domingo, 23 de dezembro de 2012

A Ilusão da Previsibilidade



Feliz Natal a todos!

Mantendo a tradição iniciada no ano passado, ofereço aos professores dos ensinos fundamental e médio mais uma atividade que pode servir de estímulo no aprendizado de matemática.

Considere, por exemplo, a sequência numérica a seguir:

00, 01, 02, 03, 04, 05, 06, 07, 08.

Digamos que alguém pergunte qual é o próximo número. Se o leitor responder 09, está cometendo um erro de raciocínio lógico-matemático. Para ilustrar este argumento, consideremos outra sequência:

01, 03, 00, 13, 02, 10, 15, 16, 06, 04, 07, 11, 05, 14, 09, 08.

Digamos agora que novamente se faça a pergunta: Qual é o próximo número?

Esta é mais difícil de responder do que a anterior? Não.

Muitos acham que a primeira sequência dada acima é, em algum sentido, ordenada e determinística, enquanto a segunda é aleatória e imprevisível. Tanto é assim que sequências como a primeira já foram usadas em testes de QI, demonstrando a limitada inteligência de profissionais que elaboram tais testes. O fato é que apenas olhar para as sequências numéricas, sem quaisquer informações adicionais, não permite responder à questão colocada: "Qual é o próximo número?"

A rigor, sequer é possível determinar se haverá um próximo número!

Considere a seguinte fórmula recursiva:

X(n+1) = [AX(n) + B]mod C

sendo A, B, C, n e X(n) números naturais.

Esta é uma fórmula iterativa que permite obter um número natural X(n+1) a partir de um número natural X(n), dados os valores naturais de A, B e C. A função mod se lê "módulo". A expressão 

[AX(n) + B]mod C

se lê, portanto, como "AX(n) + B módulo C" e corresponde ao resto natural da divisão entre os números naturais AX(n) + B e C.

Consideremos agora o caso particular no qual A = 7, B = 13 e C = 17, ou seja, 

X(n+1) = [7X(n) + 13]mod 17.

Imaginemos, ainda para fins de ilustração, que o primeiro valor do processo iterativo, X(0), seja 1. Isso significa que X(0) = 1.

Substituindo o valor escolhido para X(0) na equação acima, temos X(1) = 3. Isso porque (i) a soma entre o produto entre 7 e 1 e 13 é 20 (7 multiplicado por 1 e, em seguida, somado com 13, é igual a 20); e (ii) 20 dividido por 17 é 1, com resto 3 (ou seja, executamos a operação mod). Se substituirmos X(1) = 3 na mesma equação, obtemos X(2) = 0, usando exatamente o mesmo procedimento.

Repetindo o algoritmo, no qual X(2) gera X(3), X(3) gera X(4), X(4) gera X(5) e assim por diante, obtemos a seguinte sequência de X(0) até X(15): 

01, 03, 00, 13, 02, 10, 15, 16, 06, 04, 07, 11, 05, 14, 09, 08.

Esta é a mesma sequência que anteriormente poderia ser julgada por um espírito precipitado e pouco crítico como sendo aleatória. No entanto, ela pode ser também determinística. 

Se calcularmos o valor de X(16), obtemos 1, o mesmo valor inicial dessa brincadeira. Ou seja, toda a sequência se repete de maneira determinística. A aleatoriedade era ilusória. A informação que o leitor não dispunha no início da discussão era a origem da sequência que escolhi. Portanto, não há como responder qual é o próximo número. Até mesmo uma sequência como 1, 2, 3 pode ser originada de uma aula de dança de salão. Quem dança valsa repete certos movimentos periódicos: 1, 2, 3, 1, 2, 3, 1, 2, 3...

Já a primeira sequência que usei para ilustração poderia ser obtida a partir da equação:

X(n+1) = [1X(n) + 1] mod 9.

Portanto, do ponto de vista de quem a concebeu (eu!) neste contexto também escolhido por mim, o próximo número é 0.

Todas as sequências de números naturais obtidas a partir da equação

X(n+1) = [AX(n) + B]mod C

são determinísticas e periódicas. No entanto, este é o coração de um procedimento muito empregado em computadores e certas calculadoras eletrônicas para gerar sequências aparentemente aleatórias. Tal procedimento faz parte do estudo das famosas sequências pseudo-aleatórias.

Quando vemos animações em computação gráfica de flocos de neve caindo ao chão ou pinguins que marcham aparentemente ao acaso para uma montanha de gelo, tais imagens dependem de dispositivos como este ou similares. Eles criam a ilusão de aleatoriedade. O que o programa de computação gráfica faz é traduzir os números gerados por esses algoritmos como cores, formas e posições em um sistema de referência de duas ou três coordenadas (chamadas muitas vezes de dimensões).

Inúmeras simulações computacionais empregam geradores de sequências numéricas pseudo-aleatórias. Para a geração de grandes sequências, este procedimento é mais barato e prático do que a construção, por exemplo, de mecanismos reais em laboratórios que simulem o acaso.

A escolha dos parâmetros A, B e C no método apresentado acima é crítica e depende de um aparato teórico consideravelmente sofisticado, fora do alcance dos ensinos fundamental e médio. No entanto, sua aplicação em salas de aula do ensino básico demanda apenas o domínio de operações elementares entre números naturais.

Em nosso primeiro exemplo, no qual C vale 17, a repetição começa a ficar evidente com mais do que dezessete iterações. Para efeitos mais convincentes (do ponto de vista intuitivo), valores maiores devem ser escolhidos para o parâmetro C. No entanto, se os parâmetros A e B não forem criteriosamente escolhidos também, mesmo para grandes valores de C podem ocorrer periodicidades em pequenas sequências de números.

Já a escolha da semente X(0) pode depender de dados fornecidos pelo relógio do computador. Assim, dependendo do ano, mês, dia, hora, minuto, segundo e fração de segundo em que o processo iterativo começar a ser executado pela máquina, poderemos ter diferentes valores iniciais para X(0). Isso ajuda a conferir uma maior sensação de aleatoriedade para um mero espectador que apenas observa os resultados, sem conhecer a intimidade do processo de geração de dados. Como este conteúdo pode ser explorado com criativas brincadeiras envolvendo nada além das quatro operações elementares da aritmética, ele se torna perfeitamente acessível aos ensinos fundamental e médio. O contexto computacional pode ser apenas descrito para fins de motivação.

É claro que o estímulo deve ser dado para além de meras contas. Os  alunos precisam saber que a escolha dos parâmetros A, B e C é, em geral, complicada; principalmente se queremos trabalhar com longas sequências de milhares ou milhões de números que pareçam aleatórias.

