sábado, 28 de janeiro de 2012

Nova Pausa

A partir de hoje haverá nova pausa nas postagens deste blog. O motivo é que preciso de tempo para escrever novos textos. Por enquanto agradeço a colaboração e interesse de todos os leitores.


Em novembro do ano passado passei a publicar com frequência semanal e depois comecei a veicular textos a cada três dias, em média. As visualizações passaram de oito por dia para cerca de oito por hora. 


Ainda está muito longe de atingir as minhas metas, mas já é um começo. 


Continuarei moderando e respondendo aos comentários e espero contar com o mesmo apoio no futuro.


Novamente, meu muito obrigado a todos.

Matemática e História: um exemplo de interdisciplinaridade no ensino médio

Apresentamos aqui um exemplo muito simples de atividade interdisciplinar que pode ser desenvolvida em uma turma de pré-universitários com conhecimentos muito básicos de geometria plana, geometria espacial e trigonometria. Originalmente desenvolvi este exemplo em 1981, quando eu era aluno do segundo ano do ensino médio. Espero que aproveitem.


Considere um polígono regular de n lados medindo k (cada um), área T e apótema a. Vale lembrar que o apótema de um polígono regular é o raio da circunferência inscrita ao polígono. 


Considere agora uma pirâmide regular reta com n faces laterais, área total T (área da base B somada à área lateral L) e apótema a, lembrando que o apótema de uma pirâmide regular reta é a altura de cada face lateral que, por sua vez, é um triângulo isósceles. 


É possível provar que, se b denota a aresta da base da pirâmide, então b/k = B/L = L/T = número de ouro.


A imagem abaixo ilustra o enunciado para o caso particular em que n = 5. Portanto, o polígono ilustrado é um pentágono regular. As faces laterais da pirâmide estão representadas em verde. Toda a parte branca da imagem tem uma área total igual à área da base da pirâmide.
Para quem não lembra, o número de ouro pode ser definido como o número real positivo cujo inverso é igual a ele mesmo somado de um. Tal enunciado admite duas soluções, a saber, uma positiva e uma negativa. Estamos interessados apenas na solução positiva, que é igual à metade da diferença entre a raiz quadrada de cinco e um. Isso corresponde a aproximadamente 0,618. É um número irracional, porém não transcendente.


Na internet é muito fácil encontrar informações sobre o número de ouro, o qual é empregado para definir proporções esteticamente atraentes em desenho, arquitetura e até mesmo na música.


Todas as pirâmides definidas como no enunciado acima têm as faces laterais com a mesma inclinação em relação à base. Essa inclinação é de aproximadamente 51 graus, 49 minutos e 38,25 segundos de arco. Este é o arco cujo co-seno é o número de ouro.


No caso especial em que n = 4, temos uma pirâmide com as mesmas proporções da Grande Pirâmide do Egito, a de Quéops. Na verdade essa coincidência de proporções é apenas aproximada (com uma margem de erro de aproximadamente um minuto de arco), pois a Pirâmide de Quéops foi severamente danificada ao longo dos milênios de sua existência. Originalmente ela contava com uma guarnição que a revestia, a qual foi destruída pelo próprio povo egípcio para a construção de casas. 


Do ponto de vista matemático, este problema é bastante rico, apesar de exigir poucos conhecimentos. A partir de área de triângulo, pode-se deduzir a área de qualquer polígono regular. Além disso, o aluno deve conhecer proporcionalidade entre lados de triângulos semelhantes e noções básicas de trigonometria. Saber resolver equações de segundo grau também é fundamental para lidar com o problema aqui proposto.


Do ponto de vista histórico, fica um pouco mais fácil compreender e apreciar os avançados conhecimentos matemáticos, arquitetônicos e de engenharia da antiga civilização egípcia, a qual também cultivava astronomia e medicina. E outros exemplos históricos podem ser apresentados sobre o uso de proporções áureas entre povos antigos. 


