terça-feira, 26 de março de 2013

Que ensino se ensina em Portugal?



O texto abaixo é de autoria de Rolando Almeida, licenciado em filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e especialista em ensino de filosofia. Atualmente leciona na Escola Secundária Jaime Moniz, em Funchal (Ilha da Madeira), Portugal. Além disso, o Professor Rolando Almeida ministra cursos especiais para alunos selecionados como problemáticos, é revisor de material didático, produz material para um grupo editorial português e publica regularmente artigos de opinião em diferentes mídias. 

Aqui o autor expõe de forma crítica uma visão histórica e social para compreender a atual situação da educação portuguesa. Leitura absolutamente obrigatória para quaisquer interessados em educação, incluindo brasileiros. Afinal, as semelhanças entre os graves e crônicos problemas educacionais desses dois países (Brasil e Portugal) não são mera coincidência.

Aproveito a oportunidade para avisar que durante esta semana anunciarei os leitores contemplados com livros que estou distribuindo gratuitamente. Além disso, novas postagens estão a caminho. Teremos (i) continuação da lista de referências bibliográficas em matemática, física e filosofia da ciência, (ii) depoimento pessoal de um importante pesquisador brasileiro que decidiu seguir sua carreira nos Estados Unidos, (iii) texto sobre a Comissão de Ética da Universidade Federal do Paraná, (iv) entrevista com o diretor de cinema José Padilha, sobre seu novo filme RoboCop (a ser publicada em 2014), entre outras. 

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Que ensino se ensina em Portugal?

Rolando Almeida

A partir de um post do blogue da revista de filosofia Crítica, descobri um link para o blogue de Adonai Sant'Anna. Comecei a ler os artigos postados no blogue e desde logo me interessou por dois motivos principais:

1) Porque se trata de um blogue com preocupações de divulgação do saber, da ciência e, principalmente, da matemática

2) Porque quem quer que se interesse por 1) remete a sua análise, quase inevitavelmente, para o estado do ensino, já que é o principal canal institucional de divulgação do saber e da ciência em geral, bem como das artes.

Como penso que é sempre bom manter feedback do trabalho que produzimos publicamente, apressei-me a enviar um mail ao autor deste blogue. Dessa troca inicial surgiu o desafio para que eu partilhasse algum conteúdo do que se passa no ensino secundário (médio no Brasil) português em geral e na filosofia em particular, já que é a minha área de interesse e profissional no ensino público português.

Se por um lado agradeço o convite que me foi endereçado para escrever algumas notas sobre o estado da educação ao nível do secundário em Portugal, por outro, o momento é algo perturbador e inquietante já que actualmente Portugal atravessa uma das mais graves crises económicas da sua história recente e tal contexto tem afectado todos os sectores da sociedade, incluindo o da educação e da condição profissional dos professores, bem como do contexto social e familiar dos alunos. Acresce ainda que dissertar sobre temas educativos exige não só concentração como uma forte humildade, pois estamos em terreno onde há poucas certezas e muitas dúvidas. O que aqui escrevo destina-se mais aos leitores brasileiros para que os mesmos entendam pelo menos em linhas gerais algumas das orientações educativas portuguesas. Quero ressalvar no entanto que qualquer ideia minha ou apreciação crítica estará, naturalmente, à disposição para o contraditório. Aceitei ainda o desafio pois entendo que muitos dos problemas abordados neste blogue são, em linhas gerais, semelhantes aos problemas que observo no sistema de ensino português. 

Em termos históricos o período a que me reporto nesta minha primeira análise é o que se segue à ditadura, precisamente aquele que vem logo após o 25 de Abril de 1974, data em que por golpe militar se chega à democracia em Portugal, após várias e longas décadas de ditadura.

Faço o apontamento da queda da ditadura para que se entendam algumas linhas que aqui desenvolvo. A primeira delas e, na minha opinião, a mais relevante é a da democratização do ensino. Na ditadura Portugal era um país de analfabetos. Num país muito pequeno (1*), era quase imperceptível a pronúncia de um nortenho para um habitante do sul do país. Recordo quando era mais pequeno, ainda era mais ou menos habitual usar legendas (2*) quando aparecia algum popular das zonas rurais na TV, tal era a diferença da oralidade. Dois factores mudaram completamente esta realidade: 

1) A escola

2) A televisão

Tanto o desenvolvimento dos meios de comunicação áudio visuais como o acesso à escola vieram a esbater muito estas fronteiras dentro de um país tão pequeno geograficamente. Mas há outros factores, entre os quais, a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, a globalização, a abertura de fronteiras dentro da Europa e o dinheiro fácil que entretanto foi chegando a Portugal. Nas últimas gerações a Educação tornou-se, em Portugal uma forte arma de combate político. Era necessário apresentar resultados, comparar, analisar. E é um facto que Portugal fez um feito histórico digno de nota. O esforço foi incalculável. Construíram-se imensas escolas e pela primeira vez, na década de 80 do séc. xx, Portugal via filhos da classe economicamente mais desfavorecida a entrar nas universidades, a estudar. No final dos anos 80 e início dos 90, vivia-se em Portugal uma espécie de euforia por estudar nas universidades. Duas razões principais explicam esta procura das universidades:

1) Realização profissional com acesso a empregos melhor pagos.

2) Estatuto social que os cursos superiores em Portugal conferem.

Esta realidade, exposta em 1) e 2) actualmente em Portugal tem-se progressivamente esgotado o que tem conduzido a uma discussão com algumas renovações sobre o papel da escola pública na sociedade e para a vida das pessoas. As novas gerações já muito dificilmente olham para a escola com as razões indicadas em 1) e 2). Em resultado de uma maior abertura ao exterior, de muitos estudantes portugueses terem tido a possibilidade de experiências académicas noutros países mais evoluídos cultural e cientificamente, hoje, um jovem de 15 ou 16 anos jamais espera de um curso superior o estatuto e segurança profissional vitalícia que antes se esperava. Mas ainda há muitos focos de resistência, já que as gerações mais velhas têm visto ao longo dos anos o seu emprego assegurado, mesmo sem serem produtivos, principalmente ao nível universitário. E em Portugal, tal como no Brasil, é quase preciso esperar que os mais velhos morram para renovar a frota. Saliento uma vez mais que o momento que vivemos em Portugal pode ser uma oportunidade de pelo menos alguma mudança, já que devido à crise profunda que estamos a viver, muitos sectores tradicionalmente seguros e vitalícios (o caso dos professores do ensino secundário) estão a ser abalados. Os sectores mais estáveis são os mais expostos à corrupção política e nesse aspecto os professores do ensino secundário perderam muito poder de actuação, já que deixaram de constituir pesados grupos de interesse no país.