O fato de uma sequência de números ou movimentos de uma animação em computação gráfica parecer aleatória não significa que de fato o seja. Em compensação, o fato de uma sequência de números parecer previsível, também não significa que seja.

Para que os alunos efetivamente entendam as ideias aqui apresentadas, cabe ao professor instigá-los a criar outros mecanismos matemáticos que produzam sequências pseudo-aleatórias de números. Se tais sequências forem representadas na forma de imagens (via coordenadas em um plano cartesiano, por exemplo), teremos a oportunidade de visualizar a criatividade matemática de nossos jovens. Se tivermos um processo de geração de números pseudo-aleatórios para as abscissas e outro para as ordenadas, teremos a chance de uma visualização de diferentes padrões de aparente caos. E se tais processos puderem ser implementados via programas de computador, em função do caráter iterativo dos algoritmos, temos então a chance de casar matemática com programação de computadores.

Vale observar também que o método apresentado aqui (conhecido como método da congruência), com a equação X(n+1) = [AX(n) + B]mod C, permite que os resultados finais após cada iteração possam ser normalizados, se dividirmos cada X(n+1) por C. Desse modo os resultados finais ficarão confinados ao intervalo fechado [0,1] dos números reais.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Respostas da Trabalhos Universitários e da Poligrafia Acadêmica



Quando o assunto é universidade pública, dificilmente se consegue resposta alguma diante de acusações. Um exemplo recente é a postagem sobre a curta troca de ofícios entre a Coordenação do Curso de Física da UFPR e eu. Jamais tive qualquer retorno à minha carta.

Quando o assunto é a iniciativa privada, quase que certamente podemos contar com respostas, mesmo que sejam bizarras. 

Em reação ao texto sobre o comércio de teses de doutorado, recebi dois e-mails nas últimas horas. 

Como eu havia prometido, encaminhei o link de minha postagem anterior para os dois sites que acusei estarem envolvidos no tráfico de teses e demais trabalhos acadêmicos. Fiz isso justamente para que eles tivessem a oportunidade de defesa.

Seguem abaixo, respectivamente, as respostas da Trabalhos Universitários e da Poligrafia Acadêmica. 

Os erros ortográficos, gramaticais e de pontuação são muitos, principalmente na mensagem da Trabalhos Universitários. Mas ainda é possível compreender o que está escrito. 

Em seguida comento brevemente as respostas.


Resposta da Trabalhos Universitários

Prezada Adonai e Adriane,

Agradecemos a publicidade dada, no entanto, sentimos muito caso tenha entendido de forma errônea a nossa prestação de serviços, no qual é clara que não praticamos a compra e venda de trabalhos acadêmicos, como pode ser observado em nossas orientações gerais que se sobrepõe aos quesitos negociados neste sentido.

Nós fornecemos ao aluno um modelo de base e tal como, a empresa dispõe de um corpo para cuidar e evitar que possíveis utilizações indevidas sejam feitas. Em 2011 (dados tabulados e atualizados) realizamos 19 comunicações à instituições de ensino superior sobre o uso indevido do nosso material de base, onde, pela dificuldade do aluno em escrever e a deficiência do ensino em massa o leva a solicitar ajuda na elaboração do material e pesquisa, onde, certamente, ele apenas pode utilizar-se de alguns trechos permitidos em contrato e não apresentar como sendo seu em sua instituição, o que é vedado em nosso contrato, cujo qual está disponível em nosso site, para download, na área do cliente.

Neste sendido, esperamos continuar contribuindo por longos anos à deficiência educacional de nosso país, à base de diversos orientadores fracassados e alunos despreparados por conta deles que, sem nenhum auxílio, chegam até nós para que o ajudêmos.

Caso tenha ficado com alguma dúvida, nosso escritório administrativo estará à disposição.

Ao fim, devemos concordar ao fim de sua matéria que: A crescente quantia de orientadores que não orientam, A pressão exercida pelos órgãos de fomento, A péssima qualidade de muitos projetos de pesquisa.

Assim, apenas solicitamos que reitere a sua matéria deixando claro que o posicionamento de nossa empresa é contra a compra e venda de trabalhos, afinal, em nenhum momento dissemos que é permitido. Se alguma informação ficou dúbia, bastava o cliente, antes de contratar, verificar em nosso contrato, cujo qual verificamos que você não teve acesso, e, no item 1 das Orientações Gerais, ele é vinculado, assim, a sua matéria compara nossa empresa a um outro que realmente pratica um ilícito penal que descordamos, afinal, nossa equipe tem uma base de professores para auxiliar durante todo o desenvolvimento, tal é preciso determinado prazo para o desenvolvimento e o valor, uma vez que se utilziriam diversos profissionais para apoiar o aluno e realizar a pesquisa em conjunto com ele, tal como é previsto em contrato.

Desejamos à todos um excelente final de ano e nos colocamos à disposição pelo contato@trabalhosuniversitarios.com.br pois neste é tratado sobre o pedido 12010592 exclusivamente.

Atenciosamente,

PLANTÃO DE ATENDIMENTO GAMA



Resposta da Poligrafia Acadêmica


Prezados estudantes,

Em face da matéria sobre "venda de teses de doutorado", de Adonai Santana, inicialmente, cumpre-nos a querer exigir que seja mencionado o nome de Adriane Mazola Russ, como o nome da "amiga" usado por Adonai e que embasa a matéria.

Quanto à questão criminal levantada na matéria, neste momento, apenas gostaríamos de relembrar o art. 299, do Código Penal, sobre falsidade Ideológica:

Falsidade Ideológica

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, se o documento é particular.

Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.

Solicitamos que Adonai Santana insira toda esta resposta na matéria do seu blog.

Atenciosamente,

Prof. Célio e Equipe
Poligrafia Acadêmica
__________

Como era de se esperar, a resposta da Trabalhos Acadêmicos foi relativamente cuidadosa, apesar do paradoxal tom irônico no primeiro parágrafo. 

É importante observar que, em resposta que recebi da própria Trabalhos Universitários em e-mail anterior, fui informado que as chamadas "orientações gerais" constituem o próprio contrato. No entanto, neste suposto contrato (eletrônico) não constam informações que legalmente suportem a identificação das partes envolvidas. 

Já a reação da Poligrafia Acadêmica foi de surpreendente raiva e, portanto, pouco profissional. Se a Poligrafia Acadêmica realmente deseja me processar por crime de falsidade ideológica, esta será uma excelente oportunidade para a exposição pública de suas atividades para muito além deste blog.

Para facilitar a transparência dessas discussões, aviso que vou inserir um link na postagem anterior que permita acesso imediato a este texto. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Vendo Teses de Doutorado (em qualquer área!)