Se o leitor quiser, pode estender o resultado acima para círculos e cones. Ou seja, dado um círculo de raio r e área S, é possível definir um cone reto com área total S, raio da base s e geratriz r, de modo que necessariamente s/r = B/L = L/S = número de ouro, sendo B e L as áreas lateral e da base do cone, respectivamente.


Ou seja, levando em conta que a mesma estética áurea é aplicável a pirâmides retas regulares quaisquer (e até mesmo a cones), fica a pergunta: por que os egípcios optaram apenas por bases quadradas?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Motivações para você e para mim

Há uma página nova neste blog, chamada Você sabia que.... O objetivo desta página é provocar e estimular o leitor. Algumas perguntas lá feitas já contam com respostas veiculadas aqui mesmo. Outras devem motivar publicações futuras. 


Por outro lado, eu também insisto em algo em troca. Peço vídeos que mostrem professores de matemática lecionando conteúdos errados, agredindo alunos, fumando maconha e, enfim, escandalizando a educação. Entendo que muitas pessoas se sentem desconfortáveis com essa solicitação. Mas garanto sigilo sobre o nome da pessoa que produziu o vídeo. Eu mesmo assumirei inteiramente a responsabilidade. Além disso, denúncia não é algo bonito apenas em telejornais. Denúncia é responsabilidade social de todos.

Por que é difícil compreender definições?

Matemáticos conseguem ler textos técnicos de medicina, direito, engenharias, sociologia, economia e outras áreas do saber acadêmico com muito menos dificuldade do que um médico, um advogado, um engenheiro, um sociólogo ou um economista consegue ler um texto técnico de matemática. Um dos motivos disso é que textos de matemática exigem muito mais para a sua compreensão do que um mero dicionário técnico possa ajudar. As linguagens matemáticas não encontram tradução trivial para linguagens naturais como português e inglês. No caso das formulações conjuntistas para teorias matemáticas (que, por sinal, são as mais usuais), é seguro dizer que nada do que se diz em tais teorias tem significado correspondente no mundo real, aquele dos fenômenos mensuráveis e perceptíveis direta ou indiretamente pelos nossos sentidos físicos. 


Isso por si só já justifica a dificuldade humana para compreender definições em matemática. Mas nesta postagem quero me aprofundar em um aspecto sobre definições matemáticas bem mais singelo e perturbador. O fato é que matemáticos em geral não têm certeza sobre muito do que discutem em suas atividades profissionais, sejam de ensino, aplicações ou pesquisa. E essa incerteza não é necessariamente fruto de incompetência; pode ser consequência de características inerentemente matemáticas.


As linguagens criadas pelo ser humano podem ser divididas em duas categorias, no que se refere a propósitos e natureza: formais e naturais. As linguagens naturais são aquelas que todos usamos em nossas interações sociais do dia-a-dia, e que carecem de uma definição precisa, como português, inglês, alemão, italiano, entre outras. Todas as linguagens naturais contam com três dimensões fundamentais: sintática, semântica e pragmática. A dimensão sintática se refere às regras gramaticais; a semântica se ocupa do significado de termos empregados nas linguagens naturais (tudo o que se diz deve ter um significado); e a dimensão pragmática se refere ao estudo da linguagem em uso (entre indivíduos comunicantes). 


Já as linguagens formais são concebidas e empregadas em lógica e matemática, e contam com definições rigorosas para vocabulário e sintática. Elas não têm necessariamente compromisso com qualquer contraparte semântica. E mesmo quando há alguma semântica, esta é dotada de uma natureza radicalmente diferente da semântica das linguagens naturais. Em muitas formulações da geometria euclidiana, por exemplo, conceitos como ponto, reta e plano não contam com significado. Um outro exemplo bem conhecido de linguagem formal é a do cálculo proposicional clássico, no qual o conectivo lógico de negação é simplesmente um operador que se aplica a fórmulas, sem obrigatoriamente estar associado a qualquer interpretação intuitiva de negação em linguagens naturais. 


