roteiro foi comprado pelo diretor, produtor e roteirista José Padilha. Para quem não lembra, Padilha é o diretor dos controversos Garapa, Ônibus 174, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2. O problema é que a produção de cinema envolve um conjunto quase infindável de variáveis. Tanto é verdade que hoje Padilha está no Canadá, dirigindo o remake de RoboCop, uma nova produção hollywoodiana que estará em cartaz em 2013. Enquanto o projeto de Academia estava na fila de espera, escrevi um livro para ser lançado paralelamente ao filme. No entanto, nenhuma das editoras que procurei demonstrou o mais remoto interesse na obra, a qual evidentemente vai em desencontro a interesses mesquinhos que dominam este país. Tendo isso em mente adaptei vários capítulos do livro e os publiquei em inúmeras postagens deste blog. Tomei apenas o cuidado de jamais revelar qualquer ingrediente das tramas do roteiro. Se Academia será produzido ou não, somente o tempo responderá. Já houve várias demonstrações claras de interesse por parte de financiadores de grande porte. Mas dinheiro não é a única variável envolvida na produção de filmes para o telão. Padilha chegou a escrever um prefácio para o livro que acompanharia o lançamento do filme. É um prefácio que julgo importante demais para ser ignorado, pois trata do grave problema das imposturas intelectuais, muito mais comuns em nosso país do que em nações desenvolvidas. Pedi ao autor para veicular seu prefácio neste blog (texto que segue abaixo) e ele enfaticamente permitiu. Espero que os leitores tirem o melhor proveito possível deste texto escrito por um raro indivíduo do meio artístico que genuinamente tem uma visão madura sobre produção de conhecimento e não apenas sobre produção de cinema.
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(Sem Título) 
escrito por José Padilha


São várias as teorias e concepções do que seja conhecimento. Por isso, a classificação de uma comunidade como acadêmica é relativa e não absoluta. Uma comunidade de monges jesuítas pode ser eficiente na produção e no ensino de textos religiosos. Todavia, alguém que não entenda esses textos como conhecimento não classificará tal comunidade como acadêmica. Assim, o problema de se avaliar o funcionamento de uma academia, ou seja, de saber se ela produz e transmite conhecimento de forma adequada, não tem solução única e se define de maneira diferente, conforme as concepções de conhecimento.

Os leitores que se interessam por filosofia da ciência já devem ter percebido que, no fundo, o problema de se avaliar as comunidades acadêmicas está intimamente ligado à demarcação entre conhecimento e ideologia, entre ciência e pseudociência. Não foi por acaso que o filósofo Imre Lakatos afirmou que este problema não é meramente teórico, e que tem grande importância social. Afinal, o conhecimento confere status às pessoas, às comunidades e às organizações. Logo, a forma pela qual uma sociedade define conhecimento tem impacto significativo não apenas com relação à alocação de recursos que ela destina para a produção do que considera conhecimento, mas também com relação ao peso político que dá às diferentes opiniões de seus membros. Levando-se em conta ainda a dimensão pragmática do conhecimento, manifesta na tecnologia, pode-se dizer que o conceito que uma dada sociedade tem sobre essa noção é fundamental para o seu futuro.

Tradicionalmente a filosofia tem duas atitudes básicas com relação ao conceito de conhecimento. Alguns filósofos acreditam que existe uma concepção mais adequada do que as outras, mesmo que ainda não tenha sido enunciada ou que não haja acordo quanto ao seu enunciado. Para estes filósofos (que acreditam que o problema da demarcação tem solução) faz sentido, pelo menos em princípio, avaliar a capacidade que uma dada comunidade tem para produzir sistemas de enunciados que satisfaçam certos critérios universais, a dizer, os critérios que definem conhecimento. Todavia, muitos filósofos não acreditam em uma noção universal e única para o problema da demarcação, e partem do princípio de que cada comunidade tem suas próprias concepções e que todas são igualmente válidas. Para os filósofos que relativizam o conhecimento desta forma, a avaliação de uma academia é um exercício de sociologia, feito a partir de critérios sociológicos inerentes a cada comunidade acadêmica.

Hoje em dia os núcleos de ensino e de pesquisa não são mais comunidades como eram na Grécia antiga. São estruturas organizacionais bastante complexas e que têm como missão formar profissionais especializados em determinadas áreas; formação esta que requer, pelo menos a princípio, que tais profissionais adquiram certos conhecimentos e a capacidade de gerar mais e ainda ensinar. Todavia, dentro de uma única universidade podem existir diversas comunidades acadêmicas com concepções diferentes do que seja conhecimento; o que faz com que a própria ideia de relativização do conceito de conhecimento se torne problemática quando aplicada a uma universidade como um todo. A rigor, esta relativização só faz sentido ao nível das comunidades que têm a mesma visão e não ao nível das organizações, salvo caso em que todas as comunidades de uma mesma organização subscrevem aproximadamente ao mesmo conceito de conhecimento. Assim, o problema de se avaliar uma academia a partir da postura de relativização é bastante complexo e fragmentário, demandando a divisão das estruturas organizacionais dedicadas ao ensino em diversas comunidades, e a utilização de diferentes critérios "sociológicos" do que seja conhecimento, para avaliação de cada uma dessas comunidades. Todavia, apesar desta complexidade, na maioria das vezes é assim mesmo que as universidades são avaliadas. Não é por acaso que a unidade de avaliação acadêmica padrão é o departamento universitário, que corresponde mais ou menos a uma dada comunidade acadêmica que subscreve a uma dada noção de conhecimento; e que as avaliações dos departamentos são sempre montadas por especialistas nas áreas destes mesmos departamentos. Tratam-se, portanto, de avaliações parcialmente relativizadas. Parcialmente porque em uma mesma área podem coexistir mais de uma concepção do que seja conhecimento, e porque nem sempre a concepção dos avaliadores é totalmente igual à da comunidade avaliada. Mesmo assim, é clara a fragmentação das avaliações acadêmicas padrão. Será, então, que a sociedade moderna adotou uma posição relativista no que tange ao problema da demarcação?