Indicava há pouco que a educação no período pós democracia passou a ser usada politicamente como uma das estratégias mais fortes para os partidos políticos fazerem política. A educação estava na ordem do dia, não só politicamente, mas socialmente muito por força dos media. Um Ex ministro português chegou a ter um slogan político que era “a educação é a minha paixão”. Para quem vive em Portugal ou – ao que sei – também no Brasil, sabe que quando algum sector produtivo da sociedade é totalmente entregue ao poder político, é sujeito a uma manipulação quase permanente. E tem sido mais ou menos isso que tem acontecido com o sector educativo português. Para apresentar resultados passamos a ter uma escola mais facilitista. Não podemos de uma assentada considerar que tal pressuposto é corrupção política. Até certo ponto o modelo adoptado - quase que ideologicamente adoptado – no sistema educativo português, baseado no romantismo educativo pode fazer sentido. O que acontece é que muitas vezes essas teorias românticas foram entendidas ideologicamente. E são estas ideias também aquelas que passaram a ser centrais na discussão muito activa sobre educação e sistema educativo em Portugal. A par com os problemas profissionais dos docentes (que falarei brevemente mais à frente) esta questão tem sido até bem recentemente o nervo central da discussão e o que levou a que tivéssemos uma quantidade impressionante de ministros da educação desde que há democracia em Portugal. Nenhum ministério teve tantas alterações de ministro, como o da educação. Ao longo destas gerações democráticas tem sido um vai e vem onde quase ninguém se entende de põe exame, tira exame, põe rigor, tira rigor, facilita mais, facilita menos… visto de fora parece que em Portugal ninguém se entende sobre educação e não conseguimos ter um projecto que tenha continuidade. Creio que qualquer bom advogado formado nas melhores universidades do mundo não se entenderia com a confusão, a selva imensa de leis que se produzem em Portugal para o sistema de ensino. E é curioso que ao longo da minha carreira profissional de quase duas décadas tenho conhecido professores do ensino secundário que são verdadeiros entendidos em legislação, mesmo que não sejam grandes entendidos na sua área de ensino. Mas este é provavelmente o dado mais evidente do nosso sistema de ensino: não há projecto. Há pessoas, normalmente políticos, que quando chegam ao poder impõem as suas ideias e visões pessoais do que pensam ser um sistema educativo.

Há ainda uma marca identificativa do sistema de ensino português. É que ele depende exclusivamente de um estado paternalista. Pura e simplesmente num país como Portugal não existe liberdade de ensino, pluralidade de formas de ensinar e de escolas. Mesmo o ensino privado está sujeito ao controlo do estado. Não existe qualquer liberdade de escolha. O estado decide programas, currículos, escolas tipo, etc.. e nenhum privado pode algum dia alimentar o sonho de criar uma escola com o currículo X ou Y e vender a sua escola, colocando-a à escolha dos consumidores. Aliás, esta visão nem sequer é muito bem vista em Portugal. Como é um país muito sujeito à corrupção, as pessoas no geral pensam que se o estado não controlar, será ainda pior e que a corrupção aumentará. E sem dúvida que num contexto mental como o português, isso aconteceria. Só que o contrário também aconteceria, isto é, certamente assistiríamos a um surgimento vibrante de escolas verdadeiramente criativas e estimulantes para as comunidades, pensadas de acordo com os interesses das pessoas e não do que o estado pensa que é melhor para todos. Não vou explorar muito este ponto aqui já que ele nem me parece sequer motivo de interesse em Portugal e é até socialmente uma ideia muito mal vista. Por cá atribui-se total responsabilidade em matéria educativa ao estado. Por essa razão também, num país relativamente pobre no contexto europeu, temos um sistema educativo excessivamente caro para os contribuintes. De notar que a opção pelo ensino privado reveste-se da oferta extra curricular, como aulas de apoio ou actividades extra, para além de uma selecção do ambiente social, isto é, os filhos dos pobres, dos ciganos e das comunidades menos favorecidas não vão para as escolas privadas, vão todos para as escolas públicas. Isto nota-se muito mais nos ambientes mais urbanos.

Problemas profissionais

Os problemas profissionais são relevantes pois têm ocupado grande parte da discussão em matéria educativa em Portugal. Após a revolução de Abril (*3), o país precisou de muitos professores. Ainda hoje há muitos desses professores no sistema. Muitos deles entraram para o sistema de ensino quase sem preparação universitária alguma e, para muitos deles, foram criados cursos apressadamente ao sábado de manhã para se integrarem na carreira. Muitos outros ficaram pelo caminho. Nessa altura houve um forte investimento na formação de professores e a carreira era muito bem vista. Tinha uma remuneração razoável (apesar de nada perfeita), com horários laborais apetecíveis. E estávamos na época em que quem não quisesse estudar ia para casa, portanto os problemas de indisciplina resolviam-se com a técnica pouco sofisticada, mas funcional, de chumbar. Curiosamente temos tido imensos críticos do chumbo em Portugal e em muitas escolas a ideia do chumbo é muito mal vista, pelas piores razões, pois acho que há boas razões para ver o chumbo como algo a não desejar no ensino. 

Eu próprio pertenço a uma geração em que se formaram muitos professores em Portugal. Estávamos na Europa. O número de licenciados em Portugal era uma vergonha comparada com os nossos pares europeus. Tínhamos de formar pessoas. E fizemo-lo, mais uma vez, com um plano elaborado por políticos em cima do joelho. Chegou dinheiro a rodos da Europa ao país. Nessa altura era normal encontrar alguém sem grande formação, que trabalhava de pequenas tarefas agrícolas no quintal lá de casa e que passou a ser profissional de cursos. O que é um profissional de cursos? É alguém que recebe dinheiro para tirar cursos. Em Portugal pagou-se milhares de euros para as pessoas estudarem. E ainda se paga. Aliás, em Portugal paga-se mais a quem não quer estudar, para estudar, do que a quem quer estudar. Alguém que não queira estudar neste país fica 3 ou 4 vezes mais caro do que alguém responsável e que se aplique afincadamente nos estudos. 

A minha geração meteu no sistema de ensino milhares de professores, novamente, sem qualquer plano futuro, sem alguma visão de sustentabilidade. E o mais paradoxal é que os bons resultados desse investimento, mesmo após 3 ou 4 décadas, ainda só timidamente aparecem. Os mais críticos alegam que se deu formação às pessoas sem qualquer exigência. Seja como for, de uma forma geral, em Portugal, hoje temos como nunca tivemos, uma imensa geração muitíssimo mais preparada cientificamente e socialmente. Mas o que temos também é outro tipo de exigências sociais e económicas que o peso excessivo do estado controlador e apetecível tende a estrangular. E a própria sociedade vive a ilusão que tem de ser o estado a assegurar toda a vida social e económica. 

As coisas parecem lentamente mudar. Hoje em Portugal as novas gerações olham menos para o currículo e mais para as competências de cada um. Hoje começa a ser comum falar-se em analfabetos funcionais, pessoas que apesar de terem estudado muitos anos, são incapazes de pensar pela própria cabeça. Ou seja, há aqui uma mudança do que se passa a valorizar. Mas ao mesmo tempo vive-se intensamente a ilusão de que o estado e os políticos é que têm de decidir e resolver os problemas da vida de cada um. E sempre que as coisas estão nas mãos do poder político voltamos ao mesmo: projectos sem clareza nos objectivos, uma selva de leis, a confusão completa e uma ilusão de estabilidade que nos tempos presentes anda muitíssimo ameaçada. É o caso dos anos mais recentes da tão falada avaliação dos professores. O poder político espalha a notícia que avaliando os professores o sistema de ensino irá melhorar. O problema é que o poder político não quer melhorar o sistema de ensino. Apenas não pode é gastar tanto dinheiro nos salários dos professores e inventou uma forma de o fazer, não se auto penalizando na opinião pública. A ideia de que os professores têm de ser avaliados colou bastante bem na opinião pública, ao ponto dos próprios professores e seus sindicatos representantes aceitarem pacificamente a ideia (como se não houvesse pontos críticos na ideia em si). Mas nos últimos anos caíram ministros precisamente pela forma proposta para avaliar professores. Neste momento os professores do ensino público português têm uma avaliação burocrática que em nada tem que ver com a melhoria do ensino, mas que visivelmente os prejudica muito em termos de carreira profissional. Neste momento teme-se até que a avaliação conjugada com outros factores atire centenas senão milhares de professores para o desemprego. 