Tanto em linguagens formais como naturais (mesmo que sejam enriquecidas com termos técnicos usualmente encontrados em linguagens formais), definições têm a função de introduzir novas notações linguísticas ou metalinguísticas, de modo que sejam supérfluas, dispensáveis ou elimináveis. 


Na prática definições existem para facilitar o uso de uma dada linguagem, seja formal ou natural. Por exemplo, costuma-se definir metro como 1.650.763,73 vezes o comprimento de onda da radiação do isótopo criptônio 86 no vácuo. Desse modo, em vez de se dizer que uma criança tem uma altura correspondente a 1.997.424,11 vezes o comprimento de onda da radiação do isótopo criptônio 86 no vácuo, simplesmente afirma-se que ela tem um metro e vinte e um centímetros de altura ou, mais abreviadamente, 1,21 m.


É razoável considerar que muitas definições em matemática estabelecem algum tipo de relação de equivalência entre um definiendum (o termo a ser definido) e um definiens (fórmula que efetivamente define o definiendum), de forma que duas condições sejam atendidas: 


(i) Eliminabilidade: toda definição é eliminável, ou seja, a qualquer momento o definiendum pode ser substituído pelo definiens; 


(ii) Não-criatividade: toda definição deve ser não-criativa; em outras palavras, novos teoremas não podem ser obtidos por consequência da definição, de forma que esses mesmos resultados sejam impossíveis de serem demonstrados sem a definição em questão. 


Em geral, testar o critério de eliminabilidade é algo bem mais fácil de ser realizado do que o teste da condição de não-criatividade. E é justamente o critério de não-criatividade que se mostra responsável por uma significativa insegurança entre matemáticos, apesar da maioria deles não pensar muito a respeito disso.


O problema radica na condição que envolve o conceito de demonstrabilidade, ou seja, o critério de não-criatividade.


Uma teoria formal axiomática T é decidível se existe procedimento efetivo para decidir se uma fórmula qualquer de T é teorema. O cálculo proposicional clássico L (como apresentado, por exemplo, em Introduction to Mathematical Logic, de E. Mendelson) é um exemplo de teoria decidível. Sabe-se que todo teorema de L é uma tautologia e que toda tautologia de L é um teorema. Ou seja, basta fazer a tabela-verdade de uma fórmula de L e verificar se se trata de uma tautologia. Se for, é teorema. Isso significa que podemos programar uma máquina de Turing (um computador digital) para verificar se fórmulas de L são teoremas. Por isso o uso da expressão "procedimento efetivo".


No entanto, a matemática de hoje demanda linguagens formais bem mais ricas do que aquela usada para formular o cálculo proposicional clássico L. E quando essas linguagens são empregadas, surgem inúmeras teorias matemáticas indecidíveis. Na prática, em geral não há procedimentos efetivos para decidir se uma dada fórmula de uma teoria formal axiomática qualquer é teorema. Como também não existem procedimentos efetivos para a realização de demonstrações, essa desconfortante característica da matemática, falando em termos práticos, garante o ganha-pão dos matemáticos. Afinal, máquinas são incapazes de fazer a demonstração de um teorema qualquer. E essa incapacidade não se deve ao desconhecimento da existência de algoritmos ainda não descobertos. Sabe-se que tais algoritmos simplesmente não podem existir, pelo menos do ponto de vista do que hoje se entende por algoritmo.


Se considerarmos uma teoria formal axiomática como Zermelo-Fraenkel (ZF, a mais popular teoria axiomática de conjuntos), os matemáticos sequer sabem se ela é consistente. Ou seja, ninguém sabe se existe alguma fórmula G em ZF tal que G é teorema e a negação de G também é teorema. E o aspecto perturbador disso é que ZF é usada para fundamentar vastas porções da matemática tradicional. 