É claro que as diferenças de opinião a respeito do que seja o conhecimento não são a única explicação possível para o fato das organizações acadêmicas serem tradicionalmente avaliadas por departamento. A especialização também tem a sua relevância e muitos podem argumentar que ela gerou a departamentalização das avaliações acadêmicas; dado que o conhecimento está tão especializado que apenas um perito pode avaliar seus pares. De fato, esta é parte da verdade, mas não toda. A "fragmentação" do conceito de conhecimento também tem a sua influência. Afinal, a adoção de um conceito fixo, como princípio de avaliação acadêmica, tem o potencial de desagradar muita gente. Imagine, por exemplo, se o departamento de física do MIT (Massachusetts Institute of Technology) resolvesse publicar uma avaliação do departamento de filosofia do Collège de France a partir da sua definição de conhecimento... Criaria, para dizer o mínimo, uma razoável controvérsia. E é, em parte, por temer controvérsias deste tipo que muitos acadêmicos, que acreditam na possibilidade de uma lógica do conhecimento, preferem não se opor publicamente aos que não acreditam, e aceitam o princípio de que cada especialista deve avaliar a sua própria área mesmo nos casos em que suspeitam seriamente do conhecimento dos especialistas em questão. Trata-se de uma opção de ordem prática e política que, se contribui para a paz de espírito de alguns, colabora também para esconder do grande público as profundas divergências que existem no meio acadêmico a respeito do que seja conhecimento.

De certa forma as avaliações dos departamentos universitários são semelhantes àquelas que as revistas especializadas fazem dos textos que lhes são submetidos. Por isso, o affair "imposturas intelectuais" ensina mais do que parece. Em 1996 o físico Alan Sokal redigiu o texto "Transgredindo as Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica", de forma que este fosse propositadamente absurdo.  Encheu o texto de passagens do tipo "o π de Euclides e o G de Newton, antigamente imaginados como constantes e universais, são agora entendidos em sua inelutável historicidade", ou ainda "a realidade física, não menos que a social, é no fundo uma construção social e linguística". Depois, a título de experiência, submeteu seu artigo para a revista americana Social Text, uma conceituada publicação pós-moderna.  Os revisores da revista, que eram professores de importantes departamentos universitários americanos, decidiram pela publicação do artigo, provavelmente por considerá-lo, à revelia do autor, uma contribuição relevante ao conhecimento humano. A controvérsia que se seguiu à publicação do artigo, a revelação de que era uma fraude, e a subsequente publicação de Imposturas Intelectuais (livro que Sokal escreveu com Jean Bricmont) dá uma boa ideia do que acontece quando a noção de conhecimento de uma comunidade é utilizada para avaliar a produção acadêmica de outra.

Hoje em dia as estruturas organizacionais têm muita influência na produção e na disseminação do conhecimento, para o bem e para o mal. Uma organização tem estrutura e cultura próprias, e estas podem trabalhar a favor ou contra a geração e a disseminação do conhecimento, mesmo quando a sua missão é fazê-lo avançar. Este fato permite que se formulem avaliações da excelência acadêmica ao nível organizacional, e não apenas ao nível dos departamentos universitários. As questões típicas que se colocam, neste tipo de avaliação, são as seguintes: a estrutura e a cultura de uma dada organização trabalham a favor ou contra a produção e a disseminação do conhecimento? Respostas a questões deste tipo também pressupõem, é claro, uma concepção do que seja conhecimento e um posicionamento a respeito do problema da demarcação. 

Só que, ao contrário das avaliações por departamento, uma avaliação acadêmica organizacional é muito mais geral e abrangente. Questões desta ordem podem ser colocadas de forma muito ampla, bastando que para isso as organizações em consideração sejam igualmente amplas. Ora, como muitos países normatizam as suas atividades acadêmicas, adotando procedimentos universais para regulá-las, pode-se até propor uma avaliação do funcionamento das organizações acadêmicas de um país como um todo, onde se discutiria se a adoção desta ou daquela norma acadêmica trabalha a favor ou contra o ensino e a pesquisa nestes países. Em outras palavras: de um ponto de vista organizacional, pode-se avaliar os procedimentos acadêmicos de um país como um todo, resguardadas, é claro, as particularidades de cada universidade e departamento universitário. 

