quinta-feira, 31 de julho de 2014

Como escolher um professor orientador?


Nesta postagem discuto sobre o delicado problema da escolha de um professor orientador em um curso de graduação ou de pós-graduação. Mas abordo somente os casos de orientação para iniciação científica (IC) e pós-graduação acadêmica. As orientações de atividades como PET (Programa de Educação Tutorial, o antigo Programa Especial de Treinamento), TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) e monitoria são temas para postagens futuras. A pós-graduação profissional também tem caráter muito diferente, como no caso de MBA (Master of Business Administration). Não trato deste tema aqui.

Existem programas de pós-graduação acadêmica que adotam uma estranha estratégia: são os colegiados dos cursos que definem quem orienta quem. Evite esses programas! Colegiados de cursos não estão qualificados para definir se um orientador é adequado para um estudante ou se um estudante é adequado para um professor orientador. A escolha de uma parceria entre orientador e orientando (independentemente se for de IC ou pós-graduação) deve sempre ocorrer por comum acordo entre ambos. Se houver este acordo, e se o candidato for aprovado em todas as etapas de seleção de alunos para o programa, o papel do colegiado se resume a simplesmente decidir se aprova a escolha das partes interessadas. Geralmente a decisão é pela aprovação.

Fique longe também das modalidades de especialização e aperfeiçoamento, quando o assunto é pós-graduação. São geralmente farsas. 

Nesta postagem assumo ainda que um professor orientador deve ser maduro o bastante para saber o que espera de seus orientandos. No entanto, o mesmo não pode ser dito a respeito de quem será orientado. Afinal, maturidade acadêmica é algo que o estudante ainda está buscando.

Em função disso apresento a seguir uma lista de três requisitos que todo professor orientador deve atender. O foco inicial é pós-graduação. Sobre iniciação científica discuto ao final.

1) Produção consistente, sistemática e relevante. O bom orientador é aquele que produz conhecimento. Se um professor pesquisador demonstra estar mais preocupado com ABNT do que com o assunto a ser desenvolvido em seu projeto de pós-graduação, certamente ele não se qualifica como orientador. Produção de conhecimento somente pode ser reconhecida se os relatos de produção forem publicados em veículos internacionais (indexados pelo menos em Web of Knowledge), especializados, com corpo editorial e sistema de referees. Em certas áreas do conhecimento, em nosso país, não existe a tradição de publicação em periódicos internacionais importantes, como ocorre em filosofia e educação. Mas existem maneiras de contornar esta dificuldade: (i) procurar realizar cursos de pós-graduação em boas instituições dos Estados Unidos, Europa ou Ásia; (ii) procurar contato com os raros pesquisadores de nosso país (em filosofia e educação, entre outros exemplos) que publicam no exterior; (iii) procurar programas de pós-graduação em áreas diferentes (da formação do candidato) mas correlatas (por exemplo, um filósofo pode, em princípio, cursar mestrado ou doutorado em física, matemática ou engenharia, se quiser focar em filosofia da ciência ou filosofia da tecnologia). No entanto, não basta que o orientador publique em bons periódicos de circulação internacional. É necessário também que as publicações do orientador sejam guiadas por um "fio condutor". Em outras palavras, o que define o perfil do orientador? O que este pesquisador busca, academicamente falando? Qual é o problema central que serve de orientação para todos os seus projetos de pesquisa? Além disso, o orientador precisa demonstrar produção sistemática. Ou seja, não basta que ele publique um artigo bom a cada dez anos. Há muitos casos de pesquisadores que não publicam ideia alguma há muito tempo. Por último, é igualmente importante que as pesquisas do orientador sejam citadas na literatura especializada, evidenciando a relevância do que produz. 

2) Compromisso com uma rede social academicamente relevante. O bom orientador é aquele que tem bons contatos com pesquisadores de diferentes partes do mundo. O papel de um bom orientador não é apenas orientar a elaboração de uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado. Ele deve colocar o orientando em contato com a vida acadêmica, a qual não tem fronteiras geográficas, a não ser a estratosfera de nosso planeta (por enquanto). No Brasil existe um preconceito com relação a contatos profissionais, frequentemente sintetizado pela sigla QI (Quem Indique). Se você está iniciando sua carreira profissional, não basta fazer um bom trabalho. Precisa ser conhecido entre pares profissionais de diferentes lugares e instituições. Além disso, um único orientador, independentemente de sua competência profissional, jamais pode oferecer uma visão tão ampla quanto aquela que se consegue com dezenas ou centenas de visões de diferentes cantos do planeta. Se o orientando deseja alcançar independência de pensamento, precisa conhecer múltiplas formas de pensamento. Somente assim poderá definir a sua própria.

3) Boa vontade. Um bom orientador não é aquele trata o orientando com delicadeza, mas com educação. No Brasil existe uma confusão muito grande entre educação e delicadeza. Uma pessoa delicada é aquela que trata as demais com tato, com muito cuidado, para não magoá-las. Uma pessoa educada é aquela que tem uma visão bem informada de mundo. Uma pessoa pode ser delicada, sem ser educada. E uma pessoa pode ser educada, sem ser delicada. O bom orientador deve ser educado, mas não delicado. Se o orientador aponta com severidade (porém, com propriedade) para os erros de seu orientando, isso somente contribui para o desenvolvimento intelectual do último. Afinal, não existe caminho suave para a educação. No entanto, não é fácil fazer a distinção entre severidade e má vontade. O bom orientador é um profissional que se empenha no crescimento intelectual de seu orientando. E este é o sentido que aqui emprego para a expressão "boa vontade". Neste link o leitor encontra uma excelente discussão sobre a arte do elogio e da crítica, promovida pelo psicólogo Raj Raghunathan. Uma forma de avaliar se o possível orientador é um profissional de boa vontade é a análise do Curriculum Vitae de seus orientados do passado. Esses orientados se destacaram profissionalmente? Como o brasileiro típico é uma pessoa emocionalmente muito frágil, frequentemente joga fora oportunidades valiosas. Ou seja, se você deseja uma boa orientação, controle suas emoções.

Com relação a iniciação científica, o aluno de graduação pode ser flexível com as exigências 1 e 2 acima, mas não com a 3. 

terça-feira, 29 de julho de 2014

A real importância do estudo de línguas estrangeiras


Esta é a postagem de número 197. Para a postagem de número 200 estou preparando algo muito especial. E o texto que se segue é um pequeno aquecimento.

Sou professor de matemática há quase trinta anos. E sempre tive dificuldade de comunicação com os meus alunos, fossem estudantes de ensino fundamental ou de pós-graduação. Até mesmo neste blog, que é um veículo de textos não técnicos, encontro o mesmo problema. Em função disso criei uma página especificamente para leitores que encontram dificuldades para compreender certas teses aqui defendidas. Naturalmente tenho considerável responsabilidade diante dos problemas de comunicação que menciono, da mesma forma que certos leitores se precipitam com julgamentos baseados fundamentalmente em valores assumidos como indefectíveis. No entanto, existe um fator de extrema importância, usualmente ignorado, que assume um papel possivelmente dominante diante dos problemas de comunicação: linguagem.

Como já foi mencionado em postagem anterior, as linguagens humanas se dividem em duas categorias: formais e naturais.

Linguagens formais são usadas em lógica, matemática e alguns ramos do conhecimento que aplicam lógica e/ou matemática. Já as linguagens naturais são empregadas no dia a dia de praticamente todas as pessoas. São exemplos de linguagens naturais o português, esperanto, inglês, italiano, entre outros exemplos. E neste blog faz-se uso apenas de linguagem natural.

Na mesma postagem acima mencionada, é brevemente discutido o papel de sintaxe, semântica e pragmática nas linguagens naturais. As discussões na literatura especializada sobre linguagens naturais (geralmente feitas a partir do emprego de linguagens naturais) são muito extensas e certamente não posso explorá-las aqui. Mas eu gostaria muito que o leitor refletisse seriamente sobre o seguinte problema: a influência da linguagem sobre a cultura de povos

A língua mais falada no mundo é o mandarim. Estima-se que quase um bilhão de pessoas no mundo se comunicam em mandarim. Mas não é a língua culturalmente mais influente. A língua mais influente em nosso planeta, do ponto de vista cultural, é o inglês, que é a terceira língua mais falada, ficando atrás apenas de mandarim e espanhol. Já o português é a sexta língua mais falada, comparável em números com árabe, bengali e russo. 

Um dos estudos mais fascinantes em linguística é sobre a influência da linguagem na cultura de povos. Por exemplo, em estudo recentemente publicado por três pesquisadores da Stanford University no periódico Cognition, foi relatado que falantes de inglês e falantes de mandarim têm modos distintos de percepção de tempo. Até onde se sabe todos os povos do mundo percebem a noção de tempo em termos espaciais. Por exemplo, um evento do passado ficou para trás e um evento do futuro ocorre adiante. Esta associação entre passado-futuro e para trás-adiante é chamada de percepção horizontal de tempo. Já entre chineses que falam mandarim existe também uma percepção vertical de tempo, algo muito raro entre aqueles cuja língua nativa é o inglês. 