Nesta postagem discuto sobre parte do complexo mercado negro de teses, dissertações e artigos científicos no Brasil. Mostro, entre outras coisas, como obter uma prévia de tese de doutorado de cem páginas em quinze dias e sem escrever uma única palavra, além das necessárias para fazer o pedido. Mesmo em países europeus e até nos Estados Unidos textos acadêmicos são comercializados a granel. Mas o Brasil mostra mais uma vez ser um local privilegiado para este tipo de ação criminosa.

O título acima é para atrair a atenção não apenas dos leitores usuais deste blog mas, também, das criaturas amorais que não conseguem avaliar a profunda gravidade profissional, acadêmica, pessoal, moral, social e criminal do plágio.

Mas, antes, vamos explorar um pouco a respeito do que já foi uma tese de doutorado em passado não muito remoto.

A tese de doutorado do grande físico francês Louis de Broglie rendeu nada menos do que o Prêmio Nobel. Quando de Broglie apresentou sua tese para os examinadores da banca, o trabalho denunciou uma originalidade tão surpreendente que eles, receosos, foram obrigados a consultar um colega de profissão: Albert Einstein. Este físico alemão, que dispensa apresentações, leu a tese daquele jovem francês e a aprovou. 

As teses de doutorado do austríaco Kurt Gödel e do francês Henri Lebesgue são outros exemplos bem conhecidos de obras de enorme impacto em lógica e análise matemática, respectivamente. 

Mas estes e demais casos análogos fazem parte de um passado que está simplesmente morrendo. Obter um título de doutor, hoje em dia, virou um negócio financeiro. É um negócio que deve render, em geral, um salário melhor em universidades e demais instituições acadêmicas. E este fenômeno é especialmente marcante no Brasil, um país sem tradição alguma na produção de conhecimento e que praticamente desconhece o significado da palavra "mérito". Nas universidades federais, por exemplo, basta o professor ter o título de doutor para garantir seu cargo como Professor Adjunto. 

Como o Brasil é essencialmente um país de moral flexível, é claro que o negócio da obtenção do título de doutor deu ampla margem para a fraude.

Poligrafia Acadêmica é um site liderado por um indivíduo que se autodenomina Professor Célio. Isso mesmo! Assim como a plástica cantora e atriz Cher, ele não tem sobrenome. Neste site é possível literalmente comprar trabalhos acadêmicos, desde monografias de conclusão de curso até teses de doutorado e de pós-doutorado, passando por artigos científicos e projetos de pesquisa, entre outros. Isso porque ele conta com uma equipe de professores (geralmente aposentados, segundo o site) de inúmeras áreas do conhecimento. 

Fiz, então, uma experiência. Enviei dois e-mails de primeiro contato para o Professor Célio, encomendando duas teses de doutorado. Uma das mensagens foi enviada em meu nome, solicitando uma tese sobre aplicação do teorema do índice de Atiyah-Singer no problema das cópias de gauge (tema de minha própria tese de doutorado, defendida em 1994 na Universidade de São Paulo). O outro e-mail foi enviado em nome de uma amiga, a qual concordou com a minha estratégia. Nesta segunda mensagem encomendei uma tese de doutorado em filosofia, sobre o papel do filósofo da ciência na atividade científica. Ou seja, no primeiro e-mail solicitei um tema muito específico e altamente técnico. Já no segundo, escolhi um tema muito mais abrangente e, portanto, mais fácil de ser explorado por charlatões. Em ambos os casos coloquei o primeiro semestre de 2013 como data limite para a entrega dos trabalhos.

Ainda não recebi qualquer retorno do primeiro e-mail. Mas a resposta ao segundo chegou rapidamente e é reproduzida abaixo:
­­­­­­­­­­­­___________________

Bom dia

Agradecemos o seu contato.

Como a sua tese deverá ser apresentada em meados de 2013 e, provavelmente, sua orientadora deverá querer prévias do trabalho, informamos que, para a sua área, o valor da lauda é de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais). 

Nosso procedimento é o de receber por uma certa quantidade de folhas e lhe enviamos, após determinado prazo. Após a sua aprovação, novo pagamento deverá ser realizado, para outra quantidade de páginas, até o término do seu trabalho. 

Vc definiu um tema muito genérico e é vasta a bibliografia e o direcionamento dos capítulos pode também ser feito de inúmeras maneiras. Se vc quiser, nós podemos definir tudo para vc. 
Caso vc queira continuar as tratativas, estaremos à disposição.

Atc.,

Prof. Célio e Equipe
Poligrafia Acadêmica
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Vale observar que em nenhum momento foi sugerido que minha amiga teria a orientação de uma mulher. O próprio Professor Célio assumiu a existência de uma orientadora. 

Respondi que o preço era alto e que eu gostaria de saber quem redigiria o texto. Não houve qualquer resposta até o presente momento.

Novamente usando o nome de minha amiga (e novamente com a sua gentil permissão), encomendei uma tese de doutorado em filosofia, sobre o mesmo tema acima citado, para a empresa Trabalhos Universitários. Esta, com sede em São Paulo, existe há onze anos e atende a três continentes, incluindo Europa. 

O ambiente virtual da Trabalhos Universitários é bem mais profissional. Esta empresa alega ser a maior do gênero na América Latina. Em caracteres minúsculos, ao pé da página principal, há uma importante observação: 

"A Trabalhos Universitários não faz parte do comércio de compra e venda de trabalhos acadêmicos prontos e é totalmente contra a esta prática. Não auxiliamos quem compra e nem apoia quem quer comprar ou vender. Auxiliamos através de modelos e assessoria conjunta de profissionais exclusivos para tal função, proibindo o uso de nossos conteúdos como sendo de nosso cliente, tendo como foco, o estudo. Trabalhamos em conformidade com a Lei 9.610/98."

Recebi a seguinte resposta à minha solicitação:
___________

Obrigado por ter entrado em contato com a Trabalhos Universitários. Para poder te ajudar a realizar o trabalho, precisamos de algumas informações adicionais para compreendermos corretamente o que você precisa e assim, realizarmos um trabalho com o máximo de qualidade para você!

- O que você tem em mente em relação a esse trabalho?

- Dentro do tema escolhido, quais assuntos você tem mais interesse que desenvolvamos no trabalho?

- Existe algum manual referente a este pedido, ou outro que possa ajudar no desenvolvimento?

Ficamos no aguardo do seu retorno o mais breve possível.

Atenciosamente,

CRISTINA MENEZES
___________

Ou seja, o pedido não foi imediatamente recusado, apesar de eu ter afirmado (em nome de minha amiga) que eu não tinha tempo disponível para escrever tese alguma. 