Numa reflexão pessoal final, pode-se pensar que em Portugal vive-se um momento de viragem e que as coisas estão a acontecer de um modo ou de outro. Mas se o leitor pensar deste modo e fizer uma revisão no meu longo texto, concluirá que em Portugal, neste momento, passa-se o que exactamente se tem sempre passado. O que o sistema educativo português precisa é de estabilidade durante alguns anos. E de maior liberdade de iniciativa individual ou de colectividades. Enquanto isso não acontecer andamos de reforma em reforma de acordo com as vontades das cores dos partidos eleitos pelo povo.

Notas:

(1*) - À volta de 10 milhões de habitantes, metade dos habitantes actuais de uma cidade como S. Paulo, só para ter uma ideia de dimensão.

(2*) - Ao contrário do que é hábito no Brasil, em Portugal usamos muito a legendagem e não a dobragem de filmes ou documentários

(*3) - Assim é conhecido em Portugal o golpe militar contra a ditadura em 1974.
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Rolando Almeida é professor de filosofia no ensino público português e autor do blog: 

http://filosofiaes.blogspot.pt/

Conta em breve voltar ao ensino com os seguintes temas:

1. O ensino da filosofia em Portugal

2. A formação científica dos professores

sábado, 23 de março de 2013

Apenas alguns livros - Parte I



Por insistência de certos leitores, inicio aqui uma breve lista de alguns dos livros mais fascinantes que conheço sobre matemática, física e filosofia da ciência. A escolha dessas três áreas do saber se deve a um fator muito importante: a estreita relação entre ciências reais e formais e filosofia. 

Esta é a primeira de uma série de postagens que apresentam recomendações bibliográficas em áreas como lógica, teoria de conjuntos, teoria de categorias, física-matemática, álgebra, topologia, geometria diferencial, geometria euclidiana, geometria projetiva, teoria dos números, cálculo diferencial e integral, álgebra linear, estatística, história da matemática, mecânica clássica, física quântica, teorias da relatividade de Einstein, teorias de campos, probabilidades, análise matemática, filosofia das ciências reais e formais e ensino de matemática. Espero que o leitor aproveite e também recomende outros textos. 

Há algum tempo tenho doado centenas de meus livros para pessoas interessadas. Uns poucos ainda restaram e pretendo distribuí-los gratuitamente entre leitores deste blog. Solicitações devem ser feitas na forma de comentários e devidamente justificadas. Quem apresentar a melhor justificativa, receberá o livro pedido sem despesa alguma e em qualquer parte do mundo. Os critérios de avaliação são subjetivos e definidos única e exclusivamente por mim, sem qualquer direito a apelação. Os livros ainda disponíveis estão marcados na lista.

Esta é também uma postagem cuja redação poderá ser modificada, com o passar do tempo. Os livros listados que forem escolhidos para doação serão atualizados, para que não ocorra a possibilidade de alguém solicitar algo que não possa efetivamente receber. E eventualmente posso também incluir novas obras nas listas já criadas.

Para aqueles que forem contemplados com livros, peço apenas que acusem o recebimento na forma de comentário na postagem respectiva.

Desejo a todos uma boa leitura. Começo a lista com três áreas do conhecimento.
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Observação (31/03/2013): Todos os livros inicialmente disponibilizados nesta primeira lista já foram selecionados para doação.
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História da matemática

1) Men of mathematics, Eric Temple Bell (Touchstone, 1986). Clássico da literatura que narra e comenta a vida e a obra de quarenta matemáticos e uma matemática, cobrindo mais de dois mil anos de história. É livro de cabeceira, de leitura muito agradável, não-técnica, e que destaca aspectos curiosos sobre personalidades que edificaram algumas das principais teorias matemáticas. 

2) Elements of the history of mathematics, Nicolas Bourbaki (Springer Verlag, 1994). Bourbaki é pseudônimo coletivo de um seleto grupo de matemáticos que escreveu extensa obra de vários volumes sob o título coletivo Os Elementos da Matemática. Cada volume traz algo a respeito da história da criação e do desenvolvimento do tópico principal abordado. Este livro reúne os conteúdos históricos. Bourbaki exerceu forte influência na matemática brasileira, décadas atrás. Apesar de omitir fatos históricos significativos, a obra é fascinante para aqueles que querem compreender a gênese de algumas das grandes ideias nesta área do conhecimento. 

3) Mathematical developments arising from Hilbert problems, volumes 1 e 2, Felix E. Browder (editor) (American Mathematical Society, 1976) [doado para Priscila Cavassin]. Coletânea de artigos que visa uma avaliação dos famosos 23 problemas de Hilbert, bem como algumas propostas de novas questões. Em 1900 o alemão David Hilbert ministrou uma histórica palestra sobre as tendências da matemática do século 20, listando os famosos problemas. Suas 23 profecias se confirmaram como questões centrais da matemática, apesar desta ciência ter também avançado por outros caminhos jamais antecipados pelo matemático alemão.

4) Mathematics: frontiers and perspectives, Vladimir Arnold, Michael Atiyah, Peter Lax, Barry Mazur (editores) (American Mathematical Society, 2000) [doado para Márcia Sakai]. Leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada em matemática. É uma coletânea de artigos escritos por trinta matemáticos de renome, sendo metade deles ganhadores da Medalha Fields, o "Nobel" da matemática. Muitos dos artigos são escritos em linguagem não-técnica, fazendo deste livro praticamente uma obra de divulgação científica. Inspirado no exemplo de Hilbert (ver referência acima), o objetivo principal do livro é apontar para as tendências da matemática do século 21. Especial atenção para o artigo de Steve Smale, que cita trabalhos dos brasileiros Newton da Costa, Francisco Doria, Maurício Peixoto, Jacob Palis e Celso Grebogi.

5) From Frege to Gödel, J. von Heijenoort (editor) (Harvard University Press, 2002). Com suas 680 páginas é, provavelmente, a mais importante referência em história da lógica. Apresenta versões originais e excelentes traduções para o inglês de quarenta e seis artigos de extraordinária importância e escritos por cientistas consagrados como Hilbert, Padoa, Zermelo, Frege, von Neumann, Russel, Herbrand, Cantor, Gödel, Dedekind, Kolmogorov, entre outros. Cada artigo é acompanhado de extensos e pertinentes comentários do editor.

6) Bourbaki: a secret society of mathematicians, M. Marshaal (American Mathematical Society, 2004). Livro que conta a história da sociedade secreta Nicolas Bourbaki, desde seu nascimento em 1935 até os dias de hoje. Este grupo francês, segundo o autor, escreveu a obra mais influente da matemática do século 20.

7) Histoire des mathématiques, volumes 1 a 4, Jean-Étienne Montucla (Paris, 1799-1802). Este livro obviamente dispensa apresentações. É o primeiro tratado sério sobre a história da matemática. Ou seja, este livro faz parte da própria história da matemática. Infelizmente tive pouco contato com a obra incompleta de Montucla, restringindo minhas investigações ao problema da influência de marés oceânicas sobre a órbita da lua.


Lógica

1) Introduction to mathematical logic, Elliot Mendelson (Chapman & Hall, 1997). É provavelmente o melhor livro de introdução à lógica que existe. Partindo do pressuposto de que o leitor nada conhece sobre o tema, chega a tópicos avançados, como computabilidade e os teoremas de Gödel. Texto didático, recheado de exemplos e exercícios. A quarta edição desta obra é a melhor de todas.

2) Introduction to mathematical logic, Alonzo Church (Princeton University Press, 1996) [doado para Ítalo Oliveira]. Church foi um dos lógicos mais rigorosos do século 20. Este livro é um excelente complemento à obra de Mendelson (ver referência acima). As notas de rodapé são tantas e tão detalhadas que praticamente constituem um livro dentro de um livro.