Na mesma época em que foi publicado o artigo em Cognition, The Wall Street Journal veiculou uma extensa reportagem sobre os avanços mais recentes nos estudos sobre as relações entre linguagem e cultura. Até mesmo o infame "wardrobe malfunction", envolvendo os cantores Janet Jackson e Justin Timberlake, é citado. Relatórios escritos sobre o mesmo evento, mas trocando a ordem de apenas duas palavras ("rasgou a roupa" e "a roupa rasgou") mudaram consideravelmente os modos de percepção do público a respeito do que viram no mesmo vídeo. 

A língua pirarrã, por exemplo, falada por menos de duas centenas de índios da região amazônica, pode ser expressa por música. E nesta língua não existe o conceito de número, o que dificulta a distinção entre, digamos, dez crianças e quinze crianças. 

Na língua inglesa, apenas para citar um último exemplo, existe forte ênfase na identificação de agentes responsáveis por ações. Uma das aparentes consequências disso é que a justiça dos países de língua inglesa foca na punição de quem comete crimes e não na restituição ou restauração daquilo que foi perdido por uma vítima. Em outras palavras, justiça é feita quando o criminoso é punido. 

Apesar dos inúmeros discursos sobre a diversidade da cultura brasileira, existem muitos pontos em comum entre diferentes regiões de nosso país. E um dos pontos que mais preocupa é o isolamento cultural do povo brasileiro. Somos uma nação cercada por países que falam espanhol, mas não conhecemos a rica cultura de nossos vizinhos argentinos, chilenos e peruanos. Somos um país inundado pela cultura norte-americana (roupas, cinema, música, tecnologias, alimentos etc) mas até mesmo professores universitários raramente dominam conhecimentos básicos da língua inglesa. Fomos colonizados por alemães, italianos e japoneses e praticamente nada conhecemos das línguas alemã, italiana e japonesa e nem mesmo das culturas dessas nações. E muito pouco sabemos também a respeito de nossas influências africanas. 

Conhecer a língua inglesa é básico, em qualquer nação e, especialmente, no Brasil. Conhecer outros idiomas é mais libertador ainda. Isso porque o foco na língua portuguesa é o foco em uma única cultura (por mais que se creia ser multifacetada), que pode estar severamente limitando até mesmo os modos de percepção do povo brasileiro a respeito do mundo em que vive e do país onde vive. 

E matemática não está fora desta discussão. Isso porque a matemática oferece outras formas de linguagem que libertam seus estudiosos de vícios linguísticos e culturais e de visões estreitas de mundo. São muitos os autores neste país que insistem no ensino de uma matemática que se identifique com o cotidiano dos alunos. Este é um caminho que apenas reforça o isolamento cultural de nosso país. Um dos aspectos mais belos da matemática é justamente o fato desta disciplina oferecer visões novas de mundo, não antecipadas pelo cotidiano. E simultaneamente lidar com a contradição das aplicações da matemática no cotidiano é uma forma de enriquecer mais ainda a visão de que o mundo em que vivemos é um grande mistério. 

Em postagem anterior apresentei uma proposta de estudo para ensino médio que concatene matemática com o estudo de línguas. Nada naquele texto é novidade. Mas no ensino médio brasileiro ainda é um grande anátema. Isso porque o tema quase nunca é discutido em graduações de letras e, aparentemente, profissionais de letras desconfiam das intenções dos matemáticos. 

Estudar línguas estrangeiras é uma forma de desenvolver novos modos de percepção do mundo. Estudar matemática oferece, ainda, uma visão que nenhuma linguagem natural consegue expressar. Ou seja, não existe apenas a contraparte pragmática na educação. Educação não serve apenas ao propósito de melhorar condições de vida de um povo. Mas serve também ao propósito de questionar aquilo que se crê já estabelecido. Não se iluda, leitor, com o discurso da diversidade cultural de nossa nação. A atual diversidade cultural brasileira é apenas prato com sopa de letras em meio a uma grande biblioteca.

sábado, 26 de julho de 2014

A ciência indisponível na internet


Acabo de ler a seguinte notícia na internet: "Nos próximos dez anos, a expressão “não sei” vai desaparecer. O mundo todo estará conectado, com internet banda-larga gratuita distribuída por drones, balões, ou microssatélites, e qualquer dúvida será resolvida quase instantaneamente. A previsão é do venezuelano José Cordeiro, professor da Singularity University, localizada em uma base de pesquisa da Nasa, no Vale do Silício (EUA). “Poderemos usar nosso cérebro para coisas mais importantes, mais interessantes e mais inovadoras. Para tarefas repetitivas, teremos os robôs e a inteligência artificial”, resume."

Tento crer que o texto acima citado é apenas mais uma das incontáveis confusões que jornalistas e editores fazem ao tentar transcrever as palavras de um entrevistado. Tento crer que o corpo docente da Singularity University tenha uma mentalidade mais madura do que se sugere na entrevista com José Cordeiro. Tento crer que o mundo não está tão #&@!@&.

Quando John Horgan lançou seu polêmico livro The End of Science, em 1997, John Maddox apresentou uma estonteante resposta dois anos depois com o seu poético livro What Remains to be Discovered. O fato é que não há indícios de que algum dia a expressão "não sei" possa desaparecer; muito menos em dez anos, por conta da internet. E não estou falando apenas sobre visões científicas que ainda não surgiram, como discute Maddox. Mesmo ramos consolidados da atividade científica apresentam lacunas e até erros que não podem ser resolvidos com uma simples consulta à internet. Isso porque senso crítico, um dos pilares da atividade científica, não é algo que se aprende em textos, vídeos ou quaisquer outras engenhosas mídias. Senso crítico é algo que se desenvolve com prática. Só aprende ciência quem efetivamente faz ciência. O domínio de conhecimento científico não ocorre com atitudes passivas de simples leitura e meditação. A interação social com pares é fundamental. Pois é esta interação que ajuda a desenvolver senso crítico.

Cito abaixo quatro exemplos de conhecimentos científicos relevantes que não são encontrados na internet justamente por serem contrários a uma suposta sabedoria comum ao conhecimento consolidado e meramente repetido em livros e... na internet. Espero que apareçam leitores que contestem a minha tese. Afinal, certamente não examinei todos os sites da internet, para defender a ideia de que a rede mundial de computadores ainda está muito longe de se tornar uma base completa de informações e conhecimentos, mesmo quando nos delimitamos àquilo que já se conhece nos dias de hoje. 

Exemplo 1: Órbitas planetárias podem ser quadradas

De acordo com a primeira lei de Kepler, a órbita de um planeta ao redor do Sol é uma elipse, na qual o Sol ocupa um dos focos. Existem milhares de textos em livros, artigos e sites, em que esta lei é supostamente demonstrada a partir da equação da gravitação universal de Newton e da segunda lei de Newton

Pois bem. Consideremos um caso ideal, no qual há apenas dois corpos no Universo: o Sol e um planeta qualquer o orbitando. Desta forma ignoramos perturbações provocadas por outros astros. Ainda idealizando, consideremos também que Sol e planeta sejam corpos não elásticos, para evitar perturbações orbitais provocadas por fenômenos de marés. Ainda assim é impossível demonstrar a primeira lei de Kepler a partir da equação da gravitação universal e da segunda lei de Newton, sem cair em contradição. Por quê?

A resposta é simples. A concatenação entre a segunda lei de Newton e a gravitação universal implica em um sistema de duas equações diferenciais acopladas (equações 4.2 e 4.3 desta referência). Essas duas equações podem ser reduzidas a uma única equação diferencial que descreve uma dinâmica dependente da massa total do sistema. Para que seja possível demonstrar a primeira lei de Kepler faz-se necessária uma aproximação física na qual se considere que o Sol tem massa muito maior do que o planeta que o orbita. E tal aproximação (que intencionalmente negligencia a massa do planeta), na prática, implica em considerar o Sol como um sistema inercial de referência. No entanto, considerar o Sol como um sistema inercial, neste contexto, contradiz justamente a segunda lei de Newton (usada na própria demonstração). Isso porque o planeta exerce uma força sobre o Sol que, apesar de muito pequena (por comparação), não é nula. Portanto, as demonstrações da primeira lei de Kepler são feitas a partir de uma contradição. Ora, e se alguém espelhar tais demonstrações em um sistema formal axiomático? Assumindo que este alguém use como lógica subjacente a lógica clássica (não creio que físicos fizessem oposição a isso), tal pessoa será obrigada a incluir na demonstração a tal da aproximação (que assume o Sol como um sistema inercial) na forma de novo axioma ou premissa, além dos axiomas que impõem a gravitação universal e a segunda lei de Newton. Como este novo axioma (ou premissa) será necessariamente inconsistente com a segunda lei de Newton, não haverá surpresa alguma na demonstração da primeira lei de Kepler. Isso porque, no âmbito da lógica clássica, contradições permitem inferir qualquer fórmula da teoria como teorema. Portanto, é também teorema que as órbitas planetárias são quadradas. Neste mesmo contexto, também é teorema que as órbitas são triangulares ou simplesmente retilíneas.

E, para piorar este quadro todo, há também demonstração das leis de Kepler que não faz uso sequer do conceito de força

Se o leitor estiver motivado pelo aspecto intuitivo desta discussão, recomendo as animações que aparecem neste texto da Wikipedia. São bonitinhas.