Minha resposta segue abaixo:
____________

Oi, Cristina

A principal referência apontada pela minha orientadora é o livro abaixo

http://cslipublications.stanford.edu/site/1575863332.shtml

Neste livro o autor defende que o filósofo da ciência deve, hoje em dia, participar do desenvolvimento científico resolvendo problemas sobre os fundamentos da ciência. O objetivo principal da tese é questionar esta proposta como algo relevante ao filósofo, o qual tradicionalmente analisa as dimensões epistemológica, metodológica e ontológica da ciência, sem necessariamente resolver problema científico algum.

Preciso saber se há condições de vocês realizarem este trabalho para mim, pois estou realmente sem tempo para escrever.

Fico aguardando
____________

A imediata resposta da Trabalhos Universitários foi um e-mail com o orçamento e instruções gerais (contrato), os quais não reproduzo detalhadamente aqui por ser uma mensagem muito extensa. Mas posso encaminhá-la na íntegra para eventuais interessados. Resumidamente, a tese foi orçada em R$ 3.580,00 (valor total a prazo) ou R$ 3.480,00 (valor total à vista). Isso para um documento de cem páginas. O pagamento pode ser parcelado em cinco vezes via depósito ou transferência (em quatro agências de quatro bancos diferentes) ou boleto bancário. Há também a opção de parcelar em doze vezes em cartão de crédito. Segundo a Trabalhos Universitários, uma prévia da tese é enviada em média dentro do prazo de quinze dias

No item 9 do contrato consta a seguinte informação: 

"A finalidade deste pedido é exclusiva como base de estudo. O mesmo será executado de acordo com as características aqui descritas, manuais e orientações já enviadas para confecção do orçamento."

Portanto, a advertência de que a Trabalhos Universitários não faz parte do comércio de compra e venda de trabalhos acadêmicos prontos é, no mínimo, contraditória. Afinal, nos primeiros contatos ficou claro que o solicitante não teria tempo para escrever a tese. Além disso, o contrato não proíbe que o solicitante use o material enviado como produto final em sua defesa de tese.

Estes fatos sugerem que a Trabalhos Universitários faz parte do comércio de vendas de trabalhos acadêmicos prontos. Isso porque não foram mencionados instrumentos legais que protejam os direitos de cópia dos trabalhos enviados aos seus clientes.

Além disso, não podemos esquecer de um fato muito simples. Se um estudante de doutorado tem um orientador, por que precisaria de um serviço como este?

Importante observar que na página da Trabalhos Universitários há a seguinte consideração sobre teses de doutorado: 

"A Tese é considerada no meio acadêmico como o trabalho mais representativo da vida de um acadêmico. Isso pois, quem passa por um Doutorado, jamais é o mesmo! Com a grande complexidade de uma Tese, a equipe Trabalhos Universitários oferece a você o serviço de confecção e/ou suporte para elaboração de sua Tese."

Em primeiro lugar, somente em casos muito raros uma tese de doutorado pode ser considerada como o trabalho mais representativo da vida de um acadêmico. Usualmente um curso de doutorado é uma mera preparação para o profissional se familiarizar com a atividade de pesquisa de alto nível. O trabalho mais importante de qualquer profissional da pesquisa acadêmica somente pode ser definido após extensa carreira em atividades científicas. E, em segundo lugar, como pode ser tão importante uma tese de cem páginas cuja primeira prévia é escrita em quinze dias?

É importante esclarecer o motivo para eu ter usado o nome de outra pessoa, além de meu próprio. Como já tenho o título de doutor e esta informação é facilmente encontrada na rede, achei interessante pedir ajuda a uma pessoa de confiança que ainda não obteve tal título, apesar de ser uma profissional atuante na área acadêmica.

No site português Expresso há uma reportagem interessante sobre o tráfico de teses em Portugal. Afirma-se que uma tese de doutorado pode custar até 1500 euros. Já no Brasil, percebemos que uma tese de doutorado de cem páginas pode custar menos (3480 reais) ou bem mais caro (15000 reais). 

A tese de doutorado do matemático norte-americano John Nash também rendeu o prêmio Nobel. Trata-se de um trabalho de 28 páginas que revolucionou a teoria dos jogos, com profundos reflexos em economia. Aqui no Brasil uma tese deste tamanho jamais seria aceita, pois não teria volume o bastante. Não creio que o Professor Célio aceitasse receber meros 4200 reais por uma tese de 28 páginas, justamente porque ele deve conhecer muito bem a realidade brasileira. E, honestamente, duvido que a equipe do Professor Célio ou mesmo algum aluno universitário deste país conseguisse revolucionar qualquer ramo da ciência com 28 páginas. 

Não estou questionando a capacidade intelectual de nossos jovens, os quais já demonstraram real talento em várias ocasiões. O que questiono é o sistema acadêmico brasileiro em si, que avalia teses de doutorado a partir de volume e quantia de referências, mas que frequentemente se mostra incapaz de perceber plágio e mediocridade quando ele surge diante de seus próprios olhos. 

No Brasil não existe uma definição legal suficientemente clara para o conceito de plágio. Mas parece ser senso jurídico comum que o plagiador é um indivíduo que tenta se passar como autor de uma obra (ou parte dela) que não lhe pertence. A pena mínima prevista no artigo 184 do atual Código Penal Brasileiro é de detenção de três meses a um ano ou multa. Já a pena máxima pode chegar a quatro anos de prisão e multa. E comprar teses de doutorado ou dissertações de mestrado é, definitivamente, plágio. A pena máxima do Código Penal se aplica em casos nos quais o plagiador foi beneficiado financeiramente. Creio que aumento salarial decorrente do título de doutor seja uma boa justificativa para denunciar um benefício financeiro.

Mas uma pergunta natural e inevitável é a seguinte: como é possível o tráfico de teses? 

Os motivos imediatos são relativamente simples de identificar: 

1) A crescente quantia de orientadores que não orientam. Tem sido cada vez mais comum a prática de professores orientadores que praticamente abandonam os seus orientados. Se um orientador não acompanha o trabalho de seu pupilo, certamente está fornecendo condições propícias para o orientado buscar por soluções fáceis, como a compra de trabalhos completos. 

2) A pressão exercida pelos órgãos de fomento. As instituições que tradicionalmente oferecem bolsas e demais recursos para programas de pós-graduação (CNPq, CAPES e fundações de amparo à pesquisa, entre outras) exigem, justamente, resultados. Se alunos matriculados em um curso de pós-graduação não concluírem suas dissertações ou teses nos prazos estabelecidos, isso pode comprometer seriamente o apoio financeiro futuro para o programa e até mesmo a sua continuidade.