Evidentemente, não é preciso ressaltar o potencial polêmico que avaliações desta amplitude podem ter. Um fato que, felizmente, não incomoda ao professor Adonai Sant’Anna, eminente físico e matemático, colega de Newton da Costa, José Acácio de Barros, Décio Krause e Patrick Suppes. No presente livro Adonai apresenta uma contundente crítica ao funcionamento da academia brasileira como um todo, tomando como ponto de partida uma concepção razoavelmente universalizada e científica do que seja o conhecimento. Trata-se de uma crítica sincera que não se curva ao cálculo político que muitas vezes baliza as avaliações acadêmicas. Por isso e por muitos outros motivos, acredito que o presente livro pode trazer grande contribuição para a academia brasileira. Faço, no entanto, uma ressalva: digo isso a partir da minha própria concepção de conhecimento que pretendo universal, apesar de incompleta, e que me parece ser semelhante à do autor.

domingo, 23 de setembro de 2012

Como Aprender Matemática



Aulas e livros de matemática frequentemente provocam reações negativas em alunos: sono, cansaço, desânimo, desorientação, ansiedade e até desespero. Este texto apresenta algumas noções básicas que, se forem seguidas, podem colaborar significativamente para o melhor rendimento daqueles que tentam compreender esta área do conhecimento tão necessária para a sociedade, mas que enfrentam grandes dificuldades de aprendizado. 

Ou seja, este texto não é adequado para indivíduos que desejam conhecer matemática com profundidade, mas para aqueles que vêem na matemática apenas uma ferramenta útil em suas vidas profissionais e escolares.

Se você deseja ser mais do que um mero aluno, ou seja, um estudante de matemática, divido as recomendações em duas categorias: técnicas e pessoais.


Recomendações Técnicas

Todas as teorias matemáticas são fundamentalmente caracterizadas por dois ingredientes: lógica e linguagem. A não compreensão de qualquer um desses ingredientes fatalmente impede o entendimento de qualquer teoria ou conceito matemático. Discutimos brevemente a seguir o que são esses ingredientes.

Linguagem

As linguagens empregadas em matemática são completamente diferentes das linguagens naturais, aquelas que usamos em nosso dia-a-dia simplesmente para dialogar com as pessoas (português, inglês, francês, russo etc.). A linguagem matemática mais usual é a da teoria intuitiva de conjuntos. Esta linguagem permite fundamentar praticamente todos os conceitos estudados nos ensinos fundamental e médio, bem como em estudos de graduação e na maioria dos cursos de pós-graduação. Para compreender bem a linguagem da teoria intuitiva de conjuntos, basta entender como ponto de partida as relações entre os conceitos de pertinência e igualdade entre conjuntos. A teoria intuitiva de conjuntos normalmente estabelece os conceitos de pertinência e igualdade de forma meramente intuitiva. Se dizemos que o conjunto X pertence ao conjunto Y, queremos dizer com isso que X é elemento de Y. E se dizemos que o conjunto X é igual ao conjunto Y, queremos dizer que cada elemento Z de X é também elemento de Y e que cada elemento Z de Y é também elemento de X. Além disso admitimos que existe um conjunto que não tem elemento algum, a saber, o conjunto vazio. Se essas ideias forem bem compreendidas, todos os demais conceitos sobre conjuntos podem ser entendidos a partir dessas duas relações. As relações de subconjunto, subconjunto próprio e equipotência são definidas a partir de pertinência e igualdade. As operações de união, interseção, complementar, diferença, diferença simétrica, produto cartesiano e potência são também definidas a partir de pertinência e igualdade. E os conceitos de par não ordenado, par ordenado, n-upla ordenada, relação, função, função sobrejetora, função injetora, função bijetora, conjunto finito, conjunto infinito, cardinalidade, número natural, número inteiro, número racional, número irracional, número real, número complexo, matriz, reta, circunferência, triângulo, entre muitos outros, podem novamente ser definidos apenas a partir de pertinência e igualdade. Ou seja, domine a teoria intuitiva de conjuntos e estará com um caminho muito bem definido para entender matemática.

Lógica

A contraparte lógica da matemática (estudada sem compromissos profundos com fundamentos) pode ser resumida a simples regras de inferência, também conhecidas como argumentos. O argumento mais usual em matemática é conhecido como Modus Ponens. A partir de uma afirmação "A" e uma condicional "se A então B" podemos inferir "B". Por exemplo, considere as duas afirmações a seguir: 

A: "T é um triângulo retângulo"

B: "Se T é um triângulo retângulo, então T admite um lado maior."

A partir dessas duas afirmações podemos concluir que "o triângulo retângulo T admite um lado maior." Frequentemente afirmações de autores de livros e professores mascaram essa forma de discurso. Um professor pode afirmar, por exemplo, que todo triângulo retângulo admite um lado maior. O que ele está dizendo com isso é simplesmente que "se T é um triângulo retângulo, então T admite um lado maior."

Outras formas de argumentos são também usuais em matemática, como a conhecida redução ao absurdo. Digamos, por exemplo, que um autor ou professor queira demonstrar uma tese T a partir de uma ou mais hipóteses H1, H2,..., Hn. E digamos que este profissional não consiga fazer tal demonstração apelando apenas a Modus Ponens. Ele pode empregar o seguinte recurso: supor que não vale T. Se este profissional, usando a seguir Modus Ponens, concluir que a negação da tese T implica necessariamente na violação de uma das hipóteses H1, H2,... , Hn, ele estará finalmente provando que vale a tese T. Isso porque é assumido implicitamente que só existem duas opções: ou vale T ou não vale T. Se a negação de T permite inferir uma afirmação que contradiz alguma das hipóteses, isso significa que a negação de T é incompatível com o conjunto de hipóteses. Portanto, só restou a possibilidade de que vale T. Eventualmente a negação de T pode não violar qualquer uma das hipóteses, mas pode contradizer algum fato bem conhecido sobre matemática. Novamente teremos uma contradição e só resta a possibilidade de valer a tese T. 