3) A mathematical introduction to logic, H. B. Enderton (Academic Press, 2001). Fabulosa introdução à lógica matemática. O livro também aborda temas incomuns em textos introdutórios, mas importantes, como o teorema de Craig e modelos não-standard. Excelente fonte para estudos sobre teorias de segunda ordem.

4) Foundations of Mathematics, William S. Hatcher (W. B. Saunders, 1968). Excelente introdução aos fundamentos da matemática, com discussões sobre teorias de primeira ordem, sistema de Frege, teoria de tipos, teorias de conjuntos de Zermelo-Fraenkel e de von Neumann-Bernays-Gödel, e teoria de categorias.

5) Ensaio sobre os fundamentos da lógica, Newton C. A. da Costa (Hucitec, 2008) [doado para Thiago Andrade]. Terceira edição de obra que discute com grande profundidade lógica e razão, diferentes sistemas formais em lógica e as relações entre lógica e realidade. Não é adequado para iniciantes. Há tradução para o francês.

6) A course in mathematical logic, Yuri I. Manin (Springer-Verlag, 1977). Texto avançado de lógica, recomendável apenas para os iniciados. Trata de questões como demonstrabilidade, computabilidade e aplicações de lógica em física quântica.

7) Aprendendo lógica, C. L. Bastos e V. Keller (Vozes, 2000). Leitura que deveria ser obrigatória entre estudantes dos ensinos fundamental e médio no Brasil. Os autores discutem de maneira informal sobre questões que todos deveriam conhecer, como meios de convencimento, argumentos, sofismas e silogismos. É um texto muito elementar, mas que se insere perfeitamente bem no cotidiano de todos. 


Filosofia da Ciência

1) Introdução aos fundamentos da matemática, Newton C. A. da Costa (Hucitec, 1992) [doado para Maikon James]. Breve apresentação das três principais escolas filosóficas da matemática, a saber, intuicionismo, formalismo e logicismo. Encerra com uma interpretação linguística para a matemática. Livro pequeno (menos de cem páginas), mas de grande profundidade. 

2) Science and partial truth, Newton C. A. da Costa e Steven French (Oxford University Press, 2003). Importante livro que trata da noção de quase-verdade nas ciências reais. Leitura obrigatória para o filósofo da ciência que se ocupa da noção de verdade. A tese principal coloca em xeque a célebre visão de Karl Popper sobre ciência. 

3) O conhecimento científico, Newton C. A. da Costa (Discurso Editorial, 1999). Uma espécie de versão preliminar da obra acima citada. Vários colaboradores de da Costa escrevem notas no final do livro. Uma pérola da filosofia da ciência escrita originalmente em português e já traduzida para o espanhol. 

4) Representation and invariance of scientific structures, Patrick Suppes (Center for the Study of Language and Information, 2002). Este livro é o memorial do filósofo da ciência Patrick Suppes (um dos mais importantes do século 20), segundo o qual axiomatizar uma teoria é definir um predicado conjuntista. A obra trata do emprego de métodos formais em filosofia da ciência, com especial ênfase para teorias de probabilidades, teorias físicas e teorias da linguagem (incluindo discussões sobre processos do cérebro humano ligados às funções da linguagem). 

5) Concepts of mass in contemporary physics and philosophy, Max Jammer (Princeton University Press, 2000). Brilhante discussão sobre questões relativas à noção de massa em física, incluindo teorias clássicas e quânticas, tanto relativísticas quanto não-relativísticas. O autor é um dos mais respeitados filósofos e historiadores da física, sendo que seu primeiro livro foi prefaciado por Albert Einstein. Tenho a honra de ser citado tanto nesta obra quanto na referência acima. 

6) O Irracional, Gilles-Gaston Granger (Unesp, 2002). Livro fascinante que mostra como posturas irracionais são comuns e até necessárias, tanto nas ciências reais (especialmente a física) como nas formais (lógica e matemática). Leitura altamente recomendável, principalmente para desfazer certos mitos sobre ciência e racionalidade.

7) The principles of mechanics, H. R. Hertz (Dover, 1956). Tradução do original alemão publicado em 1894. Este livro consagrou Hertz como um filósofo da física. O autor discute com muita propriedade o caráter metafísico de força em mecânica newtoniana e propõe uma nova formulação para a mecânica clássica, sem menção alguma ao conceito de força. Há extensas discussões na literatura sobre esta histórica obra.
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Para acessar a lista completa de livros recomendados clique aqui.

domingo, 17 de março de 2013

Ensino a distância



O termo "ensino a distância" é amplamente empregado por profissionais da educação e simplesmente repetido em todos os segmentos sociais sem uma devida qualificação e avaliação. Afinal, todo processo de ensino promovido por profissionais da educação envolve algum tipo de distância. Além da distância espacial física óbvia (duas pessoas não podem ocupar a mesma região do espaço, definida pelos seus corpos, ao mesmo tempo), existem também as distâncias emocionais (não compete a professores quaisquer aproximações emocionalmente profundas com seus alunos), sociais (comumente professores e alunos vivem realidades diferentes), intelectuais (professores deveriam conhecer os assuntos que lecionam melhor do que seus alunos), pedagógicas (professores deveriam conhecer processos educacionais melhor do que seus alunos) e culturais (cada pessoa tem a sua própria cultura). E no caso do ensino promovido por certas instituições universitárias, frequentemente ele ocorre a grandes distâncias, por conta de livros publicados por editoras associadas a universidades. E isso acontece desde muitos anos antes da popularização da internet e do emprego de outras mídias eletrônicas para a divulgação do conhecimento.

Não creio que exista uma terminologia adequada para substituir a expressão "ensino a distância". "Ensino não presencial" também é um termo inadequado, por ser vago e ambíguo (pessoas vivas sempre estão presentes em algum lugar). Além disso, quando um aluno estuda sozinho um livro em seu quarto ou qualquer outro ambiente reservado, podemos ter um caso de ensino localmente não presencial, relativamente a uma sala de aula ou demais dependências de uma instituição de ensino. Livros têm colaborado no processo de ensino há milênios. E livros permitem o acesso ao conhecimento sem (necessariamente) contato pessoal com instituições, professores ou mesmo autores.

Se um professor ou mesmo uma instituição emprega ferramentas da internet ou de demais veículos de telecomunicações para fins educacionais, está apenas estendendo as técnicas pedagógicas usuais de aulas expositivas em sala. Nada além disso. Analogamente, os próprios veículos de telecomunicações apenas estendem a capacidade de comunicação para distâncias maiores.

A suposta globalização promovida pela internet é mais um sonho do que uma realidade, enquanto não forem promovidas mudanças culturais significativas em escala global. A internet continua impregnada por divisas culturais e até mesmo geográficas. E tais divisas persistem porque a natureza humana reage lentamente às novidades tecnológicas. Isso significa que mesmo a internet não tem conseguido vencer distâncias de forma socialmente significativa, pelo menos por enquanto. Recentemente, por exemplo, foi noticiado que o Ministro da Educação de Cabo Leste declarou que menores de vinte e um anos não têm direito algum. Quais são os reflexos deste tipo de notícia em escala global? Quem, no Brasil, na Alemanha ou no Caribe, é afetado de forma significativa por esta afirmação irresponsável do Ministro da Educação de um país que muitos sequer sabem onde fica? Se uma pessoa residente no Brasil se mostra indignada com esta abominável declaração, corre o risco de ser julgada pelos amigos de suas redes sociais como um mero chato. Sempre existem aqueles "chatos" da internet que defendem a preservação e o bem-estar de elefantes na Índia. Mas por que essas pessoas são consideradas chatas em um país como o nosso? Simplesmente porque o Brasil é uma nação que não enfrenta qualquer problema grave com elefantes. Analogamente, no caso de movimentos sociais a favor de direitos aos homossexuais, raramente percebemos ativistas que não sejam homossexuais ou que, pelo menos, não sejam amigos ou parentes de homossexuais. 

