segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Analice



Analice Gebauer Volkov (1963-2000) foi professora do Departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi aluna minha, colega de trabalho, colaboradora de pesquisa e amiga. 

Era licenciada em matemática pela UFPR e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Em sua dissertação, orientada pelo Professor Newton da Costa, desenvolveu um projeto de pesquisa sobre teoria de categorias e teoria de conjuntos, na qual consta a seguinte análise (adaptada para as limitações do editor deste blog e das atuais normas da língua portuguesa):

"A noção intuitiva de função pode ser formalizada, em teoria de conjuntos, como uma tripla ordenada f = (A, B, R), onde R é uma relação de A em B (o gráfico de f), tal que para todo x pertencente a A existe um e apenas um y pertencente a B tal que (x,y) pertence a R. Nessa definição, função é um conjunto, um objeto fixo, estático. Isso não reflete o caráter "operacional", de "transição" que faz parte do seu conceito intuitivo. Expressões como "aplicar uma função a um argumento" ou "uma função agindo em um domínio" transmitem a ideia de ação, movimento, o que é evidenciado pelo uso do símbolo de flecha. É similar à ideia transmitida ao se falar em uma força física agindo sobre um objeto. Em matemática aplicada, força pode ser descrita como um campo de vetores da variedade que modela o espaço-tempo, ou seja, é um certo operador (função) cujo domínio é um determinado espaço de funções. Além disso, em geometria, transformações (rotações, reflexões, dilatações etc.) são, também, certas funções que sugerem algo como "movimento". O caráter dinâmico que temos frisado aqui é parte essencial da palavra "função", como usada em matemática. A definição conjuntista de função como conjunto de pares ordenados não tem em si esse caráter. Ela é um "modelo conjuntista" da ideia de função, que captura alguns de seus aspectos, mas não o seu completo significado intuitivo."

Vale observar que o emprego de flechas para denotar funções é algo recente na história da matemática. O primeiro a adotar essa notação foi W. Hurewicz, em artigos da década de 1940 sobre homotopia relativa de grupos. Logo depois surgiram as primeiras formulações para teorias de categorias, as quais oferecem uma visão muito diferente para a fundamentação de teorias matemáticas. Este tema, teoria de categorias, é por demais extenso para ser melhor detalhado nesta postagem. Prefiro focar sobre parte da vida e da obra de Analice, por enquanto. Futuramente pretendo postar algo sobre categorias. O que posso adiantar é que existem certas formulações para teorias de categorias nas quais todos os termos (em uma linguagem de primeira ordem) são morfismos. Intuitivamente falando, morfismos operam como funções. No entanto, na visão conjuntista usual, o domínio de uma função é um conjunto. Em teorias abstratas de categorias o domínio de um morfismo é outro morfismo. Há inúmeras vantagens neste tipo de tratamento, tanto intuitivas quanto práticas. Do ponto de vista intuitivo a visão categorial de morfismo resgata com maior fidelidade a visão dinâmica que usualmente se tem a respeito de funções. Do ponto de vista prático existe uma extensão do conceito de morfismo, conhecida como funtor, que viabiliza uma íntima conexão entre diferentes domínios da matemática, como álgebra e topologia. Problemas algébricos podem ser traduzidos em linguagem topológica, sendo lá resolvidos e tendo suas respostas transportadas novamente para o domínio algébrico (e vice-versa). Tudo isso é feito via o conceito de funtor. Existem inúmeras aplicações de teorias concretas e abstratas de categorias em matemática e física. A literatura sobre o tema é realmente imensa.

Outra abordagem alternativa é a teoria de conjuntos de von Neumann, na qual funções simplesmente não têm domínio. 

Analice trabalhou especificamente com a teoria de categorias da argentina Lia Oubiña. Enquanto Oubiña investiu em uma teoria de categorias relativamente consistente com a teoria de conjuntos de Bourbaki, Analice desenvolveu uma nova versão relativamente consistente à teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Para quem não conhece lógica, vale dizer que até hoje não se sabe se a teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel (ZF) é consistente (se existe algum teorema T em ZF, de tal modo que a negação de T também seja teorema). Daí a necessidade de se falar em consistência relativa. Ou seja, Analice provou que sua formulação para categorias é consistente se, e somente se, ZF também for. 

Pouco depois de sua defesa de mestrado, Analice se tornou professora da UFPR. Ela, Décio Krause e eu desenvolvemos a primeira aplicação da teoria de quase-conjuntos nas estatísticas de Bose-Einstein e Fermi-Dirac em mecânica quântica, bem como na formulação da função-de-onda que descreve o átomo de hélio. Antes mesmo da publicação deste trabalho (em Foundations of Physics Letters), o artigo já foi citado em um workshop sobre o problema da não individualidade de partículas elementares em mecânica quântica, realizado pelas universidades de Notre Dame e de Chicago, nos Estados Unidos. Entre centenas de trabalhos publicados ao longo de décadas sobre o tema, apenas nove foram selecionados. O nosso foi um deles.

Mas Analice não abandonou as teorias de categorias. Continuou investindo nesta área durante seu doutoramento, novamente na USP. 

Sua produção científica não se exprimia em quantidade (como tanto se faz hoje em dia), mas buscava qualidade. Mesmo assim, ela conseguiu publicar um artigo (em livro da Springer-Verlag) quatro anos após a sua morte, em parceria com Newton da Costa e Otávio Bueno. 