Ou seja, se um pesquisador propõe uma alegada definição que pode ser traduzida para a linguagem de ZF, como saber se a fórmula proposta de fato é uma definição? Se ZF for inconsistente, é claro que a alegada definição é não-criativa, pois todas as fórmulas de ZF seriam teoremas e nada de novo poderia surgir na teoria. Mas e se ZF for consistente? Neste caso, qualquer fórmula apresentada como um suposta definição seria evidentemente criativa se ela conduzisse, por exemplo, a alguma contradição. O matemático poderia então provar uma proposição que garantisse que ZF com a alegada definição é consistente se, e somente se, ZF for consistente. 


Mas isso ainda não resolveria o problema. Afinal, uma fórmula criativa em ZF não precisa necessariamente cair em contradição com os axiomas de ZF. Para se ter certeza de que a fórmula apresentada é uma definição, seria necessário provar que todos os teoremas da nova teoria (ZF com a alegada definição) são também teoremas em ZF, bem como a recíproca dessa afirmação. E dada a produção matemática dos dias de hoje, com uma miríade de novas definições surgindo todos os dias, quantos que efetivamente se preocupam com esse detalhe?


Basta vermos como é comum autores escreverem que, entre os números reais, a/b = c se, e somente se, b for diferente de 0 (zero) e a = bc. Essa suposta definição de divisão entre números reais sequer satisfaz o critério de eliminabilidade! Isso por que, no caso de b = 0, não há como substituir o definiendum a/b por qualquer definiens. Afinal, não há definiens algum para o caso em que b = 0! 


Na maioria esmagadora de livros de cálculo diferencial e integral também se comete erro semelhante, quando são apresentadas supostas definições para limite, derivada e integral de Riemann. Isso porque nem sempre existe o limite, a derivada ou a integral de uma função. Portanto, nesses casos, fica claro que o critério de eliminabilidade não é satisfeito. Portanto, a maioria dos livros de cálculo diferencial e integral não define limite, nem derivada e nem integral. E se tantos autores conseguem ser tão descuidados com o critério de eliminabilidade, o que dizer então da condição de não-criatividade?


Ou seja, quando um matemático supostamente define um conceito novo em uma dada teoria, qual é a garantia que ele tem de que a fórmula apresentada é de fato uma definição? Mais especificamente, como saber se o critério de não-criatividade está sendo atendido? 


Portanto, se você, leitor, não entende uma definição, a pergunta que deve fazer é: por que? A resposta reside em dificuldade intelectual sua ou na frágil fundamentação da matemática apresentada nos livros?

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Ética!


Uma das mais graves falhas de professores de matemática em nosso país é a incapacidade de fazer perguntas inteligentes aos seus alunos. E essa constatação cabe à maioria dos docentes, desde a pré-escola até a pós-graduação. Cito exemplos.

Uma pergunta típica que professores de matemática dirigem a seus alunos é a seguinte: o que é uma função? A maioria dos supostos mestres que levanta essa questão simplesmente não tem ideia do que está perguntando, principalmente nos casos em que se espera de fato por uma resposta.

Nas teorias intuitivas usuais de conjuntos, uma função f é um conjunto de pares ordenados (a, b) tais que, se (a, b) e (a, c) pertencem a f, então b = c

O domínio de f é o conjunto de todos os a tais que (a, b) pertence a f

Um dos problemas deste conceito reside na noção de conjunto, a qual usualmente não se qualifica. Costuma-se dizer, neste contexto, que um conjunto é uma coleção de objetos distintos entre si. Mas esta, evidentemente, não se trata de uma definição formal ou sequer rigorosa de conjunto. Afinal, o que é uma coleção? Além disso, o que são objetos distintos entre si? E, pior, o que são objetos? 

Matemática não se faz com discursos não qualificados.

Na formulação axiomática de Zermelo-Fraenkel (ZF, a mais popular teoria axiomática de conjuntos) a noção de conjunto sequer faz parte dos conceitos primitivos da teoria. Além disso, conjuntos não podem ser definidos em ZF. No entanto, é possível definir função como um conjunto f de pares ordenados (a, b) tais que, se (a, b) e (a, c) pertencem a f, então b = c. Fazer alunos compreenderem isso não é fácil. Demanda estudos muito aprofundados sobre as sutilezas da lógica matemática.