3) A péssima qualidade de muitos projetos de pesquisa. Muitos orientadores de programas de pós-graduação em engenharia de produção, por exemplo, aceitam como temas de tese simples aplicações elementares de técnicas matemáticas amplamente conhecidas na literatura. Orientadores de mestrado ou doutorado em literatura ou filosofia, comumente aprovam projetos que são meras exegeses de textos consagrados ou de importância duvidosa. Programas de pós-graduação em educação estão infestados com teses que defendem a ideia de que somente deve ser lecionada (nos ensinos fundamental e médio) a matemática que possa ser identificada com o dia-a-dia dos alunos. Esses temas triviais certamente facilitam para que centenas ou milhares de pessoas sejam capazes de escrever qualquer tese de doutorado ou dissertação de mestrado. 

Em suma, falta (i) ousadia real na maioria esmagadora dos projetos de pesquisa em programas de pós-graduação brasileiros, (ii) flexibilidade para lidar com a incerteza inerente a qualquer pesquisa de ponta e (iii) acompanhamento constante de orientadores. 

Já o motivo mais profundo do tráfico de trabalhos acadêmicos é simplesmente a falta de seriedade. Só isso.

Para finalizar esta breve abordagem sobre o tráfico de teses e dissertações, indico ao leitor o excelente texto do Professor Michel Thiollent, Doutor em Sociologia pela Université Rene Descartes, Paris V, Sorbonne. Em seu artigo, originalmente escrito em português, Thiollent discute, entre outras coisas, sobre programas de computador que detectam fraudes. 

O link desta postagem será imediatamente encaminhado para a Poligrafia Acadêmica e a Trabalhos Universitários.

Espero que um dia o Brasil desperte de seu berço esplêndido e comece a genuinamente se empenhar na produção de conhecimento científico.
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Observação: Veja aqui as respostas da Trabalhos Universitários e da Poligrafia Acadêmica.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Voto Eletrônico no Brasil



Recentemente foi publicado um artigo do Professor Silvio Meira (Professor Titular de Engenharia de Software da Universidade Federal de Pernambuco) sobre a falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil. 

Fiquei sabendo deste artigo através do Professor Marcos Castilho, do Departamento de Informática da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele divulgou o texto de Meira, no último dia 12, para todos os professores do Setor de Ciências Exatas da UFPR. 

No entanto, em 2001, o Professor Castilho já havia alertado a Associação dos Professores da UFPR sobre a falta de segurança do voto eletrônico, uma vez que estava sendo cogitada a possibilidade de adotar este sistema em eleições para Reitor. 

Pedi ao Professor Marcos Castilho permissão para reproduzir seu texto original neste blog. Ele gentilmente concordou e ainda acrescenta que o texto continua atual. 

Espero que os leitores deste blog reflitam com muito cuidado sobre o tema, o qual coloca em xeque tanto a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro quanto o papel da UFPR e demais universidades perante a sociedade.

Boa leitura

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Um bom ataque às vezes começa por uma bola recuada ao meio de campo

Marcos Castilho



Este texto apresenta dois argumentos contra o uso de urnas eletrônicas nas eleições para reitor da UFPR no ano de 2001. O  primeiro deles é puramente técnico, o outro não. 

Do ponto de vista puramente técnico, a realização de votação eletrônica nos moldes hoje praticados no Brasil é inviável. Uma votação eletrônica não é segura e não garante o sigilo do voto do eleitor.

Ainda que se confie 100% na honestidade de todas as pessoas envolvidas com a instalação e configuração da urna (hardware) e dos programas relacionados (sistema operacional e programas de votação e apuração), é impossível garantir a inviolabilidade do sistema, garantindo ao mesmo tempo segurança e privacidade. 

Pessoas não autorizadas podem intervir ilegalmente em vários níveis distintos, tanto no hardware, quanto no sistema operacional, no programa, ou na transmissão dos dados. Os dados podem ser cruzados mesmo a posteriori para indicar o voto dos eleitores,  enfim, são inúmeras e até mesmo indeterminadas as possibilidades de violação de alguma parte ou de todo o processo eletrônico. Para piorar, é impossível a realização de qualquer tipo de verificação, nem  mesmo a recontagem dos votos é possível. Num sistema sujeito a falhas, isto é inaceitável. 

A comunidade científica brasileira da área de Ciência da Computação vem alertando há muitos anos sobre estes problemas, mas apenas recentemente, quando da ocasião da violação dos votos no Senado Federal, esta comunidade foi interrogada, e atualmente existe uma comissão formada pela Sociedade Brasileira de Computação para discutir este tema. Isto significa que o tema "Votação Eletrônica" é objeto de pesquisa de ponta nos dias de hoje. Sendo pesquisa de ponta, não deve ser utilizado até que tecnicamente o problema esteja resolvido. 

A principal  alternativa para resolver parte destes problemas seria o uso simultâneo da eletrônica com o velho e bom papel, que poderia ser gerado por uma impressora acoplada ao terminal de votação, que, uma vez conferido pelo eleitor, seria depositado em uma urna tradicional para posterior análise, sendo a prioridade da verificação do papel, e não da eletrônica.

Isto nos leva ao outro argumento a ser aqui debatido no que diz respeito ao papel que a Universidade deve exercer para a Sociedade Brasileira. Ainda que este sistema de combinação do papel com a eletrônica seja tecnicamente viável em uma instituição como a UFPR (sem entrar no mérito da viabilidade de implementação na prática por parte da Justiça Eleitoral), ele certamente não o é em uma votação de nível nacional, onde eleitores analfabetos votam em comunidades distantes, contabilizando ainda o custo de instalação de impressoras espalhadas pelo Brasil todo.

O argumento é que a Universidade deve estar à frente do mercado e não sujeito a este. Argumentar que todos usam tal metodologia "lá fora" e por isto a Universidade também deve usá-la é inverter este papel. 

A Universidade deveria posicionar-se contrária à votação eletrônica, e esta posição deveria ser repassada à Sociedade, que começaria a tomar ciência do absurdo que é a realização de uma votação puramente eletrônica como se faz hoje. A UFPR estaria assim liderando um grande movimento nacional contra este modelo de votação, e estaria prestando um grande serviço à nação.

Enquanto isto, os cientistas da área estarão investigando soluções viáveis para votação não apenas eletrônica, mas até mesmo pela internet.  Não há dúvida que em algum momento no futuro poderemos votar pela rede sem sairmos de casa. Mas até lá, só nos resta voltar ao velho e bom papel e urna tradicionais, ainda que isto nos custe um pouco de trabalho de contagem manual. 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Quase-Poesia



Enquanto aguardamos as novidades para o início de 2013, que tal mais um exemplo de interface entre matemática, física e filosofia?