Analice, no entanto, não era apenas uma intelectual. Tinha espírito aventureiro e esportivo. Praticou rafting (conquistando um prêmio neste esporte), rappel, montanhismo e paraquedismo. Era uma amante da natureza, que desenvolveu e cultivou múltiplos círculos sociais ligados a mundos usualmente distantes entre si: ciência e esportes. 

Também era uma intensa apreciadora de música. Gostava especialmente das obras do indiano Ravi Shankar e da música Incantations, de Mike Oldfield. Era igualmente atraída pelo cinema. Entre os filmes que mais admirava estavam O Quinto Elemento, de Luc Besson, e Matrix, dos irmãos Wachowski. 

Foi durante seu curso de doutoramento que Analice morreu, no mesmo acidente que arrancou a vida de Beatriz Pierin de Barros e Silva, também professora do Departamento de Matemática da UFPR. 

Analice e Beatriz viajavam de ônibus, de Curitiba para São Paulo. Beatriz tinha acabado de conseguir afastamento para a realização de seu doutorado. Um caminhão, em sentido contrário, transportava uma pesada carga de cristais. Devido a uma manobra irresponsável, aliada às instruções de não prender o container ao caminhão (para minimizar danos em caso de acidente), cerca de quarenta pessoas a bordo do ônibus morreram instantaneamente. Analice não. Ela lutou pela vida durante dias. O caminhão praticamente não teve danos. Beatriz teve seu corpo roubado, em plena estrada. Dias depois foi recuperado, por conta de intensa campanha de seu marido. Brasil. Simplesmente Brasil.

Várias homenagens foram feitas a Analice e Beatriz. Na época, o bloco PC do Centro Politécnico era um prédio recente, com dois anfiteatros: A e B. Por iniciativa do então Diretor do Setor de Ciências Exatas, Professor Hélio Hipólito Simiema, os anfiteatros foram batizados de Analice Gebauer Volkov e Beatriz Pierin de Barros e Silva. Mórbida coincidência. No entanto, entre alunos e professores da instituição ainda existem aqueles que insistem em chamar esses anfiteatros simplesmente de A e B. Novamente Brasil.

Por iniciativa minha, o Departamento de Matemática da UFPR criou os Seminários Analice Gebauer Volkov, às 13:15 h do dia 14 de abril de 2000, durante a 196.a reunião departamental. Esses seminários eram divididos em duas categorias: técnicos e de divulgação científica. Profissionais de diferentes áreas (matemática, física, psicanálise, direito, biologia, filosofia, jornalismo e outras) e de diferentes instituições do Brasil e do exterior, colaboraram ativamente. 

No dia 29 de junho de 2006, porém, ocorreu o último dos seminários, com palestra de Otávio Bueno (University of Miami). Entre os que assistiram estavam presentes Newton da Costa, Décio Krause, Renato Angelo, João Carlos Magalhães, Cesar Cusatis, Aline Pêgas, Elana Bichibichi, André Luiz Furtado e outros membros daquela fabulosa família. Por conta de uma série de problemas os seminários tiveram que ser cancelados. As atas estão comigo.

Novamente por iniciativa minha, um site foi criado, com inúmeras fotos e depoimentos. No entanto, o provedor o retirou do ar.

Outros amigos conseguiram realizar uma homenagem mais bela e perene. Na cidade de Rodeio, em Santa Catarina, existe a belíssima Cachoeira Analice. É a mesma cachoeira onde ela praticou rappel.

Praticamente não existe responsabilidade social no Brasil. E praticamente não existe memória. Muitos textos foram postados aqui apontando para as graves deficiências de nossa nação. Há aqueles que concordam e existem aqueles que, como crianças que jamais viveram, ingenuamente discordam. Mas o fato é que praticamente não existem aqueles que fazem algo concreto para que essa realidade mude. Analice não apenas produziu, mas, principalmente, sonhou, buscou seus sonhos e inspirou. Aqueles que não a conheceram têm aqui a oportunidade de vislumbrar uma fração insignificante de quem ela foi. E quanto aqueles que a conheceram, espero que pelo menos lembrem desta luz que um dia pousou nesta terra.

6 comentários:

  1. Que história chocante, nem imagino a dor que as pessoas que eram companheiras dela devem ter sentido. É muito triste saber (na época, em 2000, eu ainda era criança) que sonhos e uma vida promissora desapareceram desta forma. Espero sinceramente, que os trabalhos dela e de sua amiga não sejam esquecidos.

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    1. Ana Cristina

      O Brasil é um país de pouca memória. Veja, por exemplo, o grande pintor brasileiro Victor Meirelles:

      http://pt.wikipedia.org/wiki/Victor_Meirelles

      Quadros magníficos dele mofaram e foram jogados ao mar.

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  2. Realmente é dificil encontrar um texto tao bem escrito,,parabens pela excelente leitura.,,

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    1. Grato pelo apoio, Flavio. Vi seu perfil através de um de seus blogs. É consideravelmente eclético.

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  3. Adonai, eu conheci a Analice de vista apenas. Acho louvável o fato de você manter a memória do que ela fez, viva. Foi uma colega da nossa geração que deixou algo importante para a história da matemática no país.

    Pode ter certeza que sempre terá alguém valorizando. Talvez não a quantia de pessoa que gostaríamos, mas vale a sua persistência.
    Parabéns.

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    1. Oi, Lucia

      Ótimo contar novamente com sua presença aqui.

      Sempre é tempo demais. Vejo a eternidade como algo um tanto intangível. Mas acredito que entendo as entrelinhas de seu comentário. Grato.

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