Em certas formulações muito usuais das teorias abstratas de categorias, funções não são conjuntos. E uma das características mais notáveis dessas formulações é o fato de que o domínio de uma função é também uma função. Por conta disso, geralmente essas funções são chamadas de morfismos.

Na teoria de conjuntos de von Neumann, conjuntos são efetivamente definidos como casos particulares de funções. E, nesta formulação, funções não têm domínio.

Ou seja, a pergunta "o que é uma função?" simplesmente carece de sentido. Responder a essa questão é assinar um pacto com a incipiência intelectual. Existem, na literatura especializada, muitas acepções radicalmente distintas entre si para o conceito de função. Apresentei apenas algumas delas. Existem, virtualmente, infinitas acepções. Isso leva, portanto, a uma pergunta natural: como um professor responsável deve conceituar função?

Se o docente lecionar para o ensino médio ou a graduação, a melhor solução que vejo para iniciantes é a seguinte: uma função f é um conjunto de pares ordenados (a, b) tais que, se (a, b) e (a, c) pertencem a f, então b = c; no entanto, esta é apenas uma noção extremamente usual, entre muitas outras. 

É fundamental que os verdadeiros mestres deixem claro que artigos definidos raramente se aplicam à matemática. Não existe a teoria de conjuntos. Não existe o conceito de função. Existem infinitas acepções para conceitos como os de conjunto e função. Para fins pragmáticos, em salas de aula de ensino médio ou de calouros de graduação, geralmente se trabalha apenas com uma acepção usual e meramente intuitiva.

Ou seja, uma pergunta que faria sentido seria a seguinte: no contexto da teoria intuitiva usual de conjuntos, o que é uma função?

Mesmo assim existem muitas tolices sobre funções, escritas em livros e apostilas e vomitadas em sala de aula por profissionais incompetentes do ensino. Uma delas é a velha história de que uma função se define a partir de um domínio (conjunto), um contradomínio (também conjunto) e uma regra que associa cada elemento do domínio a um único elemento do contradomínio. 

Esta lamentável e corrompida visão está em completo desacordo com todas as noções usuais sobre funções em matemática. Há, pelo menos, dois problemas graves em tal noção. 

Um deles é o conceito de regra. 

O que é uma regra? É um procedimento efetivo que pode ser descrito através de um algoritmo? Se for, então estamos automaticamente excluindo uma vasta gama de funções ditas não computáveis. E se a tal da regra não puder ser descrita por um algoritmo, então não deveria ser chamada de regra! Além disso, como conceituar regra no escopo das teorias usuais de conjuntos? É possível definir o conceito de regra a partir das noções conjuntistas usuais de pertinência e igualdade? 

O segundo problema é igualmente grave. Nos tratamentos conjuntistas usuais, o domínio de uma função se define a partir da própria função, e não o contrário! Quase sempre vejo a infelicidade de se definir função a partir de um domínio e um contradomínio. Por que autores e professores se resumiram a papagaios que apenas repetem aquilo que foi dito por outros papagaios? Onde está o estudo das fontes originais? Onde está a aplicação da transposição de conhecimentos?

Outra aberração comum em livros de matemática se refere a exercícios com enunciados do seguinte tipo: Dada a função (por exemplo) f(x) = 1/x, determine o domínio de f

Ora, f(x) = 1/x não é uma função! É apenas uma igualdade. Uma função f é um conjunto de pares ordenados, nas formulações usuais. A partir deste conjunto é possível definir o domínio de f. Uma igualdade entre dois termos não é um conjunto. Não é por acaso que alunos confundem função com equação! Responder a questões como esta é um exercício compreensível apenas entre indivíduos com tendências à fantasia ou pessoas de extraordinária ingenuidade e irresponsabilidade intelectual.