Exemplo 2: Quando uns são mais iguais do que outros

Anos atrás Décio Krause, Aurélio Sartorelli e eu publicamos no tradicionalíssimo periódico belga Logique et Analyse um artigo no qual testamos os limites do conceito de igualdade em teorias aparentadas com a usual teoria de conjuntos de Zermelo-Fraenkel. Enfraquecemos a noção de igualdade de modo a ainda manter as propriedades usuais de igualdade. E mostramos a partir de que ponto esse processo de enfraquecimento conduz a uma "relação binária" que deixa de ser a igualdade. Mas a questão realmente importante é a seguinte: será que nós conseguimos contemplar todos os casos possíveis que separam igualdade de outras "relações" que não se identificam com igualdade? Não sei.

Exemplo 3: Recursivos sim, mas nem tanto

Desde séculos atrás o ser humano vem tentando encontrar evidências (científicas ou não) que o coloquem como uma espécie intelectualmente privilegiada entre as demais existentes neste planeta Terra. Uma das mais recentes é o uso de recursividade na linguagem. Grosso modo, recursividade em linguística se traduz como o emprego de uma quantia finita de elementos de um alfabeto para gerar uma quantia infinita de frases. Definições recursivas são muito comuns em matemática e, particularmente, em lógica. Além disso, porções significativas da matemática podem ser formalmente tratadas através do emprego de uma linguagem formal conhecida como cálculo predicativo, o qual faz uso dos quantificadores existencial (EXISTE um x tal que P(x), sendo P uma propriedade, intuitivamente falando) e universal (PARA TODO x temos que P(x), sendo P uma propriedade, intuitivamente falando). No entanto, até onde sei, nenhum teorema relevante da matemática pode ser traduzido para o cálculo predicativo de modo a fazer uso de mais do que quatro ocorrências alternadas de quantificadores. Por quê isso? Há alguma limitação cognitiva no ser humano que o impeça de compreender mais do que quatro ocorrências alternadas de quantificadores? Ou seja, os matemáticos caíram em uma armadilha, criando formalismos que encerram conhecimentos inacessíveis pelo intelecto humano? Onde está a tão louvada recursividade? Por isso publiquei, anos atrás, o texto sobre o estudante brilhante.

Exemplo 4: Entender sim, mas nem tanto

Todo bom livro de cálculo diferencial e integral apresenta a definição usual de limite de uma função real. E, a partir de intuições, teoremas, exemplos e exercícios, espera-se que o aluno se familiarize com tal conceito. No entanto, existem infinitas maneiras de alterar a definição de limite, ainda mantendo os mesmos teoremas. E existem infinitas maneiras de alterar a definição de limite de modo a manter alguns teoremas, mas outros não. A escolha historicamente definida para o conceito de limite de uma função real (conforme se apresenta em livros sobre o tema) atende a certos propósitos muito específicos e de caráter metamatemático. Em suma, toda definição em matemática tem um caráter de arbitrariedade. E tal caráter de arbitrariedade sempre tem um contexto histórico, social e pragmático. Como discutir sobre isso sem a efetiva, intensa e sistemática interação entre o interessado e seus pares?

Conclusão

Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados, mas espero ter deixado claro o meu ponto. 

Quem deseja educar, deve semear dúvidas sobre o que está falando ou escrevendo. Extinguir a expressão "não sei" é matar o espírito humano. Quem deseja segurança a partir do conhecimento científico certamente procurou o caminho errado. Certezas, respostas e verdades não são alicerces da ciência, mas superficiais discursos que acalentam leigos e meros usuários dos benefícios e confortos da ciência e da tecnologia. 

Se alguém deseja cultivar algum sonho com a internet, que seja o sonho da dúvida e da incerteza, mas não o delírio das respostas prontas e inquestionáveis.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Veduca


Recentemente foi publicada uma postagem neste blog sobre aulas de cálculo diferencial e integral em vídeo, na qual promovi uma breve análise sobre cinco vídeo-aulas disponibilizadas gratuitamente no YouTube. O objetivo da postagem citada e desta é dar continuidade a uma discussão sobre ensino a distância, iniciada aqui há mais de um ano. Alguns leitores pediram para eu discutir algo sobre programas de ensino a distância como VeducaKhan Academy. Segue abaixo uma discussão a respeito de alguns vídeos de matemática que acessei a partir do site de Veduca. Sobre a Khan Academy será discutido em postagem futura.

Haynes Miller (professor do MIT), em sua vídeo-aula sobre equações diferenciais ordinárias, diz algo que sintetiza com absoluta clareza o valor do ensino a distância na forma de vídeos: "Não vou lhes dizer o que são equações diferenciais ou modelagem. Se ainda não têm certeza sobre essas coisas, o livro tem uma explicação muito longa e muito boa. Basta ler."

Tal vídeo não é exceção em Veduca. Gilbert Strang (também professor do MIT) se refere a algumas de suas vídeo-aulas como "highlights of calculus". E o primeiro vídeo de Strang sobre álgebra linear abre com a apresentação de um livro sobre o tema. Em outras palavras, não é aparente qualquer pretensão de se ensinar matemática nas aulas em vídeo do programa Veduca. Tais ferramentas gratuitas de ensino a distância parecem algo como um mero instrumento de suporte didático. Se alguém deseja realmente aprender matemática, não tem outra opção a não ser ler bons livros de matemática.

Os vídeos que examinei em Veduca são todos meras gravações de aulas tradicionais. Portanto, não apelam para recursos interativos. Quem assiste aos vídeos ainda se encontra em posição passiva, como um tradicional aluno em uma tradicional sala de aula. Mesmo vídeos sobre história ou física, entre outras áreas do saber, seguem este formato. 

Um dos problemas que apontei sobre vídeo-aulas em postagem anterior foi a maior incidência de erros, se compararmos com textos devidamente revisados. Gilbert Strang, por exemplo, deixa claro em seu primeiro vídeo sobre cálculo diferencial e integral que seu principal propósito é esclarecer qual é o objetivo deste ramo do conhecimento. Isso porque muitas vezes alunos podem sentir falta desse tipo de discussão se ficarem limitados a apenas fazer contas. E, tentando caracterizar o que é cálculo diferencial e integral (o que definiria os objetivos desta disciplina), Strang afirma: "para mim cálculo é sobre a relação entre duas funções". Em seguida ele ilustra sua afirmação com exemplos bem conhecidos na literatura.

Pois bem. Teoria de categorias também é um ramo da matemática que poderia ser caracterizado como o estudo de relações entre funções. No entanto, teoria de categorias e cálculo diferencial e integral são assuntos muito diferentes entre si. Assim sendo, cálculo não pode ser definido como o estudo das relações entre funções.

Afirmações sucintas e de caráter geral, como supostas definições sobre o que afinal é cálculo, são sempre questionáveis. Já foi discutido neste blog o problema de avaliações baseadas em respostas. Em um sistema educacional de ótima qualidade, independentemente de ser a distância ou presencial, deveria haver ênfase na visão de alunos e não de professores. Alunos deveriam ser provocados com perguntas de caráter geral: O que é cálculo? O que é álgebra linear? O que é matemática?

Qualquer resposta que seja dada por qualquer aluno estará inevitavelmente errada. E é neste momento que deve entrar o professor. Neste momento o papel do professor é questionar com propriedade as respostas de seus alunos, a partir de exemplos pontuais. Desta forma eles terão a oportunidade de contato com senso crítico. E senso crítico é muito mais importante em matemática do que respostas prontas e entregues de forma não crítica por professores.

Talvez um programa como Veduca tenha algum valor social relevante. No entanto, certamente não serve para fins de efetivo aprendizado de matemática por dois motivos:

1) Não se aprende matemática ouvindo um professor de matemática, da mesma forma que não se aprende a fazer sexo vendo outras pessoas fazendo sexo.

2) Bons livros apresentam conteúdos de matemática de forma tão rica que seria inviável transpor tais conteúdos na forma de vídeo sem torná-los extremamente monótonos.

Aquele que estuda matemática jamais lê um bom livro de matemática da mesma forma que se lê um romance. Trechos precisam ser lidos e relidos inúmeras vezes. Exercícios estratégicos precisam ser resolvidos. Discussões precisam ser promovidas com pares. O aprendizado de matemática é um processo extremamente difícil até mesmo para matemáticos profissionais. Matemática não é assunto que flui naturalmente em pessoa alguma deste nosso planeta. Matemática demanda muito esforço.

Àqueles que assistem aos vídeos do programa Veduca recomendo que continuem a ver tais vídeos, se assim desejarem. Mas assistam a essas aulas de forma crítica. O site Veduca conta com fóruns de discussão. No entanto, em tais fóruns há muitos participantes que conhecem pouca matemática. Portanto, não representam ajuda. É importante que os interessados participem de outros fóruns de discussão em outros ambientes espalhados pela internet. Mas mais desejável ainda é o contato (presencial) com profissionais de reconhecida competência e experiência, para trocas de ideias.

Para que ensino a distância possa funcionar como ferramenta de real aprendizado é necessário que seja realizado um esforço muito maior do que a mera exposição de vídeos, sem oportunidade de interação entre alunos e professores. Assim como o emprego de avançadas tecnologias de computação gráfica no cinema não permite que atores sejam dispensados de produções cinematográficas, o emprego de avançadas tecnologias para aprendizado jamais pode abrir mão da necessidade de bons professores e bons autores. Por mais que a tecnologia avance, as pessoas continuam sendo as mesmas em termos de dificuldades de aprendizado. E matemática é um ramo do conhecimento difícil de aprender. Não há caminho suave.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Privatizar a USP não é a solução


A matéria de capa da edição de 23 de julho deste ano da revista Exame é a Kroton, que se tornou recentemente a maior empresa de educação do mundo. Detalhe: a Kroton é um grupo de ensino brasileiro! Fortemente recomendo aos leitores deste blog que leiam a excelente reportagem da última edição de Exame, que aborda não apenas os aspectos administrativos e econômicos da Kroton, mas também o produto vendido por este gigantesco grupo: educação.