Considere como exemplo a tese de que a raiz quadrada de dois é irracional. Em outras palavras, considere o seguinte teorema: "Se X é igual à raiz quadrada de dois, então X é um número irracional." A demonstração mais usual parte da negação da tese, ou seja, assume-se que a raiz quadrada de dois é um número racional (entre os números reais, ser irracional significa não ser racional). Usando Modus Ponens algumas vezes é possível chegar a uma conclusão que contradiz o que se sabe em matemática a respeito da decomposição de números inteiros em fatores primos. Assumindo que essas propriedades sobre números inteiros estão corretas, chega-se à conclusão de que é falso afirmar que a raiz quadrada de dois é um número racional. Portanto, só restou a possibilidade deste número ser irracional.

É importante observar que não estou apelando para noções rigorosas de lógica. Do ponto de vista lógico-matemático estou cometendo várias impropriedades. Mas, para fins elementares de um conhecimento pragmático de matemática (incluindo muitos conteúdos estudados até mesmo em programas de pós-graduação) essa visão pode ser considerada como uma boa aproximação. 

Não tente interpretar argumentos lógico-matemáticos em situações normais do dia-a-dia. Também não tente interpretar de forma trivial elementos das linguagens das teorias intuitivas de conjuntos como objetos do mundo real. Você fracassará miseravelmente se fizer isso. As regras de inferência usadas em matemática pertencem exclusivamente ao mundo matemático, que é um domínio abstrato sem interpretação trivial no mundo real. O fato da matemática ser aplicada para modelar fenômenos reais é algo que ainda não é bem compreendido pela ciência. Ou seja, usar o conceito geométrico de circunferência para modelar uma roda de carro é algo que deve ser examinado com muito cuidado. Rodas de carro são objetos reais, palpáveis, mensuráveis. Circunferências, em geometria, são conjuntos de pontos. E conjuntos não têm forma, não são palpáveis e muito menos mensuráveis (no sentido físico da expressão). Quando se usa uma circunferência para modelar uma roda de carro, ou uma equação diferencial para modelar a dinâmica de uma população de bactérias, deve se ter em mente apenas o aspecto pragmático: funciona. Como funciona, ninguém sabe.


Recomendações Pessoais

A prática da matemática exige tanto atividades sociais quanto aquelas que são mais  introspectivas. 

1) Não se limite à leitura de um único livro para aprender matemática. Consulte várias referências e use seu senso crítico. Sempre tente reduzir conceitos matemáticos para uma linguagem de uma teoria intuitiva de conjuntos. Se um autor afirmar que uma matriz é uma tabela, entenda que este profissional fez uma afirmação tola. Afinal, o que é uma tabela? Tente reduzir o conceito de matriz a alguma noção que possa ser expressa em uma linguagem de teoria de conjuntos. É difícil encontrar na literatura, mas existem autores que definem conceitos matemáticos com rigor adequado. Uma matriz é uma função. E funções são definidas a partir de conjuntos, usando os conceitos de pertinência e igualdade.

2) Procure contato com matemáticos reconhecidamente competentes. Raramente são competentes aqueles que se limitam a reproduzir o que outros autores já escreveram. Como diz o ditado, quem sabe faz e quem não sabe ensina. Matemático, por definição, é aquele que, pelo menos uma vez na vida, foi o autor do enunciado e da demonstração de um teorema não trivial que foi publicado em um respeitado periódico especializado de circulação internacional. Use a internet para estabelecer este tipo de contato, se for necessário. Se ainda assim não conseguir, converse com o maior número possível de professores de matemática e novamente use seu senso crítico. Seja como for, jamais confie cegamente na palavra de um único profissional (o que inclui o administrador deste blog). Sempre empregue seu senso crítico.

3) Se for estudar em grupo, jamais se reúna com pessoas que não têm interesse real em troca de ideias matemáticas. Forme grupos de discussão com colegas que genuinamente contribuam para a melhora no aprendizado do grupo como um todo. 

4) A maior parte do aprendizado de matemática é um processo solitário, sem interferências externas, como música ou conversas paralelas. Se você estiver estudando um conteúdo e não compreendê-lo, insista até a exaustão. Se ainda assim não compreender, entenda que isso é normal. Matemática é assunto extremamente complicado para qualquer pessoa. São ignorantes aqueles que dizem o contrário. Descanse, tire um dia de folga e retorne aos estudos no dia seguinte. Sua capacidade de compreensão ficará cada vez mais aguçada se você alternar períodos de estudos intensos com períodos de descanso e lazer. 

5) Matemática é como uma amante. E amantes gostam de ser lembradas nos momentos mais inesperados. Mesmo que você tenha horários específicos para a realização de estudos, procure pensar sobre o que estudou nos dias anteriores quando estiver envolvido em atividades intelectualmente pouco exigentes: durante o banho, em uma caminhada ou enquanto estiver se bronzeando na praia. Apenas refletir sobre matemática, sem o compromisso formal de ler e escrever, é algo que pode ser prazeroso. 

6) Procure diversificar suas atividades intelectuais. Estudar apenas matemática não é recomendável. Ter contato com cultura em geral tem reflexos extremamente positivos em estudos mais específicos. Leia clássicos da literatura mundial, ouça e conheça música erudita, vá ao teatro e ao cinema, converse com amigos sobre artes, história e ciência. Matemática está intimamente conectada a praticamente todas as atividades culturais humanas. 