Entre as óperas do século 20, as que mais aprecio foram todas compostas por Andrew Lloyd Webber: The Phantom of the Opera, Jesus Christ Superstar, Sunset Boulevard, Starlight Express, Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat, entre outras. Tive a sorte de testemunhar o negro brilho de The Phantom of the Opera no teatro Majestic, na Broadway, em New York, New York.

No entanto, é na ópera Cats (disponível no Brasil em DVD e CD), também de Webber, que há uma leitura excepcional de um dos grandes nomes da literatura mundial: T. S. Eliot. Reproduzo abaixo o único trecho que, de tão extraordinário, simplesmente não foi musicado:


But above and beyond there's still one name left over
And that is the name that you never guess:
The name that no human research can discover
But the cat himself knows, and will never confess.

When you notice a cat in profound meditation
The reason, I tell you, is always the same:
His mind is engaged in a rapt contemplation
Of the thought, of the thought, of the thought of his name

His ineffable, effable, effaninefable
Deep and inscrutable singular name
Name, name, name, name, name, name.

Este é o segredo do nome dos gatos! Segundo Eliot, todo gato tem três nomes: aquele que é dado pelos homens, aquele que é de uso corrente entre os próprios gatos, e um nome oculto e único, que somente o felino realmente o conhece e jamais o revelará a quem quer que seja. É um nome absolutamente insondável. 

O trecho acima reproduzido da obra do magistral poeta e dramaturgo de língua inglesa introduz o Capítulo 5 do livro Identity in Physics (Oxford University Press, 2006), do britânico Steven French e do carioca (quase-curitibano) Décio Krause. 

A referência a The Naming of Cats é perfeita. Isso porque o livro em questão trata do célebre problema da identidade em ciência. 

Quando Heráclito de Éfeso afirmou que o mesmo homem não pode se banhar no mesmo rio mais de uma vez, o mundo ocidental praticamente jogou esta ideia ao próprio rio. A profunda e ampla filosofia de Aristóteles triunfou brilhantemente, com repercussão até os dias de hoje, e Heráclito passou quase que completamente despercebido por filósofos e cientistas. Ainda acreditamos que homem e rio são definidos por algo que os identifica, apesar de ambos mudarem significativamente, com o passar do tempo.

Mas a noção de identidade perdeu significativamente seu status de conceito inquestionável no momento em que surgiu a polêmica mecânica quântica na primeira metade do último século. De acordo com as interpretações usuais desta conturbada área do conhecimento físico, não faz sentido atribuir identidade a partículas elementares, principalmente quando estas se encontram em sistemas cujos estados são descritos através do conhecido emaranhamento quântico. 

Não posso detalhar o formalismo envolvido, pois demanda conhecimentos avançados de análise funcional, o estudo de certos espaços vetoriais conhecidos como espaços de Banach e de Hilbert. E isto escapa aos propósitos deste blog.

Mas espero motivar o leitor para problemas ainda não resolvidos e que parecem merecer atenção. 

Um exemplo bem conhecido é o do átomo excitado. Se um átomo em estado fundamental é excitado por um elétron, ao retornar ao estado fundamental ele libera justamente um elétron. Mas não há experimento que permita determinar se o elétron liberado é o mesmo que foi utilizado para excitar o átomo. Tal limitação no conhecimento físico ocorre tanto no âmbito experimental quanto teórico. Afinal, é impossível rastrear a trajetória de elétrons. É impossível rotulá-los. Como dizia Erwin Schrödinger (talvez o principal criador da mecânica quântica), não se pode pintar um elétron de vermelho. 

Esta ocasional indiscernibilidade entre partículas elementares que compartilham as mesmas propriedades intrínsecas (massa de repouso, carga elétrica, valor absoluto de spin e número de estranheza) é ingrediente fundamental para compreender o comportamento estatístico dos chamados gases quânticos. A mecânica estatística clássica (com distribuições como a de Maxwell-Boltzmann ou de Tsallis) simplesmente não se aplica no domínio quântico. 

O grande matemático russo Yuri Manin chegou a questionar, em conferência patrocinada pela American Mathematical Society, em 1974, que ainda vivemos sob o domínio do lugar-comum (herdado de nossas percepções usuais sobre física clássica), ao assumirmos que podemos distinguir objetos. Isso porque a mecânica quântica sugere que uma coleção de partículas elementares (como fótons ou elétrons) tem um caráter muito menos cantoriano do que um punhado de grãos de areia. 

Para aqueles que não estão familiarizados com o termo "cantoriano", explico. "Cantoriano" deriva de Georg Cantor, criador da teoria intuitiva de conjuntos, no final do século 19. E, para Cantor, um conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si, do ponto de vista de nossa intuição. 

No entanto, se quisermos determinar a função-de-onda que descreve o átomo de Hélio (para prever seu comportamento em certos experimentos) jamais podemos nos limitar ao fato de que este átomo é formado por dois elétrons e dois prótons. Se fosse este o caso, bastaria considerar que a função-de-onda do átomo de Hélio é o produto entre duas funções-de-onda do átomo de Hidrogênio (o qual tem apenas um próton e um elétron). Mas não é este o caso! É fundamental levar em conta que as partículas que formam a eletrosfera do átomo de Hélio são fundamentalmente indistinguíveis entre si. Permutações entre elétrons que compõem esta eletrosfera jamais devem interferir na descrição da função-de-onda do átomo, mesmo quando este se encontra em estado excitado.

Procurando investir em uma solução para o problema de Manin, Décio Krause publicou em 1992 um artigo no tradicional Notre Dame Journal of Formal Logic sobre os bizarros quase-conjuntos.

A teoria de quase-conjuntos abre mão da identidade usual e a substitui por uma relação mais fraca, conhecida como indistinguibilidade, a qual é reflexiva (todo termo é indistinguível de si mesmo), transitiva (se o termo a é indistinguível de b e b é indistinguível de c, então a é indistinguível de c) e simétrica (se a é indistinguível de b, então b é indistinguível de a). A principal diferença entre igualdade e indistinguibilidade reside em uma propriedade conhecida entre os lógicos matemáticos como substitutividade. 

Em 1999 Décio Krause, Analice Gebauer Volkov e eu aplicamos, pela primeira vez, a teoria de quase-conjuntos para modelar tanto as estatísticas quânticas de Bose-Einstein e de Fermi-Dirac, quanto o estado excitado do átomo de Hélio.

Apesar da teoria de quase-conjuntos ser capaz de reproduzir todos os resultados da teoria usual de conjuntos de Zermelo-Fraenkel (a mais conhecida, entre as teorias atuais), ela ainda consegue antecipar um mundo no qual múltiplos objetos podem ser explicitamente indistinguíveis entre si. 