Eu mesmo não defendo ativamente nem elefantes e nem homossexuais. Isso porque pertenço ao nicho social da educação matemática brasileira. Estou socialmente muito distante de elefantes e homossexuais, apesar de conhecer inúmeros homossexuais em meus círculos sociais. Infelizmente, o mesmo não posso dizer sobre elefantes. Mas o  mínimo que posso fazer a respeito dessas causas é tomar conhecimento delas e até mesmo discutir, ainda que superficialmente, sobre esses problemas, como estou fazendo aqui neste momento. É uma tentativa de diminuir as distâncias sociais entre diferentes segmentos. Daí o subtítulo deste blog: Matemática e Sociedade. Sempre procuro especializar as postagens para discutir sobre matemática. Mas procuro também estabelecer conexões entre matemática e outras atividades sociais como linguística, medicina, direito, história, psicologia, artes e outras áreas do saber e da cultura mundial. Se em algum momento eu descobrir relações não triviais entre matemática e elefantes ou matemática e homossexuais, certamente divulgarei a respeito desses temas neste blog. 

Comumente convido pessoas para colaborar com depoimentos ou simples artigos para publicação neste fórum. Poucos são os que recusam os convites. Menos ainda são aqueles que efetivamente colaboram, apesar de aceitarem. Mas os textos escritos por colaboradores fazem parte de uma estratégia para minimizar distâncias. Já cheguei a publicar neste blog até mesmo textos de colaboradores cujas opiniões conflitam com as minhas. Mas isso não é relevante. O relevante é diminuir distâncias. Assim temos mais chances de conquistar uma sociedade justa. Aqueles que odeiam homossexuais, matemática ou elefantes são comumente pessoas que não têm ideia do que é homossexualismo, matemática ou um elefante. 

Já fiz incisivas críticas à estabilidade irrestrita concedida a professores de universidades públicas em nosso país. No entanto, na enquete promovida neste blog e que será encerrada daqui a 77 dias, alguns votaram a favor da estabilidade irrestrita. Posso ser radicalmente contra essa opinião, mas não consigo deixar de admirar a postura dessas pessoas. Isso porque elas conseguem ler um blog que divulga ideias absolutamente conflitantes com seus valores pessoais. Portanto, essas pessoas não se deixam intimidar por distâncias ideológicas. São indivíduos que parecem compreender algo essencial a respeito do papel unificador originalmente proposto por criadores e mantenedores da internet. São pessoas que não se afastam ou temem aqueles que discordam delas. Aquele que adota uma ideologia e restringe seus círculos sociais somente a colegas e amigos que pensam de forma parecida é uma pessoa socialmente isolada. E o isolamento social não é uma postura inteligente. 

Muita gente discute as vantagens e as desvantagens do "ensino a distância" sem se dar conta do que realmente está acontecendo. Décadas atrás o Brasil discutia fervorosamente se deveria adotar o divórcio como forma legal de separação de um casal. Hoje o divórcio é uma realidade corriqueira. Com o ensino a distância algo semelhante ocorre. Enquanto pedagogos, dirigentes, professores e cidadãos em geral discutem os méritos e os supostos perigos do "ensino a distância", esta modalidade de ensino já é uma realidade. Já existem milhares de serviços desta natureza oferecidos via internet e outras mídias. O antigo Projeto Minerva, surgido antes da popularização da internet, já era uma forma de ensino a distância oferecido aqui no Brasil. 

Neste blog mostrei a péssima qualidade de um dos serviços de "ensino a distância" recentemente criados. Aos poucos tenho estudado a respeito de outros. Mas também já mostrei exemplos de livros de matemática com qualidade questionável. Ou seja, o que deve ser discutido não são as vantagens do "ensino a distância" em relação a outras modalidades de educação. As vantagens já estão mais do que claras. O "ensino a distância" viabiliza uma forma economicamente mais viável de educar. Além disso, é um agente socialmente unificador que, talvez, em algum futuro distante, consiga democratizar o direito à educação. Isso poderá ocorrer principalmente a partir do momento em que se apresente alguma solução que concilie o direito à educação com o direito à propriedade intelectual. Por enquanto, os sites mais relevantes do ponto de vista científico são, em sua maioria, pagos. E custam muito caro. O material de estudos disponibilizado gratuitamente na internet é ainda muito primário, salvo raras exceções. 

O que realmente interessa discutir são as desvantagens do "ensino a distância" como opção dominante e, principalmente, a qualidade de ensino. A distância espacial promovida pelo aprendizado via internet, por exemplo, pode agigantar de forma muito perigosa a distância emocional entre mestre e discípulo. Além disso, muito do que aprendi com certas pessoas em salas de aula, em conversas telefônicas, em trocas de e-mails ou em diálogos na hora do cafezinho, jamais eu poderia encontrar em algum site, mesmo que fosse mantido por alguma das melhores universidades do mundo. 

Quem limita seu aprendizado aos conteúdos expostos na internet age de forma tão tola quanto aquele que se escraviza aos conteúdos de um só livro. Educação de qualidade ocorre em vastas redes sociais, nas quais a internet é apenas uma das componentes. As palavras-chave são duas: diversidade e senso crítico. 

Todo aquele que estuda precisa de diversidade de experiências intelectuais: leitura de livros, acesso à internet, diálogos com pessoas que compartilham dos mesmos interesses (mas não das mesmas opiniões), estudos individuais etc. E todo aquele que estuda precisa exercitar seu senso crítico. Durante toda a minha vida acadêmica conheci uma única pessoa com apurado senso crítico. Ou seja, não é fácil analisar criticamente o conhecimento. A busca pelo senso crítico é como a busca pelo horizonte. Podemos ver que ele está lá. Mas jamais o alcançamos, por mais que tentemos. Mesmo assim é uma meta fundamentalmente necessária. 

Enfim, o "ensino a distância" não mudará o fato de que sempre existirão profissionais da educação medíocres. E nem mudará o fato de que, enquanto houver civilizações humanas, existirão centros de excelência com avançada produção intelectual.

quinta-feira, 14 de março de 2013

A matemática necessária para compreender física



Frequentemente jovens perguntam o quão profundamente devem estudar matemática para compreender física teórica. Honestamente, nunca gostei desta pergunta. Isso porque implicitamente ela encerra a noção de que há um limite de conhecimento matemático necessário para compreender física. E tal limite simplesmente não existe. Quem interrompe seus estudos de matemática, limita seriamente seus conhecimentos físicos.

No entanto, existe um conhecimento matemático mínimo necessário para iniciar estudos básicos em física teórica: cálculo diferencial e integral, equações diferenciais, álgebra linear, teoria de probabilidades e teoria de grupos. 

Sobre cálculo diferencial e integral e equações diferenciais já discuti em postagem anterior. Grosso modo, equações diferenciais (fundamentadas a partir do cálculo diferencial e integral) constituem o coração de qualquer formulação usual das teorias físicas mais comuns. O eletromagnetismo clássico, por exemplo, se fundamenta nas equações de Maxwell. Mecânica quântica se sustenta na equação de Schrödinger. Mecânica clássica é fundamentada na segunda lei de Newton. Teoria da relatividade geral se baseia nas equações de Einstein. E as equações de Maxwell, Schrödinger e Einstein são equações diferenciais, assim como a segunda lei de Newton. Comentários análogos podem ser feitos em relação às teorias de gauge, a termodinâmica e demais exemplos de teorias físicas. 