Para entender matemática é preciso praticar matemática. E mesmo a insistente tentativa de praticar matemática pode não apresentar resultados encorajadores. Não existe solução milagrosa para o enfrentamento de dificuldades de aprendizado de matemática que se dê com uma poção mágica ou uma postagem em um blog. Existem até mesmo quadros clínicos que praticamente proíbem uma pessoa de estudar esta ciência, como discalculia e certos tipos de epilepsia. Por isso, a última recomendação é a seguinte: procure contato permanente mais próximo com pessoas que apoiem seus sonhos. 

sábado, 22 de setembro de 2012

Como desestimular os bons alunos



O texto a seguir é de autoria do Professor José Mario Martínez, do Departamento de Matemática Aplicada da Universidade Estadual de Campinas. Originalmente foi publicado na página pessoal do autor em abril de 2003. Ele gentilmente permitiu que seu texto fosse reproduzido aqui. Agradeço a Aline Pêgas Pereira pela recomendação deste pequeno manual para desestimular os bons alunos, o qual me parece extremamente eficaz. Apenas lamento que eu mesmo não tenha tido a ideia de escrever uma postagem tão genial quanto o que segue abaixo. Isso porque tudo o que o Professor Martínez escreve é exatamente o dia-a-dia das universidades públicas deste país.

Os bons alunos são muito chatos. Eles são arrogantes, pretensiosos, vem nos incomodar nas nossas salas, fazem perguntas que não sabemos responder, são exigentes e, em última análise, ameaçam nossas posições acadêmicas e nossas convicções democráticas e igualitárias.

Depois de muitos anos de experiências acumuladas por mim e por meus colegas, resolvi elaborar este decálogo que, espero, contribua para eliminar tão perniciosa casta de nossa Universidade.
 
1. Mostre-se sempre infeliz. Esteja triste e desanimado. Diga, nas suas aulas, que a carreira acadêmica não vale a pena, e que as perspectivas de emprego são remotas. Insista em que a Universidade está sucateada ou que está dominada por caciques impenetráveis, segundo sua preferência. Insinue sempre que eles escolheram de maneira errada sua profissão e que aquele seu colega de escola que era bem burrinho e vagabundo ganha muito mais que você. Fomente a ideia de que, no mercado de trabalho, o que mais importa é saber inglês e se dar bem na entrevista. Jamais deixe escapar que o conhecimento e a pesquisa fornecem momentos de autêntica alegria.
 
2. Comece suas aulas às 8 horas e termine às 10 horas, sem intervalo, e queixe-se de que não dá tempo de dar tudo o que você sabe. Não dê tempo aos bons alunos para refletir ou questionar. Lembre sempre que o objetivo de sua aula é mostrar que você sabe muito mais que eles. Não vacile: humilhe os bons, para que aprendam.
 
3. Suas provas devem ser metade muito fáceis e metade muito difíceis. O objetivo é que, na medida do possível, todos os alunos tirem nota 5, o que contentará os medíocres e diminuirá a vaidade dos bons. Se algum aluno bom, motivado pelo desafio, faz as questões difíceis e não tem tempo para as fáceis, seja inflexível: dê nota 5 para ele.
 
4. Suas provas devem ser longas, porque a velocidade é democrática. Aplique provas longas que possam ser resolvidas decorando 13 fórmulas adequadas às palavras-chave das perguntas. Alunos bons podem pretender deduzir as fórmulas, mas não terão tempo. Zero neles. 
 
5. Aplique provas onde a segunda questão dependa da conta feita na primeira, a terceira da conta da segunda, e assim por diante. Ficam muito elegantes e mostram sua imaginação e compreensão global do tema. A vantagem é que um aluno bom pode errar na primeira conta e tirar zero em conseqüência, o que aumentará muito sua reputação de professor rigoroso.
 
6. Jamais devolva as provas corrigidas para seus alunos. Os alunos bons podem pretender estudar erros e aprender com eles no dia seguinte. Quem sabe até encontram um erro seu. A justificativa para esta atitude é simples: um estudante da Universidade de Utrecht, em 1734, reclamou da nota que tinha tirado na prova de Anatomia 23 anos antes e, como o professor não guardava a cópia, a Universidade foi obrigada a trocar sua nota, de 5 para 6. Não há registros do nome desse estudante, mas todos sabem que foi assim mesmo.
 
7. Como você não devolve as provas, será fácil abaixar alguns pontos na nota dos alunos bons, por motivos fúteis. Faça com que o processo de revisão seja o mais constrangedor possível, para que o aluno se envergonhe de pretender saber por que tirou 9 e não 10, e aceite o desconto nivelador. Marque uma reunião na sua sala para todas as revisões, chegue atrasado, e garanta uma boa fila: o aluno se sentirá mal de se queixar do 9 quando seus colegas estão se queixando do 3.
 
8. Os trabalhos em grupo são uma boa oportunidade de infernizar a vida dos alunos bons. Nunca coloque os alunos bons no mesmo grupo: eles podem se potencializar e ficar melhores ainda. Coloque o aluno bom com colegas bem fraquinhos e chatinhos, de maneira que ele tenha que fazer tudo e sofra. 
 
9. Os painéis nos congressos de iniciação cientifica também são uma excelente oportunidade de desestimular alunos bons. Passeie entre os painéis admirando aqueles pôsteres que incluem texturas coloridas, relevos, e os mais avançados meios de apresentação computacional e posterológica. Despreze pôsteres apressados e manuscritos. Não deixe de enfatizar que, nesta etapa da vida, é mais importante a forma que o conteúdo. 
 