É justamente aí que reside parte da excentricidade da teoria de quase-conjuntos. Do ponto de vista formal, ela trata de um escopo maior do que o universo de discurso da teoria de Zermelo-Fraenkel. No entanto, paga o pesado preço de ser uma teoria na qual é muito difícil de trabalhar, tanto do ponto de vista formal quanto intuitivo. 

Durante minha curta estada no Programa de Pós-Graduação em Física da UFPR, lecionei uma disciplina sobre quase-conjuntos e orientei uma dissertação de mestrado sobre o tema, a qual rendeu artigo em Foundations of Physics. Alexandre Magno Silva Santos (rapaz com estranho senso de humor e que adorava imitar o apresentador de televisão Silvio Santos) e eu mostramos que apesar de distinguibilidade ser condição suficiente para deduzir a estatística clássica de Maxwell-Boltzmann, não era uma condição necessária. Ou seja, mostramos que a estatística usualmente empregada em física clássica era compatível com um universo de objetos indistinguíveis (no escopo da teoria de quase-conjuntos). Portanto, indistinguibilidade não implica necessariamente apenas em estatísticas quânticas. 

Mais tarde, em artigo publicado em Foundations of Physics Letters, mostrei que mesmo na teoria de quase-conjuntos, sempre era possível rotular termos quaisquer, desde que fossem elementos de uma coleção finita. 

Estes resultados, aliados a certas críticas feitas por Nicholas J. J. Smith, colocam em xeque a ideia de que a noção de quase-conjuntos resolve de alguma forma o problema proposto por Yuri Manin em 1974. Afinal, qualquer sistema físico de partículas deve ser, na prática, finito. Neste sentido, o que haveria de não-cantoriano em coleções finitas de objetos contemplados pela teoria de quase-conjuntos? 

Desconheço também quaisquer trabalhos que mostrem aplicações quase-conjuntistas em certos problemas-chave da mecânica quântica. Um deles é o teorema da não-clonagem. É bem sabido que o estado de uma partícula elementar pode ser teletransportado, mas jamais pode ser clonado. Ou seja, é impossível "copiar" o estado de uma partícula em outra, sem modificar o estado da primeira. Isso poderia ser interpretado como uma impossibilidade de se obter certos casos de indistinguibilidade? Existem diferentes hierarquias de indistinguibilidade? 

Outro problema interessante é a relação entre indistinguibilidade e não-localidade, conforme antecipado por Leonard Mandel (em artigo publicado no periódico Optics Letters, em 1991). Qual seria a versão quase-conjuntista deste resultado? Há consequências não-triviais desta relação em teoremas como o de Bell ou de Kochen-Specker?

Mas o problema que me parece mais importante para resolver é o seguinte: será possível honestamente abrir mão da identidade, aquela relação que permite distinguir objetos entre si? Afinal, quando se afirma que todo termo é indistinguível de si mesmo (na teoria de quase-conjuntos), o que significa este "si mesmo"? Do ponto de vista metamatemático ainda estamos assumindo individualidade, mesmo na teoria de quase-conjuntos. Do ponto de vista metalinguístico (ao avaliarmos a teoria formal), ainda se afirma que este a é indistinguível deste mesmo a. Como descaracterizar a noção de individualidade em uma coleção de um único objeto? Portanto, a herança aristotélica ainda está fundamentalmente enraizada em nossa maneira de ver o mundo e em nossos modos de discursar sobre ele, dia após dia, minuto após minuto. 

Ou seja, será honestamente possível descrever de maneira formal a poesia de Heráclito? Ou será que ainda viveremos sob a impressão de que todos os dias acordamos pela manhã como a mesma pessoa que foi dormir ontem?

Enfim, até quando vamos assumir que o terceiro nome do gato de Eliot é apenas uma fábula?

sábado, 8 de dezembro de 2012

Justificativa e Novidade



Parte desta postagem tem o propósito de responder a certos questionamentos levantados pelo leitor André Furtado, conforme prometido dias atrás. Mas o principal objetivo deste texto é apresentar uma justificativa não apenas para o André Furtado, mas para inúmeras outras pessoas que têm tentado me convencer a desistir de minhas tentativas para mudar o ensino público superior. Por isso mesmo incluo nesta postagem uma novidade que deve estimular aqueles que percebem que as universidades federais deste país atingiram um ponto de estagnação irreversível, enquanto não houver mudanças radicais em seus fundamentos.

Não apenas a ciência e a educação brasileiras estão em crise, mas a ciência e a educação no mundo inteiro enfrentam dificuldades graves. 

A ciência atingiu um grau de profissionalismo nas últimas décadas extremamente rígido, sob certos aspectos, e inconsequentemente liberal, sob outros. O pesquisador que não publicar de forma frequente e consistente nos melhores periódicos especializados coloca em sério risco a sua carreira. Em função disso, uma massa imensa de artigos de questionável relevância científica tem sido veiculada mesmo através das melhores editoras. Isso sem falar no número crescente de fraudes científicas: plágios; inclusão de nomes de amigos em projetos, sem a efetiva colaboração dos mesmos; e textos intencionalmente incoerentes que com frequência crescente têm sido publicados.

Estudiosos dos processos educacionais, por outro lado, já percebem há muito tempo que os atuais métodos de ensino não funcionam bem (no sentido de preparo para a cidadania em seu mais amplo sentido, com o devido respeito à individualidade). Mas ninguém até hoje conseguiu apresentar uma proposta alternativa suficientemente convincente, apesar de países como Finlândia terem sistematicamente demonstrado que o modelo deles é muito bem sucedido. O duro é fazer os supostos especialistas e autoridades perceberem isso.

No entanto, cada realidade local tem seus problemas específicos. E neste blog procuro dar ênfase à realidade brasileira. 

Tenho criticado enfaticamente as universidades federais, por motivos já expostos anteriormente. Mas não são apenas as universidades federais que se estagnaram. Em nosso país, as universidades privadas, em geral, também fracassam miseravelmente nas missões de produção de conhecimentos e formação profissional. Existe uma história não documentada nas universidades brasileiras que tem colocado em sério risco o futuro do Brasil. Isso porque sem educação, ciência e tecnologia internacionalmente competitivas, o destino de nossa nação fica cada vez mais nas mãos de nações que investem significativamente nessas áreas. Em conversas de corredor, por exemplo, fala-se cada vez mais dos indivíduos que têm suas monografias de especialização, dissertações de mestrado e até mesmo teses de doutorado escritas por amigos, colegas ou profissionais da fraude. E ainda há os casos de disciplinas em cursos de doutoramento nas quais não existem avaliações escritas. Esta tem sido uma prática acentuada nas instituições privadas de ensino superior. 