O Brasil, entre as grandes economias, é um dos países com menores taxas de jovens em universidades (13%). Além disso, 38% dos jovens que se formam em cursos superiores de nossa nação são incapazes de interpretar textos ou de fazer contas complexas. E, para piorar, há enorme e crescente demanda entre empregadores, para áreas do conhecimento que não têm sido devidamente estimuladas em nosso país, como engenharias. Portanto, ainda existe muito espaço no mercado de trabalho para instituições privadas de ensino superior. No entanto, mesmo a gigantesca Kroton não tem condições de competir com instituições públicas como a Universidade de São Paulo (USP) ou a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em termos de qualidade de ensino. A UFRGS, por exemplo, alcançou uma média de 428 pontos no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) de 2012, que é quase o dobro da média de instituições privadas. Mas esta é a realidade de hoje. E no futuro?

Para completar este cenário temos a crise na USP, já discutida neste blog em uma brilhante análise promovida pelo professor Carlos de Brito Pereira. E, como já era de se esperar, surgem aqueles que aproveitam o momento para defender a privatização do ensino superior público de nosso país. E o exemplo da Kroton cabe como uma luva nesta discussão, uma vez que 35% da receita deste grupo depende diretamente de financiamentos do governo federal. 

Pois bem, no texto abaixo o professor Carlos de Brito Pereira responde ao leitor Celso Pereira, que simplesmente escreveu o seguinte comentário no dia 07 de julho: "Solução: privatizar!"

Desejo a todos uma leitura crítica desta que já é a segunda colaboração do professor Carlos de Brito Pereira a este blog. 

O texto abaixo é uma adaptação do original. Em breve será disponibilizado aqui um link que permitirá o acesso não apenas ao texto originalmente escrito pelo professor Pereira como também às referências nele citadas.
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Privatizar a USP não é a solução
escrito por Carlos de Brito Pereira

Há um velho ditado em ciência social: “para todo problema complexo, há uma solução simples... e errada!” Truques retóricos à parte, o ditado é sempre repetido em aulas de metodologia para lembrar aos alunos que pensem de forma crítica sobre qualquer resultado de pesquisa antes de concluir o trabalho. A maior parte dos problemas sociais têm múltiplas causas, embora algumas sejam mais importantes do que outras. Além disso, há sempre que checar as respostas com a realidade. Sempre que se diz isto em ciência social, logo surge o velho truque retórico de lembrar que (1) a História não se repete, que (2) lidamos com fatos únicos e que (3) não há laboratório para experimentos sociais em grande escala. Vamos por partes: (1) mais ou menos, (2) é verdade e (3) mais ou menos. Não é tema deste ensaio, mas apenas para lembrar: sempre há a possibilidade de fazermos analogias com fatos históricos e a teoria existe para fazermos modelos e lidarmos com fatos estilizados, o que permite comparações entre o modelo e a realidade, bem como analisar e comparar fatos históricos separados no tempo. É possível fazer experimentos em pequenas escalas (vejam-se os experimentos sobre controle e autoridade em Psicologia Social realizados em meados do século passado, por exemplo, por Stanley Milgram, Solomon Asch, Kurt Lewin e Philip Zimbardo) e atualmente há vários casos de simulação que permitem alguns tipos de experimentos em larga escala (notadamente, modelos baseados em agentes). Portanto, sim, é possível extrair lições dos eventos e aplicá-los no futuro, mesmo em ciência social.

Por que esta longa introdução? Porque após a publicação do meu ensaio “Sobre a Crise na USP”, um dos leitores gentilmente postou um comentário neste blog do Prof. Sant'Anna, sugerindo que a privatização seria a solução para os problemas uspianos. O papel do Estado na economia em particular e na vida das pessoas em geral é sempre tema controverso. Ainda mais no Brasil, onde o Estado é ineficiente para a maioria dos problemas. Mas nem por isso a ausência da ação estatal é a resposta. Na minha área de formação, Economia, a grande conclusão possível é que no caso brasileiro ainda é necessário estatizar o Estado e privatizar a iniciativa privada. Pois no Brasil grupos de pressão se locupletam com a ação estatal, ao mesmo tempo em que vários empresários gritam por proteção de mercado (até mesmo montadoras multinacionais pedem isso no Brasil!). Logo, há que tornar o Estado eficiente e a iniciativa privada independente, com o perdão da rima infeliz.

Já discuti a crise na USP e espero ter mostrado que suas causas vão além do simples problema financeiro ou mesmo de ser estatal. Resumindo meu argumento original: a USP como instituição não tem uma missão e objetivos claros. Disto decorre um problema de organização: a forma como a Universidade é gerida. Somado a isso e talvez também como decorrência, na USP trabalham pessoas que têm ambições distintas daquelas normalmente esperadas em um docente uspiano, que seriam ensinar e fazer pesquisa. Ao longo dos anos, esse tipo de docente (que chamei de “Titular Político” no texto original) passou a ocupar cada vez mais cargos de direção na Universidade, tomando decisões que aparentemente levaram a USP para longe dos seus objetivos fundadores: produção e difusão de conhecimento. Logo, simplesmente trocar o controle da instituição não resolveria os seus problemas. Por outro lado, se a intenção do leitor-comentarista foi sugerir que uma gestão privada seria mais ágil que a pública, eu concordo plenamente.

Qual seria a missão dessa USP privada? Como escrevi no ensaio que motivou o comentário, há várias “USPs”, tantos quanto são seus públicos. Há a cidade universitária paulistana, que para muitos motoristas é apenas ponto de escape do congestionamento de trânsito. Ainda na capital, há o parque botânico usado por ciclistas. Depois, há os hospitais universitários, que prestam atendimento de qualidade à população paulista. E, claro, há o ensino universitário de graduação e pós-graduação. Mesmo no ensino, há desde alunos de graduação que desejam apenas um diploma supostamente gratuito até os que pretendem aprender o máximo possível tanto na carreira em que escolheram quanto na Universidade em geral. Na Pós-Graduação, há desde os alunos que estão adiando o desemprego ou prolongando ao máximo sua adolescência até os que fizeram uma escolha profissional consciente e estão aprimorando os seus conhecimento. As famílias dos alunos também são diferentes entre si no que esperam da Universidade: desde um curso técnico que garanta uma vida melhor até uma experiência de vida que se reflita em amadurecimento intelectual. Temos ainda os deputados estaduais e o Governador que representam a população paulista e ainda o contribuinte paulista que com o seu ICMS sustenta tudo isto. Cada um terá a sua opinião do que é e o que deveria ser a USP. 

E, claro, há a atuação em pesquisa. Muitos associam a atividade de pesquisa à qualidade do ensino, mas essa relação não é direta ou automática. E, de mais a mais, é preciso qualificar o que seja pesquisa – algo que vai além do objetivo deste texto.

Uma USP privada atenderia a qual desses públicos? Uma resposta é certa: qualquer atividade privada deve visar o lucro, de preferência o máximo lucro possível. Logo, atividades não-lucrativas serão sumariamente cortadas. Isto é bom? Cursos com baixa procura provavelmente seguiriam o mesmo caminho. Mas talvez seja importante para o país graduar um certo número de profissionais em áreas não reconhecidas pelo mercado. Talvez seja importante termos centro de pesquisa de excelência (aliás, em todo o mundo há pesquisa financiada com dinheiro público, até mesmo nos EUA).

Ademais, há o mito de que a ação da iniciativa privada é sempre melhor e mais benéfica para a população do que a ação estatal. Isto é falso, assim como é falso que o Estado age sempre em benefício dessa mesma população. Aliás, basta ver o final dos regimes comunistas para saber que a supremacia do Estado na vida das pessoas não é solução para a enorme maioria dos problemas. Mas as várias falências, atos de desonestidade etc. cometidos em e por empresas privadas são a prova de que nem toda ação privada corresponde a benefício público. Se a resposta a este último argumento for que a falha última é de regulação (leis, fiscalização etc.) e que esta cabe ao Estado, temos um problema lógico: ou bem há ação benéfica do Estado ou a defesa da iniciativa privada por si se torna circular.

O problema com todos esses exemplos é a velha questão popperiana do cisne negro: se afirmamos que todos os cisnes são brancos, basta um cisne negro para comprovarmos a falsidade da afirmação. Os autores que defendem privatização costumam rechear seus livros com exemplos de sucesso, mas naturalmente omitem os contraexemplos.

Que fique claro: não estou defendendo ineficiência com dinheiro público. No meu ensaio original, propus o que chamei de “meritocracia radical”. Na minha opinião, esta seria a melhor forma de evitar desperdício de dinheiro, além de retomar a função original de uma grande universidade, seja pública ou privada: produzir e difundir conhecimento.