10. Nas reuniões de departamento, defenda sempre as propostas mais burocráticas e formais. Pré-requisitos, horários rígidos, barreiras para trancamento e mudança de turma. Proponha, sempre,  incluir mais disciplinas no seu curso. É necessário ter os alunos bons bastante ocupados com bobagens formais, para que não perguntem.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Livro-Texto: o Exemplo da Álgebra Linear



Não existe autor ou professor inquestionavelmente confiável como profissional do ensino.

Um dos principais problemas na formação de professores e pesquisadores é a adoção do (quase bíblico) livro-texto nos estudos universitários. Se compararmos cuidadosamente diferentes livros usados como referência única em disciplinas comuns aos cursos de graduação em matemática, sempre perceberemos variações conceituais, muitas delas significativas. Elas são devidas a diferenças de abordagens, ignorância de autores, erros ocasionais, abusos de linguagem, falta de uma devida contextualização, erros de tradução, erros de digitação, falhas de revisão, entre outras possíveis e frequentes causas. Analisemos, como exemplo, o caso da álgebra linear.

Álgebra linear é uma disciplina estratégica e, por isso, sempre lecionada em cursos superiores de matemática. É o estudo de espaços vetoriais e de transformações lineares entre tais espaços. Trata-se de importante área tanto do ponto de vista de aplicações quanto da visão matemática que encerra em si. 

Em aplicações, espaços vetoriais viabilizam, por exemplo, a descrição matemática de campos em física. Um campo, grosso modo, é uma atribuição de uma grandeza física a cada ponto do espaço e do tempo. Como existem infinitos pontos no espaço e infinitos instantes em um intervalo de tempo (nas formulações usuais, pelo menos), o conceito de espaço vetorial torna-se útil pelo fato de permitir a descrição desses infinitos pontos a partir de uma quantia menor (muitas vezes finita) de informações. Isso deriva do conceito de base de um espaço vetorial. Um campo vetorial que descreve um campo elétrico no espaço tridimensional – apenas para citar um caso muito especial – pode ser caracterizado por apenas três vetores e três funções escalares correspondentes, uma vez que usualmente considera-se que o espaço físico nesta situação tem três dimensões. 

Já do ponto de vista matemático, a álgebra linear fornece ferramentas para o estudo de outras áreas da matemática, como equações diferenciais. Viabiliza, desse modo, a visão de equações diferenciais (citando apenas um exemplo) sob uma nova perspectiva, em comparação com o cálculo diferencial e integral. Teoremas de álgebra linear podem ser usados nessa área do conhecimento cujas metas são muito diferenciadas.

Do ponto de vista didático, há pelo menos duas abordagens muito comuns para lecionar álgebra linear. Na primeira se inicia com o estudo de matrizes, geometria analítica, sistemas de equações lineares e funções polinomiais. O objetivo é motivar o estudo posterior dos espaços vetoriais a partir de exemplos menos abstratos do que o tratamento axiomático usual que fundamenta a álgebra linear. A outra abordagem começa diretamente com uma teoria axiomática de espaços vetoriais – assunto extremamente abstrato – e o professor posteriormente introduz espaços de matrizes, de n-uplas ordenadas e de funções como modelos (exemplos) de espaços vetoriais. 

Cada uma dessas abordagens apresenta pontos fortes e fracos. A primeira parece mais adequada para alunos ignorantes sobre teorias de conjuntos. A segunda é mais recomendável para alunos verdadeiramente dedicados. Isso porque a segunda abordagem permite qualificar imediatamente quais são os objetivos da álgebra linear.

Independentemente desse tipo de diferença no tratamento didático, ainda é possível perceber distinções profundas entre livros populares sobre o tema, mesmo do ponto de vista conceitual. Cito dois livros, para ilustrar o que quero dizer. 

Na obra de T. Lawson (Álgebra Linear, Edgar Blücher, 1997), um espaço vetorial é definido como um conjunto V de vetores que tem duas operações binárias (adição de vetores e multiplicação de escalar por vetor) e que satisfazem a certas propriedades colocadas logo a seguir. Já no livro de E. L. Lima (Álgebra Linear, IMPA, 2004), espaço vetorial é definido como um conjunto no qual estão definidas duas operações (novamente a adição de vetores e a multiplicação entre um número real e um vetor) satisfazendo a certas condições chamadas de axiomas de espaço vetorial, também dadas em seguida. 

O linguajar em ambas as obras é confuso já no início, a partir do momento em que um autor fala em um conjunto que tem duas operações e outro discute sobre um conjunto no qual estão definidas duas operações. Ainda que ignoremos essa falta específica de qualificação do vocabulário empregado, em um livro os espaços vetoriais são definidos a partir de propriedades de duas operações, enquanto no outro eles são definidos a partir de axiomas

Para um aluno crítico que conheça qualquer um dos dois livros, isso pode provocar grande confusão, sem que necessariamente ele perceba. E confusões não percebidas conscientemente tendem a se transformar em preconceitos perenes. 

Tais definições podem sugerir que axiomas e propriedades são conceitos do senso comum e que não demandam demais explicações. Do ponto de vista lógico, pode existir uma profunda diferença entre os conceitos de propriedade e axioma. Nenhum dos autores citados deixa claro o que entende por axioma ou propriedade. Estes não são termos triviais, cujos significados possam ser ignorados. Tratar levianamente os conceitos de axioma e de propriedade, mas enfatizar o de espaço vetorial, pode induzir uma visão preconceituosa de que certos termos da matemática são ignoráveis (por serem triviais) e outros não. Essa atitude pode provocar (e na prática provoca!) a sensação de que a matemática é uma arbitrariedade, um fruto da vontade de autores e professores. O segredo para se obter uma boa nota – pode pensar o estudante – é decifrar o que é importante para o professor e o que não é. Trata-se do famoso "tenho que responder como o professor quer". Como matemática exige o exercício de senso crítico, esse tipo de descuido sobre o significado de termos comumente usados em matemática pode distanciar o estudante do que é, de fato, essa ciência. Nenhum livro-texto consegue esgotar assunto algum em matemática, dada a extrema riqueza desta ciência em termos de pontos de vista. 