A verdade é que nem mesmo nas universidades privadas brasileiras se pratica a meritocracia. Doutores, por exemplo, são evitados a extremos. E produção científica, nem pensar. Na maioria das universidades privadas de nosso país os professores são sobrecarregados com aulas, sem que tenham tempo para qualquer dedicação à pesquisa. E mesmo que a instituição não esteja interessada em pesquisa, como lecionar com a necessária reflexão se um professor deve assumir vinte ou quarenta horas semanais de aula?

Por isso mesmo insisto que o nó principal do ensino superior brasileiro está nas instituições federais. É lá que as mudanças podem e devem ocorrer. Ainda não estamos em condições de contar com qualquer visão socialmente responsável da iniciativa privada brasileira (salvo raras exceções). 

Questionando minha proposta de extinguir a estabilidade irrestrita dada a professores das universidades federais, André Furtado pergunta: "Quais seriam os critérios para definir o que são aulas e pesquisa científica de boa qualidade?"

Há, pelo menos, duas perguntas neste questionamento. A primeira é sobre aulas e a segunda é sobre pesquisa científica. Para responder, estendo a pergunta para duas situações distintas: indivíduos e instituições.

A melhor maneira de uma instituição avaliar se está oferecendo aulas de qualidade é através de associações de ex-alunos. E quem lê meu blog, sabe que eu já respondi a esta questão há muito tempo. Associações de ex-alunos são instrumentos para avaliar o destino profissional dos egressos. Em tais avaliações, sempre serão percebidas falhas. Sempre serão detectados aqueles ex-alunos que estão infelizes em suas carreiras ou que simplesmente abraçaram profissões que nada têm a ver com as suas formações. A partir desta análise, os dirigentes das instituições de ensino estabelecem parâmetros de qualidade que devem ser aplicados aos professores (indivíduos). O profissional que não atender às expectativas de sua instituição, deve ser treinado para fazer isso. Se ainda assim ele não corresponder às expectativas, deve ser demitido. Educação é importante demais para tolerar incompetência.

É importante também que os próprios alunos avaliem a qualidade de aula de seus professores. Os alunos raramente compreenderão o papel desta avaliação, a qual deve permitir, a rigor, uma análise das relações entre alunos, professores e instituição. 

Existem também instrumentos para avaliar a qualidade da produção científica de instituições: citações, registros de patentes e impacto social são exemplos bem conhecidos. A pesquisa da tcheca naturalizada brasileira Johanna Döbereiner, por exemplo, transformou o Brasil no segundo maior produtor de soja do mundo

A partir deste tipo de avaliação (sustentada em resultados), novamente a instituição pode estabelecer políticas internas para definir quem é contratado, quem se mantém no cargo, quem é promovido e quem é demitido. 

Em suma, cada instituição deve estabelecer de forma clara quais são os seus objetivos. A partir disso, fica bem mais fácil definir o perfil profissional esperado de cada professor ou pesquisador. Nas instituições federais de ensino superior, jamais fica claro o que se entende por atividades de pesquisa ou extensão. Portanto, jamais fica claro o que se espera de um professor de universidade federal. Esta realidade definitivamente prejudica a instituição e, consequentemente, a sociedade.

A segunda pergunta que André Furtado faz é: "Quem definiria tais critérios e quem, na prática diária universitária, avaliaria seu cumprimento?"

Os critérios institucionais seriam definidos pelos professores que meritocraticamente conquistaram a estabilidade (a exemplo do que ocorre no bem sucedido modelo acadêmico estadunidense). Eventualmente até poderiam consultar outros profissionais e instituições. Mas a decisão final deve ser deles. E estes mesmos profissionais devem estabelecer os mecanismos de avaliação individual. 

Certamente esta proposta está sujeita a falhas. Qualquer pessoa com senso crítico e experiência descobre facilmente isso. Mas os ajustes a serem feitos posteriormente seriam de natureza fina e não fundamental.

Já ouvi também o ingênuo argumento de que o Governo Federal não é o administrador das universidades federais. Isso é simplesmente falso. Mas respondo a esta questão em outra mídia. É justamente aqui que está a novidade prometida.

Até fevereiro de 2013 será publicado um artigo meu de dez páginas sobre as universidades federais brasileiras, em uma revista de ampla circulação no Brasil e em Portugal. Propus este texto para o editor da revista e ele imediatamente abraçou a ideia. Na verdade, editor e eu estamos trabalhando juntos nesta empreitada, em uma tentativa de despertar pelo menos parte da população e autoridades para a situação escandalosa de nossas instituições públicas de ensino superior. Muitas das informações publicadas no artigo em questão já foram discutidas detalhadamente por aqui. Outras ainda são inéditas. Portanto, o apelo que fiz na centésima postagem está frutificando a partir de iniciativa minha, por enquanto. Espero que os leitores deste blog não desistam e continuem insistindo em tal apelo. 

Tendo isso em mente, respondo agora à principal crítica que recebo, tanto de simpatizantes quanto de oponentes: "Por que, afinal, você insiste nisso tudo?"

Por conta de certas postagens neste blog, já fui chamado de muita coisa: Joana D'Arc, Jesus Cristo, o cara que quer virar mártir, amargurado, louco, frustrado, infeliz, etc. (o etc. inclui adjetivos que prefiro não reproduzir). Frustrado, assumo que sou. Sou frustrado por ter investido seriamente em uma instituição de ensino superior que não leva a sério nem ciência e nem educação. Também sou frustrado por viver em um país no qual apenas uma minoria desarticulada consegue enxergar a imensa cova que o Brasil está cavando para si mesmo. Mas, respondendo à última questão, insisto em criticar a educação e a ciência brasileiras simplesmente porque faz parte de minha natureza, assim como respirar e comer. Só isso. 

Um colega meu (indivíduo extremamente produtivo, do ponto de vista acadêmico) do Departamento de Matemática da UFPR me disse: "Fico pensando se existe alguma instituição na qual você se sentiria bem." Respondi: "No dia em que isso acontecer, estarei morto." 

Quem não percebe os problemas fundamentais da educação brasileira é absolutamente cego e deve ficar longe de qualquer atividade educacional. Quem considera que alguma instituição federal de ensino superior deste país merece ser chamada de universidade, é ingênuo ou sem-vergonha. Quem acredita que existe alguma instituição de ensino superior no mundo que não enfrente problemas sérios, é tolo. Quem não deseja encarar de frente os problemas reais e resolvê-los é covarde ou acomodado. Quem julga sem conhecimento, é irresponsável. Quem desiste, está morto.