Por tudo isso, apenas privatizar não seria a solução. Mas, naturalmente, pode ser uma solução depois de se concluir a questão fundamental: para que serve a USP?

terça-feira, 15 de julho de 2014

Uma Brasileira Cercada por Muçulmanos


Apesar de manifestações contrárias de alguns leitores, segue abaixo mais um depoimento. Desta vez trata-se de um breve relato de uma brasileira que viveu durante alguns anos em três países de dominação muçulmana. Lucia Fagundes, que assina o texto abaixo, foi colega minha de escola durante a década de 1980, época em que estudávamos no Colégio Leôncio Correia, em Curitiba, Paraná.

Publico o depoimento dela por dois motivos: 1) Recentemente foi veiculado neste blog um brilhante texto do professor Youssef Cherem sobre arte islâmica e, portanto, o depoimento de Fagundes faz um excelente contraste social com a perspectiva artística; 2) Uma das postagens recentemente encomendadas para este blog é sobre o papel da mulher na vida acadêmica e, levando em conta que mulheres encontram extrema dificuldade de inserção social nos países de cultura islâmica, este relato oferece uma bela introdução para tema ainda a ser explorado de forma mais detalhada neste site.

Matemática por formação, Lucia Fagundes é hoje empresária no ramo de cosméticos. Autora do livro Detetive da Beleza, anos atrás ela concedeu entrevista no programa de televisão de Jô Soares.

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Depoimento
escrito por Lucia Fagundes

Morei em Riad, capital da Arábia Saudita, de 1993 a 1994. No aeroporto de Riad, vesti a roupa preta chamada de Abaia. É uma roupa claustrofóbica. Foi minha primeira viagem para fora do Brasil, e levei um choque cultural difícil de descrever. Em um país como a Arábia Saudita, a mulher vive em um mundo masculino governado pela religião. E a sua individualidade de mulher é deixada no avião. No passaporte do seu marido, as autoridades anexam um papel com o seu nome. Na verdade, a partir do momento em que entrei na Arábia Saudita, meu passaporte perdeu a validade. É o documento de meu marido que tinha valor para a autoridade alfandegária. Mesmo sendo estrangeira e católica tornei-me uma propriedade de meu ex-marido na época. A mulher não tem a liberdade de ir e vir na Arábia Saudita. 

Quando se está longe de seu país é como filmar uma festa no andar de cima. Observamos detalhes difíceis de serem vistos quando estamos envolvidos com a bagunça da festa. 

Na década de 1990 havia no Brasil uma inflação de 75% ao mês. Foi outro choque perceber que havia estabilidade econômica. No primeiro mês, fui ao supermercado e levei um susto: os preços não mudavam. A inflação já havia permeado minhas entranhas. Em Riad, as pessoas compravam pra valer e não era véspera de Natal. Cheguei lá no mês de maio de 1993.

Na cidade de Meca está localizado o Templo Sagrado dos muçulmanos: é uma enorme mesquita, uma pedra preta, ao ar livre. Todo o muçulmano que se preze, uma vez na vida deve dar sete voltas ao redor dessa pedra. Um canal de TV mostra durante vinte e quatro horas por dia os fiéis rezando e circundando essa pedra. É lugar proibido para quem não é muçulmano.


Kaaba: Templo Sagrado

O país é um dos maiores produtores mundiais de petróleo. Na cidade de Jeddah está localizado o maior porto que transporta o petróleo. Em Jeddah, longe dos olhos dos policiais religiosos usei biquíni; pois é uma cidade com hotéis e resorts enormes. É onde os estrangeiros relaxam e podem sentir-se um pouco mais à vontade. 

Daman é outra cidade com praia; porém nada de usar biquíni. Fui à praia usando calça Jeans, com uma temperatura de 45 graus.

Todos os estabelecimentos comerciais fecham quatro ou cinco vezes ao dia, por trinta minutos. É a hora da prece a Alah. Caso você se encontre no supermercado fazendo suas compras, deverá terminar tudo rapidinho e sair. Ou eles te colocam para fora de qualquer jeito. No início, isso não me incomodava. Mas depois começou a perturbar. Pois nunca se sabe o horário em que o comércio vai fechar. Os horários da prece seguem a posição do sol. 

O dia de descanso é a sexta-feira, domingo é um dia normal de trabalho.

No mês do Ramadan, que seria para os católicos o equivalente à quaresma, todos os mercados e shopping centers fecham durante o dia. Abrem apenas após o anoitecer. Enfim, o país respira religião. Por isso algumas empresas recomendam não viver lá mais do que cinco anos.

Empresários afirmam que, pelo fato de ser um estilo de vida muito contrastante com o ocidente, depois de muito tempo lá, algumas pessoas passam a adquirir comportamentos esquisitos.

A mulher jamais, nem por sonho, pode usar saia, blusa de alcinha, calça comprida. Não pode mostrar o tornozelo: para os muçulmanos é a parte mais sexy da mulher. Comprei saias longas, até o dedão do pé, blusas de manga comprida.

Em público, a mulher estrangeira precisa cobrir o cabelo, ou o véu deve estar dentro da bolsa. Ele é mais importante que a sua carteira de identidade. 

Existem dois tipos de polícias: civil e religiosa. A polícia religiosa não trabalha o tempo todo. Portanto, a mulher deve manter o véu na bolsa, quando vai, por exemplo, ao shopping center; pois se o Murtawa, (o policial religioso) aparecer, ele gritará para a mulher cobrir o cabelo. Caso não tenha o véu, pode ser presa.

Os estrangeiros moram em condomínios fechados. Nesses condomínios existem supermercados, farmácia, piscina, quadras esportivas. Dentro dos condomínios a mulher pode se vestir normalmente, usar biquíni na piscina etc. Estão localizados longe da cidade, praticamente no meio do deserto. No meu condomínio, um ônibus levava as mulheres para fazer compras duas vezes ao dia. Aliás, na Arábia Saudita, o passatempo da mulher era comprar. Não existiam cinema, teatro, bar. E na época, nem internet.

É um país onde o estrangeiro é o empregado das empresas locais. Os sauditas são os donos do dinheiro. A maioria é riquíssima. Contratam a peso de ouro os estrangeiros, para fazer de tudo para eles, desde alguém que limpe o chão até aquele que constrói redes de telecomunicações ou os ensina a jogar futebol.

A bebida alcoólica é proibida. Porém, meu ex-marido tomava o seu whisky. Chegou a pagar trezentos dólares americanos por uma garrafa de Black Label, no câmbio negro. Os estrangeiros aprendem a fazer vinho e cerveja em casa. Os suecos e alemães eram especialistas em produzir schnapps. Concluindo, você fica bêbado, Alah queira ou não.

Descobrimos uma escola americana feminina. Detalhe: as escolas são separadas em feminina e masculina. Foi onde comecei a aprender inglês. Um evento hilário aconteceu na escola de inglês: um dia cheguei à sala de aula, encontrei minhas colegas de classe, todas amontoadas numa cadeira, olhando para fora, e perguntei se Saddam havia soltado um míssil? (Na época ele ainda era vivo e estava na ativa). Não era nada disso. As janelas eram todas pintadas de preto. As mulheres não podem ser vistas da rua. E as janelas eram altas. Mas em uma das janelas da sala de aula, a tinta preta havia descascado, formando espaços transparentes no vidro. As alunas descobriram e olhavam os transeuntes na rua por meio daqueles buraquinhos. Era a forma de transgredir e se divertir, olhando o mundo lá fora.

No meu condomínio havia mulheres estrangeiras que viviam em Riad por 10 anos, porém nunca tinham visto o rosto de uma mulher saudita, (elas cobrem o rosto totalmente quando saem à rua, usando três véus). E são mulheres muito lindas. 

Conheci uma senhora saudita, escritora, e a sua filha, na escola. Ela me disse que as mulheres eram proibidas de entrarem em bibliotecas públicas. Existiam bibliotecas femininas, mas muito precárias. Ela viajava para os Estados Unidos, para buscar educação e informação. A filha dela adorava ir ao Egito, para dançar na discoteca.

Tornei-me amiga de uma moça que ficou noiva, e que estava se preparando para casar. Após o casamento, ela trouxe o álbum de fotos para eu ver. Seu vestido era branco, longo e com grinalda na cabeça. Segundo ela, quase todas as mulheres se casavam de branco. Cerimônia com grande festa, onde inclusive, era servida bebida alcoólica. Os casamentos são arranjados pelas famílias. Casam-se entre primos. Minha amiga casou-se com o primo.

O noivo precisa pagar um dote para a família da noiva. Uma vez fomos comprar ouro. Em Riad, sair para comprar ouro é como ir até a farmácia aqui. Um rapaz, vendedor de ouro, perguntou: “Quanto custa uma mulher no Brasil?” Meu ex-marido respondeu que o preço de uma mulher no Brasil era uma boa conquista. Ele disse: “Já que é tão fácil assim, quero ir ao Brasil buscar uma mulher”.

Mulher não dirige. Mas minha colega na escola tinha uma moto. Perguntei quando dirigia? “No deserto, meu pai ensinou. É onde pratico. E quando viajo para Londres no verão, levo minha moto para andar lá.” Apesar de tantas regras, na escola de inglês percebi que a maioria das regras islâmicas estava mais no papel do que na prática. Nos finais de semana, os sauditas jovens se divertem dirigindo caminhonetes, pelas dunas de areia no deserto.

O lazer dos estrangeiros era fazer piquenique no deserto. A areia fina (não o sol) deixa a pele bronzeada. É impossível ficar ao sol durante o verão. A temperatura chega fácil aos cinquenta graus Celsius.