E se o aluno tiver contato com os dois livros citados, a confusão pode ser pior. Isso porque pode se desenvolver a sensação de que axiomas e propriedades são sinônimos, o que dificilmente pode ser considerado como verdade sem uma devida qualificação.

Minha tese sobre esta questão é a de que a política do uso de um livro-texto em sala de aula pode gerar uma tendência no aprendizado a uma postura preconceituosa. É fundamental que o aluno encontre diversidade de abordagens na literatura, já que ele raramente pode contar com diversidade de professores em uma mesma disciplina. Se o professor de ensino superior limita sua aula àquilo que está escrito no livro, nas notas de aula ou na apostila, jamais deixará claro o que significam termos usualmente não explicados, como as noções de axioma, demonstração, tese, teorema, corolário, lema, proposição, definição etc. Isso pode deixar várias impressões equivocadas nas mentes dos alunos. Podem achar, por exemplo, que não há necessidade de esclarecer o que significa uma propriedade ou um axioma, pois estes são termos comuns em linguagem coloquial, com significados intuitivos do senso comum, facilmente encontrados em dicionários de língua portuguesa. Porém, matemática não se faz com dicionários; não importando se são dicionários de língua portuguesa ou mesmo de matemática.

O senso comum, com freqüência, estabelece que um axioma é uma sentença ou afirmação naturalmente verdadeira e que não precisa ou não pode ser demonstrada. Mas, matematicamente falando, axiomas podem eventualmente ser falsos (em sentido muito preciso) e certamente podem ser demonstrados. Detalhes podem ser vistos, por exemplo, nas postagens Algumas Curiosidades Lógicas e  Espaço, a Fronteira Final?. Se o leitor acha que há alguma contradição ao se afirmar que um axioma pode ser falso e ainda assim demonstrável, é porque este mesmo leitor confunde o aspecto lógico-sintático de uma demonstração com a noção semântica de verdade/falsidade. Lógica é um assunto altamente não-trivial que demanda considerável responsabilidade e muita reflexão. Como a lógica está sempre subjacente (explícita ou implicitamente) a qualquer disciplina matemática, seu estudo sistemático torna-se evidentemente uma necessidade básica pelo menos para o docente e, principalmente, para o autor de livros didáticos.

Definir o conceito de espaço vetorial a partir de propriedades é uma estratégia muito perigosa, pois pode facilmente distanciar o estudante de uma visão mais fundamental sobre espaços vetoriais, limitando-o a uma perspectiva estreita sobre o tema. Se um estudante com forte senso crítico questionar um professor sobre o conceito de propriedade, estará este profissional preparado para responder tal questão? 

Quando um professor adota um livro-texto, parece estar querendo deixar a responsabilidade sobre a parte técnica por conta do autor do livro, para que possa administrar mais livremente questões de ordem didática. Mas o fato é que matemática não se faz sob um único ponto de vista. Enquanto atividade social, a matemática é uma pluralidade de ideias e abordagens, as quais nem sempre podem ser transmitidas aos alunos por uma só pessoa, seja autor ou professor. 

No entanto, o professor ou o autor não podem se perder em detalhes que escapem aos objetivos do tema principal. Se o assunto é álgebra linear, o detalhamento sobre questões de lógica pode desviar severamente do objetivo principal: o estudo de espaços vetoriais. Portanto, encontramo-nos diante de um dilema.

Existem pelo menos três possíveis soluções para as limitações da adoção de livro-texto. Todas, em minha opinião, devem ser adotadas simultaneamente:

1) Todos os conteúdos dados em aula devem ser qualificados da melhor maneira possível, sem fugir aos propósitos da disciplina. Se álgebra linear for lecionada do ponto de vista de sua fundamentação axiomática, o autor do livro e o docente devem deixar claro que o conceito de axioma é não-trivial, mas deve ser estudado em outra ocasião. Para os propósitos imediatos da disciplina, conceitos como axioma, postulado, teorema, demonstração e definição podem ser tratados de maneira puramente intuitiva, a partir da prática matemática. Mas isso tem que ser esclarecido. Ou seja, o estudo usual sobre álgebra linear em livros-texto ou disciplinas usualmente levadas a cabo nas universidades, trata-se apenas de uma primeira aproximação ao assunto, não o esgotando. Referir-se a axiomas como meras propriedades é um perigoso distanciamento da prática matemática de qualidade, pois fomenta a ignorância.

2) Citações a textos complementares devem ser feitas tanto por autores quanto docentes. Essas citações devem ser acompanhadas de breves explicações sobre seus conteúdos. No caso da álgebra linear, devem ser citadas referências sobre lógica (para fundamentar o assunto), física e engenharias (para apontar possíveis aplicações) e história (para ilustrar o desenvolvimento da disciplina), entre outras.

3) Deve existir uma estreita comunicação entre professores de diferentes disciplinas, para que eles mostrem aos seus alunos que os ramos da matemática não estão isolados, mas fazem parte de uma rede multifacetada de conceitos e relações entre conceitos. 