O estudo bem sucedido de matemática não é aquele que conclui com respostas, mas aquele que abre universos de questionamentos qualificados. Um professor de matemática que apresenta qualquer tema de sala de aula como assunto fechado, conclusivo, é necessariamente um tolo. Praticamente todos os livros e apostilas de matemática cometem o erro do uso de artigo definido em conceitos e definições. E um professor cujo conhecimento está confinado a esses textos é um profissional medíocre, que não pode e não deve ser levado a sério.

Pois bem. O que isso tudo tem a ver com o título da postagem?

Alguns leitores deste blog têm insistido em questões sobre ética, principalmente em função da postagem sobre a APUFPR (que é recordista de visualizações e hoje citada ou reproduzida em vários blogs do país). Criaturas precipitadas e desinformadas me acusaram de não ser ético naquele texto. Como raramente percebo pessoas que demonstrem minimamente saber o que é ética (recomendo que referências sérias sobre o tema sejam consultadas e que não se confie apenas na infeliz sabedoria popular do senso comum), aqui vai um conselho útil.

Precisamos criar um código de ética para professores no Brasil!

Isso poderia viabilizar punições reais aos docentes que meramente copiam conteúdos de livros no quadro-negro. Eu adoraria ver professores com suas licenças cassadas por incompetência ou sistemáticos atos de má fé que frequentemente testemunho. Eu adoraria ver o Brasil se livrando da alcatéia de professores insanos, arrogantes e ignorantes que influenciam nossos jovens, tornando-os verdadeiros zumbis. 

Por que médicos podem ter suas licenças cassadas e professores não? O que há de tão especial entre os professores? Eles são incapazes de errar? Ou será que seus erros são menos significativos do que imperícia médica? O câncer social de uma educação falida é menos prejudicial para a sociedade do que um médico que esquece equipamento cirúrgico dentro do paciente? Se for, eu gostaria de saber o por quê. 

Um código de ética poderia finalmente alavancar a carreira docente. A tão sonhada valorização desta atividade profissional poderia finalmente se tornar uma realidade. Mas, honestamente, duvido que isso aconteça, diante do atual momento que vivemos. Não vejo articulação inteligente e séria entre profissionais do ensino de nosso país. O que vejo são pessoas que jamais discutem com propriedade sobre ética (apesar de muitos insistirem na verborréia pseudo-intelectual sustentada em frases prontas creditadas ao maldito senso comum) e que continuam a mendigar por salários melhores sem realmente merecerem.

Ética e moral não são sinônimos, professores! Condutas de moral contam frequentemente com dilemas. Já os códigos de ética devem obedecer a princípios da lógica deôntica e, pelo menos em princípio, podem ser protegidos contra a existência de dilemas. 

Condutas sustentadas em moral são confusas, frágeis, contraditórias, excessivamente flexíveis e de apelo fortemente individual. 

Códigos de ética são desenvolvidos racionalmente e representam e protegem categorias profissionais inteiras. 

É claro que há extensas discussões na literatura especializada sobre os conflitos entre ética e moral. Mas essas discussões existem justamente porque ética é uma coisa e moral é outra. Parem de confundir os termos, professores!

Para finalizar, aproveito para anunciar que continuarei a postar a respeito de graves erros em textos de materiais didáticos específicos e amplamente usados no país. Esse projeto inclui apostilas de cursos preparatórios para vestibular. E pretendo também gravar aulas de professores em video e exibi-las a partir deste blog, acompanhando as imagens com críticas e sugestões. 

Talvez isso finalmente motive a concepção de um código de ética para a prática da docência. Afinal, eu adoraria que um código de ética para professores me impedisse de expor publicamente a mediocridade de meus colegas de profissão. Isso porque, havendo um código de ética e um consequente Conselho Nacional de Professores, finalmente existiria um fórum adequado para julgar e eliminar de uma vez por todas a massa incompetente de educadores que estão matando a esperança de um futuro melhor para a nação.

Valorização da docência não se conquista com greves e discursos primários, como aqueles defendidos pela lamentável APUFPR e outros sindicatos igualmente questionáveis. Valorização da prática docente se conquista com ações inteligentes, bem fundamentadas e estratégicas.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Histórias que posso contar

nuts within nuts
Os diálogos a seguir são reais. Imagino que, na maioria dos casos, o leitor não encontrará dificuldade para identificar quem é aluno e quem é professor.