Presenciei e senti na pele uma tempestade de areia no deserto. Todos os orifícios do corpo são literalmente preenchidos por areia. A barraca onde estávamos queria voar. As mulheres faziam peso dentro da barraca; os homens lá fora segurando e levando lufadas de areia no rosto. A tempestade durou uns trinta minutos; o vento assobiava nos ouvidos; foi uma experiência incrível.

Devido à vastidão de luz existente no deserto, tiramos fotos maravilhosas. Andando pelo deserto, imagina-se que a última coisa a encontrar seria uma planta verde? Ledo engano. No meio do nada, me deparo com uma planta verdinha. Tenho as fotos. À noite o vento carrega gotas de orvalho; é o suficiente para a Mãe Natureza entrar em ação.

Tenho ótimas lembranças da Arábia Saudita. E foi o lugar onde iniciei meu aprendizado de inglês. Não era o lugar ideal para aprender inglês, mas quando se tem força de vontade, aprende-se inglês até na Arábia Saudita.

Após essa experiência marcante na Arábia Saudita, fui viver durante quatro anos na Indonésia, onde a religião não interfere tanto no dia-a-dia. É  um país muçulmano bem mais flexivel com as mulheres estrangeiras.

Porém, para encerrar, tive a oportunidade de viver durante três meses no Irã. E a minha conclusão foi a de que, se um país muçulmano quer impor as regras do islamismo para a mulher, deve ser rico como a Arábia Saudita.

O Irã, apesar de ser produtor de petróleo, é pobre. Praticamente não existem carros com ar condicionado; e durante o verão as temperaturas chegam perto de quarenta e cinco graus Celsius. E as mulheres também precisam cobrir o cabelo e vestir roupas compridas.

Mas no Irã fiz a melhor viagem histórica de minha vida: visitei Persépolis. Persépolis fica setenta quilômetros ao norte da cidade de Chiraz, ao sul do Irã. Em uma hora de carro, percorre-se o deserto até a entrada da antiga capital do Irã. No que restou das ruínas do palácio onde viveu Alexandre, o Grande, faz um calor infernal. Mas o cenário histórico, que eu havia aprendido apenas nos livros da quinta série do ginásio, ali na minha frente, ao vivo e a cores, não tem preço. 

Para finalizar, quero dizer que sou católica não praticante. Batizei a minha filha na religião católica para que ela não possa se casar com um rapaz muçulmano. A última coisa que desejo é ter um genro muçulmano. Eles vivem ainda no século 7.

domingo, 13 de julho de 2014

Qual é o propósito deste blog?


Recentemente o leitor Flávio Farias chamou a minha atenção para um texto publicado na comunidade Clube da Física e assinado por Rafael Lopes de Sa. Rafael é Doutor em Física pela Stony Brook University e atualmente é Lederman Fellow no Fermi National Accelerator Laboratory (EUA). O texto é uma crítica à postagem assinada por Denis Wiener, bem como ao depoimento de um superdotado e um texto meu sobre um bizarro ofício que recebi da Coordenação do Curso de Física da UFPR.

Usualmente não dou destaque a críticas como esta, apesar de eu já ter veiculado textos análogos. Mas, como observei anteriormente, a despeito deste blog estar crescendo em termos de visualizações, cada vez menos leitores têm publicado comentários neste fórum. Portanto, o que pretendo é simplesmente estimular mais leitores (principalmente jovens) para a exposição de suas ideias aqui, ainda que sejam contrárias às principais teses defendidas no blog Matemática e Sociedade.

No entanto, vale uma observação importante. Neste blog não foram publicados apenas textos que apontam as graves falhas na educação brasileira, ao contrário do que muitos sugerem ou até afirmam. Na postagem Meus Mestres (apenas 286 visualizações), faço um breve relato sobre algumas das principais influências que recebi durante a minha formação. Clovis Maia, ex-aluno do Curso de Física da UFPR e atual professor na UnB, discute sobre a possibilidade da existência de vida extraterrestre (451 visualizações). Em outro texto discuto sobre trabalho que desenvolvi (420 visualizações) a partir da época em que eu era aluno do Programa de Pós-Graduação em Física da UFPR. E em postagem mais recente (475 visualizações) tentei motivar jovens para um importante projeto de pesquisa na área de lógica. Se postagens como o depoimento de Denis Wiener (636 visualizações), o testemunho do superdotado (5410 visualizações) e o ofício que recebi da Coordenação do Curso de Física (1153 visualizações) despertam mais atenção, é porque os problemas apontados não apenas são reais como também dominantes. A realidade da ciência e da educação em nosso país não tem permitido muito espaço para estímulo entre os mais jovens. E a atual acomodação de muitos professores de universidades públicas certamente exige que suas práticas profissionais sejam perturbadas, uma vez que não existem mecanismos efetivos de combate contra incompetência e má vontade nas instituições públicas de ensino superior. 

O autor do texto que se segue pede para que sejam publicados depoimentos de sucessos profissionais. Apesar de eu ter convidado muita gente para escrever sobre projetos de vida bem sucedidos, ocorre o estranho fenômeno de que profissionais de sucesso não gostam de escrever a respeito de si mesmos. E, apesar disso, há duas postagens que narram exemplos de sucesso e que (contrariando tendências naturais) se destacaram no blog. São os casos do texto sobre Newton da Costa (1366 visualizações) e do artigo sobre o inspirador exemplo da Polyteck (2213 visualizações). Aliás, este último dependeu de pesada campanha minha (e da própria Polyteck) para se destacar no blog. 

Mesmo assim parabenizo Rafael Lopes de Sa por não ficar calado. Convido muitas pessoas para colaborarem com textos para este blog, mas são poucos os que efetivamente cumprem com as suas promessas. Eu mesmo pedi ao autor do texto abaixo para detalhar melhor as suas críticas. Mas ele respondeu que, infelizmente, não tem tempo para escrever um texto mais longo. Pessoas próximas de mim disseram que eu não deveria publicar o texto de de Sa. Mas discordo da cômoda postura do silêncio. O que mais se pratica no Brasil é justamente o silêncio diante de críticas. Neste sentido as palavras de de Sa são naturalmente muito bem-vindas. É claro que eu preferia uma contribuição mais detalhada, melhor justificada. Mas, espero, talvez o excelente exemplo dele estimule mais gente a se manifestar.

Portanto, respondendo à pergunta do título desta postagem, o principal propósito deste blog é a manutenção de um fórum diferenciado no qual podem ser encontrados tanto depoimentos de jovens que estão iniciando seus estudos (como o de Denis Wiener, entre outros) quanto textos de experientes profissionais de reconhecida competência (como o de Steven Krantz, entre outros). 

Desejo a todos uma leitura crítica.

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(Sem título)
escrito por Rafael Lopes de Sa

Oi, hoje eu queria falar de um texto que vi num blog recentemente: 

http://adonaisantanna.blogspot.com/2014/05/depoimento-de-ex-aluno-do-curso-de.html

Esse é o blog do Prof. Adonai Sant'Anna, da UFPR. Eu não o conheço pessoalmente, mas já acompanho o seu trabalho no blog há alguns meses. Eu acho uma leitura interessante. Há textos bons, mas também há textos que não acho adequados. Esse está no segundo caso. Mas eu acho esse texto tão ruim, que me motivei a comentá-lo aqui. Talvez seja útil. Sem mais explicações...

Eu acho que esse depoimento, bem como os demais referenciados no texto, beira a inutilidade. Eles são caricatos e, na minha opinião, mais pioram os problemas que realmente existem do que elucida. Por sinal, na classe dos problemas que realmente existem, um deles fica claro nesse depoimento amargurado: a maioria das pessoas não faz ideia do que é fazer uma carreira em física. Na maioria das vezes, elas não têm nem ideia do que significa fazer um curso de física. Mas uma carreira, isso é completamente ignorado. Nós deixamos jovens marcar física na escolha do vestibular sem que saibam que tipo de carreira estão escolhendo. Algumas vezes ainda sucedemos em explicar para esses jovens no início do curso, mas outras vezes, como me parece claro que é o caso do autor do depoimento, falhamos mais uma vez.

Eu sei que é óbvio o que vou dizer, mas pessoas diferentes têm preferências diferentes por carreira. E fazer esse tipo de escolha porque um dia foi ao parque olhar para o céu é, no mínimo, ingênuo. É como alguém dizer que vai fazer uma carreira em biologia porque achou legal ir ao zoológico. Eu acho legal ir ao zoológico, mas sei que a carreira de biólogo não é minha preferida (apesar de achar biologia fascinante). O autor do depoimento fez uma escolha ruim na sua vida porque falharam com ele. Não explicaram para ele o que significa fazer uma carreira em física. E eu sei o quanto isso é difícil. Eu mesmo comecei uma carreira nessa área sem ter nenhuma ideia do que isso significava. E eu dei sorte, admito. Mas a maioria das pessoas se decepcionam, pois eventualmente percebem que fizeram a escolha errada. E é natural que elas fiquem desgostosas quando isso acontece.