Outro problema preocupante com ambas as definições de espaço vetorial nos livros de álgebra linear mencionados acima é o conceito de conjunto. Quando o aluno se depara com uma definição única de espaço vetorial, pode ficar com a equivocada impressão de que não há ambiguidade em tal conceituação. No entanto, é bem sabido que existem inúmeras teorias de conjuntos na literatura, sejam formais ou intuitivas.

Muitas das teorias de conjuntos que assolam a literatura matemática são incompatíveis entre si, tendo pouquíssimas características em comum. Ou seja, se mudarmos a teoria de conjuntos, mudamos o conceito de espaço vetorial. Para cada teoria de conjuntos pode existir (pelo menos) uma nova definição de espaço vetorial. O fato de os alunos (ou mestres) não conhecerem diferentes teorias de conjuntos não significa, de forma alguma, que elas não possam existir. Se o objetivo de uma universidade ou faculdade é minimizar a ignorância em áreas de especialização, temos aqui um problema sério que somente pode ser resolvido se professores e autores começarem a encarar mais seriamente o fato de que a matemática é um rico fenômeno social que envolve contribuições de muitos especialistas.

Um exemplo bem conhecido da relação entre álgebra linear e lógica é a questão sobre a existência de bases em espaços vetoriais. Se a fundamentação axiomática para espaço vetorial for feita na teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel com o Axioma da Escolha, todo espaço vetorial admite base. Sem o Axioma da Escolha ou uma fórmula equivalente, não há como provar este resultado.

A adoção incondicional de livro-texto pode também dificultar qualquer comunicação entre diferentes disciplinas. Um livro-texto pode ser facilmente percebido como uma ilha no universo da matemática. Se o professor de cálculo diferencial e integral adota apenas um livro como referência, e o professor de álgebra linear adota outro texto único, o estudante pode fixar a ideia, já enraizada desde os medíocres ensinos fundamental e médio, de que a matemática é formada por múltiplas células sem quaisquer conexões entre elas. Essa visão fragmentada também distancia o estudante da matemática em si. Certos problemas bem conhecidos deixam claro que não é possível estabelecer uma fronteira precisa que diferencie cálculo diferencial e integral de álgebra linear. É notório, por exemplo, que um operador de derivação sobre um espaço de funções polinomiais de grau menor ou igual a n (n é um número natural) pode ser representado por uma matriz quadrada de ordem n+1. E representação matricial de operadores lineares é tópico de álgebra linear, apesar de operadores de derivação serem objetos de estudos do cálculo diferencial e integral.

É claro que questionamentos infindáveis sobre fundamentos e interdisciplinaridade podem atrapalhar consideravelmente o estudo de uma disciplina como álgebra linear. Afinal, os alunos precisam conhecer em um semestre ou dois, assuntos como base, dimensão, transformações lineares, operadores lineares, autovalores e autovetores de operadores, sub-espaços vetoriais, bem como resultados de vital importância estratégica, como o teorema espectral. Não há muito espaço, em uma disciplina comum de álgebra linear, para discussões sobre fundamentos, formalismo, rigor, intuição e outras questões que escapem da ementa planejada. Aqueles que se matriculam em um curso superior de matemática precisam aprender tópicos muito específicos e de maneira objetiva e rápida. Isso é vital para o futuro profissional deles, principalmente levando em conta que o tempo de realização de um curso superior não pode ser exageradamente extenso, por motivos institucionais, sociais e individuais. O que fazer, então? 

Já discutimos acima algumas posturas que, concatenadas, podem promover uma solução parcial a este problema. Mas sugiro a seguir outra proposta que pode ser interessante, dependendo do perfil da instituição de ensino.

Uma possível solução ao dilema acima é a introdução de uma série de disciplinas de carga horária reduzida, nos cursos superiores de matemática, nas quais se promovam debates críticos sobre os livros até então usados na graduação. Disciplinas dessa natureza não seriam ministradas por apenas um professor. Elas seriam coordenadas por um docente, o qual convidaria pesquisadores e professores experientes que tenham disposição para debater com os alunos matriculados sobre questões de caráter fundamental. Tais disciplinas deveriam ser ofertadas, uma por vez, em cada semestre ou ano letivo, de modo a sempre estimularem o senso crítico dos alunos que assistem aulas expositivas tradicionais. Se forem semestrais, em um curso de quatro anos de duração, poderiam se chamar Fundamentos I, Fundamentos II, ..., Fundamentos VIII. Para que isso não cause profundo impacto sobre a carga de trabalho  acadêmico dos discentes, as avaliações poderiam ser amenas (com trabalhos feitos em casa, por exemplo) e a carga horária de cada disciplina poderia se limitar a duas horas semanais. Seriam duas horas semanais nas quais os alunos teriam tempo para refletir sobre a matemática altamente técnica e limitada que foi estudada nas disciplinas usuais. Tais disciplinas seriam de interesse aos discentes que se sentissem atraídos por uma visão mais profunda sobre sua formação e que buscassem uma compreensão mais ampla da matemática.

Esta postagem é uma versão preliminar de uma discussão mais aprofundada que pretendo veicular aqui em futuro não muito distante. A ênfase neste texto foi sobre aspectos didáticos do ensino de álgebra linear. Futuramente pretendo discutir sobre os aspectos técnicos desta disciplina, mostrando uma forma rigorosa e bem qualificada para definir o que, afinal de contas, é um espaço vetorial.