A álgebra linear minimamente aceitável para iniciar estudos em física teórica é aquela que envolve o enunciado, a demonstração e aplicações do teorema espectral. Se uma pessoa conhece bem os pré-requisitos necessários para discutir criticamente sobre aplicações do teorema espectral, já domina um conteúdo matemático necessário (apesar de insuficiente) para desenvolver alguns estudos sobre mecânica quântica. A rigor, estudos avançados de análise funcional (espaços de Hilbert e espaços de Banach) é extremamente recomendável. Caso contrário, o estudante corre o risco de apenas repetir procedimentos usualmente adotados em livros sobre mecânica quântica, mas sem compreender o significado de tais procedimentos. 

Existem também inúmeras aplicações fundamentais de teoria de probabilidades em física teórica. As mais conhecidas ocorrem em mecânica estatística clássica e mecânica quântica. No entanto, físicos ainda não conseguiram explicar de forma clara o papel de probabilidades no último caso. 

Usualmente teoria de probabilidades deve ser estudada a partir dos axiomas de Kolmogorov, apesar de existirem outras formulações para a noção de probabilidades. Mas se o estudante de física conhecer bem a formulação devida a Kolmogorov, já poderá contar com uma visão privilegiada sobre o tema das probabilidades. Porém, vale observar que existem aqueles que creem que a teoria de Kolmogorov não é aplicável à mecânica quântica, apesar de muitos físicos pensarem o contrário, sem de fato compreenderem o que são probabilidades. 

Finalmente, teoria de grupos constitui uma base fundamental para a compreensão dos princípios de invariância ou simetria em física teórica. Como entender a diferença entre eletromagnetismo clássico e mecânica clássica, sem um adequado conhecimento de teoria de grupos? Simplesmente não é possível. As leis físicas da mecânica clássica são invariantes sob transformações do grupo de Galileu. Já as leis do eletromagnetismo (descritas pela teoria relativística de Maxwell) são invariantes sob a ação do grupo de Poincaré. E esses dois grupos de transformações são simplesmente incompatíveis entre si. Foi uma simples aplicação de teoria de grupos que permitiu a concepção da noção de quark, partícula fundamental que permite descrever a estrutura interna de partículas que compõem o núcleo de átomos. Uma obra excepcional sobre aplicações de grupos em física é o livro Group Theory and Physics, de S. Sternberg.

Mas a física-matemática (que corresponde ao estudo de métodos matemáticos aplicados em física teórica), como era de se esperar, vai muito além dos tópicos acima abordados. 

O russo Vladimir Arnol'd, por exemplo, apresenta uma formulação para a mecânica clássica que se sustenta fortemente em elementos de geometria diferencial, tratando fenômenos mecânicos via variedades diferenciáveis e geometria simplética, com um formalismo muito empregado em teorias clássicas de campos. E como conhecer variedades diferenciáveis sem uma visão adequada de topologia geral? Mecânica clássica é apenas um exemplo, entre muitos, de teoria física que apresenta inúmeras formulações não equivalentes entre si do ponto de vista matemático. 

Também convido o leitor a comparar os livros Mathematical Physics, de Eugene Butkov, e Mathematical Physics, de Robert Geroch. Os dois têm o mesmo título, mas não há qualquer outro ponto em comum entre ambos. Isso porque a obra de Butkov trata do tema da física-matemática sob o ponto de vista conjuntista usual, enquanto o livro de Geroch aborda o mesmo tema sob o ponto de vista categorial. Portanto, como conhecer amplamente física teórica sem um estudo aprofundado sobre teoria de categorias? Existem inúmeras aplicações importantes de teoria de categorias em física teórica. Eu mesmo já fiz uma modesta contribuição nesta área.

Existem ainda as aplicações de métodos de lógica matemática em física teórica. Um exemplo bem conhecido é o resultado obtido pelos brasileiros Newton da Costa e Francisco Doria, no qual se demonstra a impossibilidade de conceber um algoritmo que permita decidir se um sistema dinâmico qualquer é caótico ou não. Esta é uma das aplicações mais importantes de lógica matemática em teoria do caos. Portanto, sem um conhecimento profundo de lógica matemática, qualquer visão a respeito de física teórica torna-se extremamente limitada. 

Em suma, o tema é por demais extenso para ser explorado de forma detalhada em uma postagem de blog. Mas espero ter convencido o leitor de que não faz sentido perguntar qual é o conteúdo matemático minimamente necessário para compreender física teórica.

Porém, vale um importante alerta para aqueles que pretendem aprofundar seus estudos matemáticos com o objetivo de melhor compreender física. É muito fácil um pesquisador se distanciar da física quando exagera em sua visão matemática do mundo. Um exemplo interessante é o estudo das teorias de gauge. As teorias de gauge são provavelmente as teorias físicas mais fiéis à matemática. E são provavelmente as teorias físicas com maior número de casos de conceitos matemáticos sem interpretação física ou com interpretação polêmica. 

Nas demais teorias físicas, muito comumente pesquisadores e cientistas fazem manobras teóricas sem fundamentação matemática alguma. Um exemplo bem conhecido são as famosas aproximações. Isso ocorre porque mesmo a física de hoje é fortemente sustentada em intuição. E intuições são muito difíceis de serem justificadas racionalmente. Um exemplo histórico bem conhecido é o átomo de Bohr, nos primórdios do nascimento da mecânica quântica. Niels Bohr criou um modelo para explicar a estrutura de átomos, o qual se baseia em ideias absolutamente contraditórias. Uma discussão detalhada sobre o tema pode ser encontrada no livro O Irracional, de Gilles-Gaston Granger. 

Ninguém até hoje estabeleceu de forma clara qual dose de formalismo matemático deve ser usada em física teórica e qual a dose de intuição, sem apelo racional imediato, que deve ser tolerada. Portanto, a melhor saída deste dilema é a discussão crítica. Física, como todas as demais ciências, é uma atividade social. Se alguém tem uma ideia nova, deve submetê-la à análise crítica promovida pelos seus pares. Sem discussão, não há ciência. 

Físicos usam a matemática como se estivessem escrevendo torto em linhas retas. Por isso mesmo muitas teorias matemáticas certas surgem a partir de ideias aparentemente tortas dos físicos, estabelecidas a partir de meras intuições. Quando Paul Dirac empregou a função delta que hoje é conhecida pelo seu nome, os matemáticos ficaram alarmados com a ignorância do físico britânico. Hoje a teoria de distribuições mostra claramente que todas as intuições de Dirac estavam corretas do ponto de vista matemático. Ou seja, fazer física é como navegar em um oceano de ideias, sendo algumas delas racionais e outras nem tanto. 

sábado, 9 de março de 2013

Analogias em educação



Analogias são frequentemente empregadas em sala de aula como instrumento didático, na tentativa de tornar os assuntos estudados mais facilmente compreensíveis pelos alunos. No entanto, existem vantagens e desvantagens no emprego de analogias, principalmente no estudo de ciências, incluindo a matemática. Nesta postagem espero lançar alguma luz sobre este complexo e importante problema.

Existem várias acepções muito distintas para o termo "analogia" em biologia, filosofia da ciência, ciências jurídicas, teologia e outras áreas do saber. Uso nesta postagem a seguinte acepção: analogia é um processo cognitivo que estabelece semelhanças entre fatos, ideias e/ou teorias. Reconheço que esta noção meramente intuitiva é vaga e pouco abrangente. Mas acredito que possa ser empregada para uma discussão inicial sobre o papel de analogias como recurso didático em sala de aula.