Ainda falando coisas óbvias, as pessoas reagem a esse desgosto de forma diferente. Algumas pessoas simplesmente procuram outra carreira. Esse é o ideal, claro, porque nenhuma vida está fadada por causa de uma escolha errada. Outras pessoas simplesmente ignoram. Essas são as pessoas que o autor do depoimento descreve como "alunos que estão perdidos no tempo entre o primeiro e o quarto ano do curso". Essa postura eu avaliaria como a pior possível. E existe uma terceira forma de reação, que se não é a pior, certamente é a mais irritante. Essas são as pessoas que resolvem se vingar por causa de sua escolha errada e saem por aí falando coisas como: "Eu queria viver, queria ser dinâmico, queria ter uma vida digna, queria ter uma família, uma casa, um carro. Foi então que eu tomei a decisão mais importante da minha vida: deixar o Curso de Física, a UFPR e todo esse mundo da fantasia e ingressar em uma faculdade e um curso que podem me ensinar como encarar a vida real e como resolver os problemas reais."

Eu não entendo exatamente contra quem o autor está se vingando. Contra si mesmo, talvez? Mas declarações desse tipo são tão desrespeitosas que até me surpreendo que o autor do blog, uma pessoa que se orgulha tanto das suas faculdades intelectuais, tenha divulgado esse texto. Eu já conheci dezenas de pessoas como o autor do depoimento. Pessoas que eu acredito que possam honestamente até gostar de física, mas passam a vida falando mal da atuação profissional de física por causa de uma escolha de vida infeliz. E o que é pior, falam esses despropósitos sem nem saber o que é uma carreira em física. Porque é claro que essa pessoa simplesmente desistiu da carreira em física sem nunca ter entendido o que essa carreira é de fato. E é bom que ele tenha desistido, mas a opinião dele não significa nada e declarações do tipo "e pretendo em breve publicar algum artigo em uma revista de grande importância para a ciência" me parecem apenas devaneios (ainda que ficaria feliz se o autor do depoimento me provasse errado, pois sempre me empolgo com novos desenvolvimentos em física).

Eu gostaria de fechar esse comentário com sugestões. Em vez de ficar publicando depoimentos caricatos e amargurados, eu acredito que o autor do blog deveria usar a visibilidade que possui para publicar depoimentos de pessoas que fizeram carreiras de sucesso na física. Eu sei que falar mal é mais divertido e eu sei que há muito mais ingressos em cursos de física desiludidos do que bem sucedidos. Mas isso seria muito mais útil para, quem sabe, mostrar ao público mais jovem que está interessado na carreira em física o que significa isso. Talvez ele pudesse inclusive convidar alguém com o propósito de escrever sobre esse tópico em específico. Eu vou muito a escolas próximas de onde eu moro falar sobre a carreira de físico e sei bem que as dúvidas não são poucas e o quanto um texto desse tipo seria benéfico. Assim ele estaria ajudando a melhorar um problema que realmente existe.


PS: Ao autor do depoimento, eu desejo todo sucesso e felicidade em sua nova carreira e que talvez da próxima vez ele tenha a honestidade intelectual de não escrever esse tipo de depoimento. Eu não quero nada de ruim para ele, só fico chateado quando esses absurdos são escritos sobre a carreira que tenho e que tanto gosto.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Cálculo Diferencial e Integral em Vídeo


Segue abaixo uma breve análise sobre alguns vídeos de ensino a distância disponibilizados no YouTube. O foco aqui é, naturalmente, matemática, com especial ênfase em cálculo diferencial e integral. 

Eu já havia feito anteriormente uma discussão preliminar sobre ensino a distância, uma modalidade de ensino que está destinada a se tornar cada vez mais presente no mundo todo. No entanto, técnicas de ensino a distância ainda não estão permitindo, por mérito próprio, corrigir erros comuns propagados por profissionais da educação. Pelo contrário, o ensino a distância está permitindo um alcance maior da ignorância e do preconceito, os quais (antigamente) ficavam limitados às quatro paredes da sala de aula. A justificativa para tal afirmação é apresentada nos próximos parágrafos.

Um dos principais problemas dos vídeos abaixo mencionados é o fato de que são apenas gravações que meramente reproduzem formas tradicionais de ensino. E os vídeos citados são gravados sem roteiro algum. Ora, como diz a antiga máxima "O que se fala o vento leva." Agora isso não é mais verdade! O que se fala fica. E fica no YouTube.

A linguagem escrita, apesar de opiniões de certos entusiastas do ensino a distância, ainda é a forma mais segura para propagação e discussão do conhecimento científico. Isso porque autores contam com a possibilidade de perceberem seus erros e os corrigirem, antes de efetivamente publicarem qualquer material didático. Afinal, não é fácil discutir sobre ciência e, especialmente, matemática. Já em discursos improvisados, como acontecem em salas de aula (especialmente no caso em que não há interação entre alunos e professor) e inúmeros vídeos de aulas tradicionais, erros são muito mais frequentes.

As atuais gerações precisam urgentemente escrever mais. Informações disponibilizadas na internet têm até mesmo comprometido a memória de pessoas. E não há indícios de que o ensino a distância (na forma como tem sido praticado) consiga efetivamente melhorar o sistema educacional como um todo em nosso país.

Segue uma pequena lista de vídeos que escolhi a partir do YouTube.

1) Neste vídeo da Universidade Estadual de Campinas, o professor Renato Pedrosa afirma repetidamente que cálculo diferencial e integral é o estudo de funções. Falso! Cálculo diferencial e integral, em sentido pouco abrangente, é o estudo de certos aspectos de funções reais definidas sobre certos conjuntos de números reais. Em seguida afirma que em suas aulas ele não trabalhará com qualquer tipo de função, sem deixar claro se esta é uma limitação da disciplina lecionada naquela instituição e para aquela turma ou se se trata de uma limitação do cálculo diferencial e integral enquanto área do conhecimento. O professor chega a conjecturar que todos os alunos de sua turma sabem o que são funções de uma variável real, o que o isenta de demais explicações (uma vez que nenhum aluno o questiona). Honestamente, duvido que qualquer aluno de graduação saiba o que é uma função de uma variável real. Outras confusões são feitas, incluindo a interpretação de gradiente como velocidade, entre vários discursos vagos. 

2) Neste vídeo do professor Luiz Cláudio Mesquita de Aquino percebe-se um certo cuidado do autor para discutir sobre o conceito de limite de funções reais. Ele mesmo estimula o cuidado para quem assiste ao vídeo. Apesar de ainda insistir em discursos comuns à maioria dos livros de cálculo, este vídeo apresenta uma vantagem considerável sobre aquele do item 1, citado acima: as imagens permitem orientar os interessados sobre os tópicos abordados. Desta forma o estudante pode avançar ou retornar a pontos específicos do vídeo, conforme o seu interesse, evidenciando uma vantagem que não existe em sala de aula. Além disso, o autor evita discussões de caráter geral sobre a natureza do cálculo, ao contrário do que aparece no vídeo do item 1. Esta é uma decisão sábia. No entanto, o autor também peca por não seguir um roteiro. Este fato abre espaço para indesejáveis vícios de linguagem, algo que infelizmente ocorre. Eventualmente tais vícios comprometem o entendimento da matéria abordada.

3) Neste vídeo amador de Danilo Pereira, em menos de um minuto ele consegue enunciar de forma errada o teorema de L'Hospital e, além disso, apresentar como teorema um resultado que definitivamente não é teorema, pois admite contra-exemplo. Não tive paciência para acompanhar o restante do vídeo, o qual é simplesmente venenoso.

4) Neste vídeo do professor Marcelio Adriano Diogo fica imediatamente claro que o apresentador precisa de aulas de oratória. Mas, com um pouco de paciência, é possível entender a sua pronúncia. Os erros neste vídeo preocupam. O apresentador defende que uma imagem projetada em uma tela é capaz de mostrar claramente que o limite de uma determinada função é infinito, sugerindo que cálculo pode ser compreendido de forma clara a partir de desenhos. E sua informalidade atinge um novo patamar de ignorância quando o apresentador faz, logo em seguida, uma afirmação completamente errada sobre o conceito de limite menos infinito. Além disso, o discurso é carregado de evidentes preconceitos, ao fazer referência a funções que são definidas por "leis". Essa história de que funções são definidas por leis é uma das piores idiossincrasias existentes em salas de aula brasileiras. Além disso, o apresentador é mais uma daqueles que "pega x": "Se eu pego o x valendo 1,99 [...]". Típica aula ruim.

5) Neste vídeo do professor Gleison Pinto Ramos o autor, em permanente tom de voz muito monótono, tem uma bizarra estratégia de motivação, anunciando o cálculo como "o terror dos estudantes dos cursos de ciências exatas". Uma série de afirmações insanas são feitas. Aqui está uma delas: "O cálculo é dividido em duas partes: o cálculo diferencial e o cálculo integral". Em seguida ele supostamente qualifica essas duas partes de maneira mais absurda ainda: "o primeiro trata do cálculo do coeficiente angular [...] da reta tangente a uma curva"; "o segundo trata do cálculo da área sobre a curva [...]". Em um crescendo de incompetência, o autor ainda faz referências históricas completamente erradas. E, em seguida, discute conceitos matemáticos de forma mais preocupante ainda, sem o mais remoto sinal de qualquer senso crítico. Levando em conta que é um vídeo com mais de cem mil visualizações, este é um exemplo claro do alcance da estupidez viabilizado pela internet.

Para finalizar esta breve discussão recomendo ao leitor que assista a este vídeo, o qual retrata de maneira fidedigna as relações sociais envolvendo o ensino de cálculo diferencial e integral, seja de forma tradicional ou não. O final do vídeo é sensacional.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Apenas alguns livros - Parte III


Esta é a terceira (e, provavelmente, a última) parte de uma lista de recomendações bibliográficas em matemática, física teórica e filosofia da ciência iniciada em março de 2013. Para acessar a lista completa com todas as postagens de recomendações bibliográficas clique aqui

Desta vez o tema da lista é um só: como desenvolver uma visão crítica sobre matemática. Naturalmente não tenho a insana pretensão de oferecer uma visão ampla o bastante para cobrir todas as áreas relevantes da matemática. Mas acredito que a lista abaixo possa propiciar uma bagagem matemática suficientemente madura para lançar eventuais interessados na direção de estudos avançados e independentes. Nesta lista não estão presentes referências sobre lógica ou história da matemática porque tais áreas já foram cobertas na primeira parte desta postagem. Recomendações de literatura sobre física matemática também já foram apresentadas neste link

Aqui vai.

1) Topology, Klaus Jänich (Springer Verlag, 1995). Este é o texto mais didático que conheço sobre topologia geral. O autor assume pré-requisitos mínimos sobre teorias de conjuntos e consegue avançar gradualmente até tópicos avançados (como o inusitado teorema de Tychonoff) concatenando formalismo com visão intuitiva de forma excepcionalmente competente. 

2) Differential & Integral Calculus, Volumes 1 & 2, Richard Courant (Blackie & Son, 1961). Este clássico da literatura é provavelmente a referência mais importante sobre cálculo diferencial e integral. No volume 1 o autor inicia com uma riquíssima visão de pré-cálculo e avança para os conceitos de limite, derivada e integral, abordando até mesmo métodos numéricos, séries de Fourier e equações diferenciais aplicadas em física. No volume 2 discute-se prioritariamente cálculo de funções de várias variáveis. Em 1998 a Springer Verlag editou uma versão atualizada deste livro, co-autorada por Fritz John e dividida em três volumes. 

3) Lectures on the Hyperreals, Robert Goldblatt (Springer Verlag, 1998). Para que o leitor desta postagem não fique com a impressão de que cálculo diferencial e integral se resume àquilo que é discutido na obra de Richard Courant (citada acima), este livro oferece uma visão radicalmente diferente sobre o tema. Enquanto limites desempenham papel central na abordagem usual do cálculo, infinitesimais (números hiperreais estritamente positivos menores do que qualquer número real estritamente positivo) constituem a base para a análise não standard (uma forma diferente para desenvolver cálculo), a qual é tratada de forma magnífica neste livro de Goldblatt. Frequentemente livros sobre análise não standard são de difícil leitura para aqueles que não têm o devido treinamento em lógica matemática. Mas este é uma marcante exceção, devido à sua leitura extremamente fluida.

4) Foundations of Differential Geometry, Volumes 1 & 2, Shoshichi Kobaiashi & Katsumi Nomizu (Wiley, 1996). Confesso que nunca estudei esta obra do início ao fim. Mas aprendi muito com a leitura de diversos capítulos, principalmente na época em que trabalhei com teorias de gauge. É um clássico que tem se mantido atual durante décadas e ainda é a mais importante referência sobre teoria das conexões e classes características. No entanto a leitura não é fácil.

5) Projective Geometry, Volumes 1 & 2, Oswald Veblen & John Wesley Young (University of Michigan, 1910). Uma das idiossincrasias mais estúpidas da edução brasileira é o insistente discurso em sala de aula no qual professores afirmam que retas paralelas se encontram no infinito. Em geometria euclidiana, retas paralelas jamais têm interseção. No entanto, em geometria projetiva retas paralelas se encontram nos chamados pontos impróprios, ou pontos no infinito. Ou seja, sem qualificação de discurso não se faz matemática. Esta clássica obra de Veblen é uma excelente referência sobre geometria projetiva, cujo principal e mais surpreendente resultado é o princípio de dualidade. Geometria projetiva (o estudo de invariantes geométricos sob projeção) encontra importantes aplicações até mesmo em artes. Se o leitor quiser uma referência mais atual sobre o tema, recomendo o excelente Projective Geometry, de H. S. M. Coxeter (Springer Verlag, 2013). 

6) Basic Set Theory, A. Shen & N. K. Vereshchagin (AMS, 2002). Para quem deseja uma visão ampla, indolor, didática e pouco exigente em termos de pré-requisitos, sobre teoria intuitiva de conjuntos, este é simplesmente o melhor livro. Tradução de original russo, o texto é marcado por objetiva visão conceitual seguida de exemplos criativos e exercícios estrategicamente elaborados. É um exemplo claríssimo do enxuto e eficiente estilo russo de aprender matemática. O livro avança de forma muito natural até assuntos importantíssimos como definições recursivas, ordinais, cardinais e o lema de Zorn. Em outros termos, é uma ótima introdução para quem deseja avançar seus estudos para teorias formais de conjuntos.

7) Finite Dimensional Vector Spaces, Paul R. Halmos (Literary Licensing, 2013). Esta é uma reedição (de responsabilidade de John L. Kelley) do grande clássico da álgebra linear. Frequentemente livros sobre álgebra linear são escritos de forma muito descuidada, algo que praticamente não acontece nesta obra. Até mesmo o título inspira confiança sobre o leitor, uma vez que o conceito de base de um espaço vetorial é muito mais ardiloso do que a maioria dos autores assumem. Existe tradução para o português. Quem estiver interessado em avançar seus estudos para análise funcional (conforme se anuncia no apêndice deste fabuloso livro) recomendo a obra de Kreyszig citada nesta lista.

8) Fundamentos da Geometria, Benedito Castrucci (LTC, 1978). Este é o mais belo livro de matemática originalmente escrito em português que conheço. Fortemente baseado na visão de David Hilbert sobre geometria euclidiana, mas em uma linguagem atual, esta obra rompe com a ingênua, infeliz, mas comum visão de que geometria teria alguma coisa a ver com o estudo de posição e forma de objetos no espaço. Uma vergonha este precioso livro estar fora de catálogo.

9) Real Analysis, Norman B. Haaser & Joseph A. Sullivan (Dover, 1991). A Dover é uma editora enfaticamente empenhada na reedição de clássicos da matemática, incluindo este. São poucos os livros de análise matemática tão dedicados na explicitação da linguagem usada para fundamentar este fundamental ramo do conhecimento. O corpo dos números reais, por exemplo, é discutido detalhadamente dos pontos de vista sintático e semântico, colocando esta obra como uma das mais cuidadosamente escritas sobre o tema.

10) An Introduction to Probability and Inductive Logic, Ian Hacking (Cambridge University Press, 2001). Os matemáticos que me perdoem por recomendar este livro e não outras obras mais ricas (do ponto de vista técnico) sobre teoria de probabilidades. Mas este texto apresenta a melhor motivação que já li a respeito do tema. O livro inicia com uma curta lista de problemas que supostamente podem ser resolvidos de forma meramente intuitiva e, ao longo de todo o texto, mostra claramente como as intuições humanas são gravemente falhas. E isso tudo é feito sem perder de vista a noção matematicamente precisa de que probabilidades são definidas a partir dos axiomas de Kolmogorov. É também uma ótima introdução à teoria das decisões.

11) Multivariate Data Analysis, Joseph F. Hair Jr, William C. Black, Barry J. Babin & Rolph E. Anderson (Prentice Hall, 2009). Traduzi duas edições deste espetacular livro para o nosso idioma. Texto extraordinariamente didático e completo sobre aplicações de métodos estatísticos em administração de empresas. No entanto, as mesmas técnicas podem ser aplicadas em todas as áreas do conhecimento que envolvam a análise de grandes volumes de dados ou informações, como certos ramos da engenharia e até mesmo da genética, entre outros. 

12) Number Theory, George E. Andrews (Dover, 1994). Esta série de postagens sobre recomendações bibliográficas começou a partir de um pedido de um leitor, interessado em teoria dos números. Lamentavelmente nunca estudei de forma detalhada sobre esta fundamental área do conhecimento. Por isso, neste momento, serei guiado pelo critério de receptividade da comunidade matemática. Este é um dos livros mais citados na literatura especializada. Porém, levando em conta a data de publicação e o fato de que a teoria dos números tem avançado de maneira muito marcante nos últimos anos (incluindo o algoritmo AKS e até mesmo algoritmos quânticos, como o de Peter Shor), certamente é recomendável literatura complementar.

13) How to Teach Mathematics, Steven G. Krantz (AMS, 1999). Este é um texto que já recomendei diversas vezes neste blog. A maioria esmagadora dos livros sobre ensino de matemática não demonstra a mais remota preocupação com a prática de sala de aula, apesar de muitos anunciarem o contrário. Este é uma marcante exceção, talvez por ser escrito por um matemático e não um teórico da educação. Neste link discuto um pouco sobre o livro. E aqui o leitor encontra um texto de Krantz escrito exclusivamente para este blog.

14) Science Without Numbers, Hartry H. Field (Princeton University Press, 1980). Apesar do autor ser um tanto confuso quando fala, é brilhantemente claro quando escreve. Nesta referência única no gênero, Field defende de forma extraordinariamente convincente a tese nominalista de que objetos matemáticos (enquanto objetos abstratos) são desnecessários no estudo de física teórica. E, além disso, Field consegue demonstrar que sua formulação para a mecânica newtoniana (sem o emprego de números) é equivalente (em sentido preciso) a certas formulações usuais.