Analogias são usadas desde os primórdios da ciência até os dias de hoje. É bem conhecida, por exemplo, a analogia que Benjamin Franklin fazia entre centelhas elétricas e relâmpagos, na esperança de convencer pessoas de que se tratavam do mesmo fenômeno físico. Uma teoria física, como a gravitação universal de Newton, igualmente sugere que a queda de uma maçã e a órbita da lua ao redor de nosso planeta são fenômenos análogos que podem ser descritos a partir de um mesmo modelo matemático. E vale observar que a própria concepção de modelos em ciência também apresenta um caráter de analogia entre experiências no mundo real e construtos.

Os físicos chegam a especializar a noção de modelo a ponto de empregar os chamados toy models (modelos de brinquedo). Já vi toy models para certos fenômenos da mecânica quântica concebidos a partir de rodas e elásticos. E tais modelos foram apresentados e discutidos em ótimos periódicos de física, sendo muitas vezes amplamente citados na literatura especializada. Os toy models podem ser extremamente úteis não apenas para uma compreensão intuitiva de fenômenos físicos bizarros mas também para a antecipação de novos fenômenos e até mesmo para a criação de novas tecnologias. 

No entanto, tais analogias empregadas na concepção de teorias científicas ou de simples modelos sempre passaram pelo duro teste da análise crítica. E filósofos da ciência, em geral, têm consciência de que teorias e modelos matemáticos não espelham necessariamente a realidade, mesmo quando assumimos que existe alguma realidade. 

Retorno ao exemplo da aparente atração gravitacional entre corpos com massa. Não há como garantir, sem sombra de dúvida, que todos os corpos com massa se atraem. O que podemos garantir, até o presente momento, é que todas as experiências e observações realizadas sugerem que, aparentemente, os corpos com massa são atraídos uns pelos outros. E existem várias teorias que descrevem esta aparente atração entre corpos. A gravitação universal de Newton é um modelo matemático que sugere a existência de uma força conhecida como força gravitacional. Na teoria da relatividade geral de Einstein, no entanto, jamais há qualquer menção a forças. A suposta atração entre corpos se justifica a partir de uma concatenação entre um tensor de energia e uma métrica do espaço-tempo. Já na gravitação weberiana proposta por André Assis, existem forças. No entanto, tais forças weberianas têm um papel completamente diferente das forças newtonianas. Tanto é verdade que, na gravitação weberiana, a força resultante sobre qualquer sistema físico é sempre nula. Na teoria de gravitação de Hoyle e Narlikar, ao contrário do que ocorre na teoria de Newton, a ação das forças entre corpos distantes jamais é instantânea, sempre se propagando pelo espaço na velocidade da luz no vácuo. E na gravitação de Hertz, que axiomatizei anos atrás, existem interações instantâneas, porém não descritas por forças. Ou seja, estes são apenas alguns exemplos de teorias distintas que procuram explicar a aparente atração entre corpos com massa, sendo que a própria noção de massa também muda, conforme a teoria. Um dos pontos em comum entre diferentes teorias de gravitação é a visão de que certos fenômenos físicos são análogos a outros. Se algumas teorias são mais amplamente usadas por físicos do que outras, isso se deve a extensas discussões que duram décadas ou até mesmo séculos. Até hoje, por exemplo, existem análises críticas originais sobre a gravitação universal de Newton. 

Se um professor promove analogias em sala de aula, com o objetivo de lecionar ciência, sempre deve tomar muito cuidado. Existe uma tendência natural, entre alunos, de considerar seus mestres como autoridades intelectuais. Se uma analogia é nova ou pouco discutida na literatura, existe o sério risco do professor estar expondo uma visão pessoal que jamais passou seriamente pelo teste da análise crítica. E é principalmente neste ponto que reside o perigo do emprego ignorante de analogias.

Infelizmente existe uma distância muito grande entre cientistas, professores e autores de livros didáticos. É como diz o máxima popular: quem sabe, faz; quem não sabe, ensina. Apesar do evidente exagero deste ditado, ele certamente encerra uma perturbadora verdade. 

Existe, entre muitos, a falsa ideia de que os conhecimentos humanos jamais podem ser perdidos. No entanto, a história tem ensinado que civilizações inteiras, no passado, não conseguiram preservar certos conhecimentos científicos, tecnológicos e culturais. Não há motivos para considerar que as atuais civilizações humanas sejam diferentes daquelas do passado remoto, em termos da preservação de cultura, ciência e tecnologia. Sem um contato mais próximo entre cientistas, professores, autores de livros didáticos, profissionais da mídia, governos, empresários e demais segmentos da sociedade, a preservação e o desenvolvimento do conhecimento estão sempre ameaçados. E, sem conhecimento relevante, a própria sobrevivência da espécie humana torna-se tão provável quanto a de qualquer outra. 

Cito, a seguir, dois exemplos irresponsáveis de analogias usualmente empregadas em sala de aula.

Regras de sinais em matemática. Costuma-se dizer que, na multiplicação entre números reais, sinais iguais resultam em um número positivo e sinais contrários resultam em um sinal negativo. Uma analogia muito comum, apresentada para alunos do ensino básico, é a seguinte: o amigo de meu amigo é meu amigo; o amigo de meu inimigo é meu inimigo; o inimigo de meu amigo é meu inimigo; o inimigo de meu inimigo é meu amigo. Neste exemplo se assume que amigo corresponde ao sinal positivo e inimigo corresponde ao sinal negativo. Há pelo menos três problemas graves nesta analogia. 

1) Não existe relação trivial entre operações aplicadas a números reais e relações humanas.

2) Afirmar, por exemplo, que o inimigo de meu inimigo é meu amigo, é simplesmente um preconceito social. 

3) Justificar fundamentos da matemática a partir de supostas relações humanas pode provocar a sensação de que a matemática carece de justificativas racionais.

O conjunto dos números reais, em matemática, pode ser formalmente caracterizado de diversas formas. Em uma delas, é assumido que os números reais constituem um corpo ordenado completo. Isso significa que as regras de sinais podem ser justificadas a partir dos axiomas de um corpo ordenado completo. Também é possível definir números reais a partir de uma visão semântica, apelando para o conceito conjuntista usual de modelo. Nesta acepção, as regras de sinais podem ser justificadas através de teoremas obtidos a partir de tais modelos. De uma forma ou de outra, em matemática pura, as regras de sinais se justificam a partir da própria matemática. Porém, tais conceitos geralmente escapam dos conteúdos normalmente lecionados em escolas dos ensinos fundamental e médio em nosso país. Por isso, vejo as seguintes alternativas para justificar as regras de sinais em salas de aula brasileiras: (i) são meras convenções matemáticas que certamente podem ser alteradas mas que, neste caso, deixam de ser usuais e (ii) são convenções matemáticas que encontram aplicações físicas importantes, como no caso do estudo de interações entre cargas elétricas. 

Atração entre cargas elétricas, no estudo de física. Costuma-se afirmar que cargas elétricas iguais se repelem e cargas elétricas diferentes se atraem. Já vi a seguinte analogia, apresentada até mesmo em livros didáticos: meninos são atraídos por meninas; meninas são atraídas por meninos; meninos e meninos são repelidos entre si; meninas e meninas são repelidas entre si. Nesta analogia, meninos correspondem a uma das cargas elétricas e meninas correspondem à outra. Alguns dos problemas desta comparação são os seguintes:

1) Não existe correspondência trivial entre as aparentes interações envolvendo cargas elétricas e relações humanas.

2) Afirmar, por exemplo, que meninas e meninas se repelem, retrata um preconceito social e até mesmo sexual.

3) Justificar fenômenos físicos a partir de relações humanas pode provocar a sensação de que física é uma disciplina que não pode ser levada a sério.

Diante dessa analogia irresponsável, o aluno pode até mesmo se sentir desestimulado a fazer a seguinte pergunta: se cargas iguais se repelem, por que o núcleo de um átomo de sódio não explode? Afinal, o núcleo deste átomo é formado por prótons e nêutrons (nêutrons são partículas sem carga elétrica). E como todos os prótons têm a mesma carga positiva, eles deveriam se afastar. Desta forma, jamais deveriam existir átomos, a não ser o de hidrogênio (formado por um único próton e um único elétron). Espero que o leitor saiba responder a esta questão. Tal resposta faz parte da cultura científica mundial, independentemente da sua área de formação. 

Analogias irresponsáveis, cada vez mais promovidas em salas de aula brasileiras, apenas contribuem para uma visão dogmática sobre ciência. E visões dogmáticas desestimulam a curiosidade, incluindo a curiosidade científica. 

Ou seja, esta discussão sobre o papel de analogias na educação remete naturalmente ao problema da curiosidade, a qual discuto a seguir em âmbito predominantemente pessoal.

Em 1981, uma colega minha da escola perguntou se eu tinha alguma ideia para um trabalho a ser apresentado na Feira Municipal de Ciências, em Curitiba, Paraná. Naquela época eu cursava o segundo ano do ensino médio. 

A Feira Municipal de Ciências era um evento anual realizado no Parque Barigui, envolvendo escolas da rede pública de ensino. Há muitos anos este evento foi extinto. 

Respondi à minha colega que eu tinha uma ideia, a qual foi discutida em postagem já publicada neste blog. Formamos, então, uma equipe com cinco estudantes (Claudia, Fabio, Maria Ângela, Cândida e eu) sem o apoio ou a orientação de qualquer professor. Fabio Filipini conseguiu compreender muito bem o projeto. Claudia, Maria Ângela e Cândida, nem tanto. Esta foi uma situação surpreendentemente contraditória. Afinal, não se tratava de atividade obrigatória. Portanto, era de se esperar um certo interesse natural no projeto. No entanto, não foi o que aconteceu. Apesar disso, o trabalho conquistou um prêmio de menção honrosa. Um dos juízes foi José Nogueira Fontes, um conhecido professor de matemática de Brasília. Ou seja, Jonofon Guei Sérates (anagrama que ele costumava usar na época) foi generoso com a nossa equipe.

Por que não houve interesse em um projeto assumido voluntariamente? Só posso conjecturar. E minha conjectura é simplesmente falta de capacidade para lidar com a própria curiosidade. Havia curiosidade sobre a Feira Municipal de Ciências. Mas não havia a curiosidade pela ciência.

Em 1982 eu era aluno do terceiro ano do ensino médio da mesma escola pública, em um curso profissionalizante e, portanto, sem a proposta de preparar alunos para a realização de vestibular. Apesar disso, entre cerca de trinta alunos, pelo menos meia dúzia deles foi aprovada em vestibular da UFPR, incluindo um rapaz que ingressou no concorrido curso de medicina. 

Hoje, na maioria das escolas públicas os alunos raramente admitem sequer a possibilidade de prestar qualquer vestibular. E na maioria das escolas de nosso país não existe espaço para discussões, para exposições de trabalhos em eventos científicos ou para estimular a curiosidade de crianças e adolescentes.

Aqueles que ambicionam a realização de um curso superior raramente são motivados por curiosidade científica. Ciência e tecnologia têm se tornado opções profissionais como quaisquer outras. Ser cientista, hoje em dia, parece uma opção tão boa quanto a de representante de vendas de bolachas.

Lembro de minhas brincadeiras de infância. Com crianças do bairro jogávamos futebol, andávamos de bicicleta e fazíamos acampamentos. Mas também promovíamos concursos que visavam determinar quem era capaz de escrever o melhor livro de conhecimentos gerais, quem era capaz de esboçar a melhor planta para uma estação orbital, e quem era capaz de fazer as melhores maquetes de submarinos e tanques de guerra. Chegamos a promover concursos até mesmo de culinária.

Fabricávamos nossa própria pólvora e construíamos nossas próprias bombas e foguetes. Criávamos nossos próprios aparelhos eletrônicos, incluindo um rádio que funcionava sem pilhas e uma versão rústica de theremin. Criamos nosso próprio sistema monetário (incluindo a impressão de cédulas), para não dependermos de mesada de nossos pais e podermos comprar brinquedos. Foi quando descobrimos naturalmente um dos mecanismos responsáveis pelo processo inflacionário: produção desenfreada de cédulas. Cheguei a construir um telescópio de projeção, para mapear e acompanhar manchas solares. 

Só não tentamos produzir nitroglicerina porque ficamos com medo dos resultados. 

Mesmo vivendo em uma Curitiba que contava com apenas trezentos mil habitantes e morando em um bairro dominado por valetas a céu aberto e cachorros que adoravam atacar pessoas, vivíamos diariamente empolgados e curiosos pelo conhecimento científico. 

Trocávamos cartas com a NASA e recebíamos vasto material da corrida espacial norte-americana, incluindo belíssimas fotos de fenômenos celestes, esquemas do Saturno V e livretos fascinantemente informativos.

No entanto, entre as crianças do bairro que participavam dessas aventuras intelectuais, raramente questionávamos os professores da escola. Algo instintivo em nós dizia que isso não valia a pena. Já naquela época era possível perceber que a escola não era lugar para questionar, criticar, conhecer. Apesar disso, eventualmente contávamos com bons professores, algo cada vez mais raro nos dias de hoje. Eventualmente até mesmo na escola aprendíamos coisas novas e relevantes que geravam discussões no grupo. 

Por que conto a respeito disso tudo? Porque a grande chave para o conhecimento é a curiosidade. Em um episódio da série de televisão Jornada nas Estrelas aprendemos a produzir pólvora. Fizemos nossas próprias analogias. Morávamos a dois quilômetros de um trilho de trem. Sabíamos que trens carregavam carvão mineral. Montados em nossas bicicletas, buscávamos pedaços de carvão que caíam dos trens nas curvas. Os outros ingredientes eram comprados em farmácias. Experimentávamos a partir de intuições. E analogias nada mais são do que intuições. A pólvora era de péssima qualidade. Mas funcionava e produzia um calor muito intenso. Comprávamos kits de eletrônica e montávamos nossos rádios receptores, conforme esquemas dos próprios kits. Fazíamos analogias e testávamos outros circuitos. Dessa forma saiu um protótipo de theremin.

Analogias impensadas, irresponsáveis, são apenas mais um ingrediente para matar curiosidade. Analogias irresponsáveis são aquelas que carecem de senso crítico. Não há problema em mencionar essas analogias desprovidas de análise crítica em sala de aula, como formas de brincadeira. Esse tipo de situação pode ter valor didático importante. Afinal, não é fácil focar sobre ciência durante muito tempo. Brincadeiras também fazem parte do processo de aprendizado. E, analogamente, aprendizado também pode ser uma forma de brincadeira, como foi ilustrado acima, com exemplos de minha infância e adolescência. 

No entanto, encerrar uma explicação sobre regras de sinais em matemática com uma mera analogia envolvendo as noções de amizade e inimizade simplesmente não faz sentido. É como afirmar que o fogo sobe porque é atraído pelas estrelas. Ciência tem evidentemente seu apelo poético. Mas ciência e poesia não são a mesma coisa.