Dia de Avaliação


- Posso responder a lápis?
- Prova é documento. Você preenche documento com lápis?
- Posso responder a lápis?
- Pode responder com o seu próprio sangue, se quiser. Apenas escreva.
- Posso responder a lápis?
- Pode.
- Posso responder a lápis?
- Atenção, todos! Por favor, não perguntem mais se pode responder a lápis. Escrevam na prova como bem entenderem.


Após dez minutos de silêncio...


- Posso responder a lápis?


...


Três alunas em três ocasiões distintas


- O senhor não fica com pena de reprovar uma aluna como eu?
- Fico com pena de colocar no mercado de trabalho uma profissional incompetente.
- Você não fica com pena de reprovar uma aluna como eu?
- Não.
- Você não fica com pena de reprovar uma aluna como eu?
- Por favor, levante-se. Essa posição é embaraçosa pra você.


...


Uma aluna em uma ocasião ímpar


- Eu faço qualquer coisa pra passar nessa disciplina.
- Qualquer coisa?
- O que o senhor quiser, profe.
- Então estude!


...


Um aluno em uma ocasião como tantas outras


- Como que eu deveria responder essa questão?
- De forma clara e devidamente justificada.
- Tá. Mas como que o senhor gostaria que eu respondesse?
- Não importa como eu gostaria que você respondesse. Suas respostas e justificativas devem ser convincentes para qualquer bom profissional da área. Basta que você conheça o assunto e saiba como justificar suas respostas.
- Tá. Mas como que o senhor responderia essa questão?


...


Após citar Bertrand Russell em sala de aula


- O senhor acredita em Deus?
- Minhas opiniões sobre Deus são irrelevantes em sala de aula. Estamos aqui para estudar matemática. Só isso.
- Tá. Mas você acredita em Deus?
- Eu acabei de explicar que minha opinião sobre Deus é irrelevante.
- Não pra mim.


...


Um aluno de fé inabalável


- Mas no livro está escrito que eu devo achar o domínio da função.
- O autor do livro é matematicamente analfabeto. f(x) = 1/x não é uma função. É apenas uma igualdade.
- Mas o professor Fulano colocou a mesma questão na prova.
- Se for verdade, então o professor Fulano também é analfabeto. Ele simplesmente não sabe o que diz.
O aluno ficou me olhando com a expressão de um desamparado náufrago. Continuei:
- Professores e autores de livros mais erram do que acertam. Praticamente todos os livros didáticos de matemática em nosso país têm erros graves, principalmente em conceitos e definições.
- Mas se não posso confiar em professores e nem em autores, em quem devo acreditar?
- Que tal exercitar o seu próprio senso crítico? Ciência se faz com crítica, com independência de pensamento, e não com crença cega em supostas autoridades, como professores e autores.
O olhar do aluno crente continuou à deriva.


...


Perguntas minhas que foram respondidas com o desconfortante e prolongado silêncio de turmas inteiras


- O que vocês leem?
- Quais são os cientistas brasileiros mais conhecidos?
- Quais são os cientistas mais conhecidos? Pode ser de qualquer país.
- Quem é o autor do mural que está na entrada do Prédio da Administração do Centro Politécnico (da UFPR)? (Observação: Trata-se de um mural do consagrado Poty Lazzarotto.)
- O que há de errado com aquele mural?
- Qual é o tema daquele mural?
- Aqueles que cursaram álgebra linear, e que foram aprovados, me respondam, por favor: o que é álgebra linear?
- Aqueles que cursaram cálculo diferencial e integral, e que foram aprovados, me respondam, por favor: o que é cálculo diferencial e integral?
- Por que vocês fazem este curso?


...


Respostas padronizadas de robôs alunos (principalmente em conversas privadas)


- Porque sim.
- O senhor entendeu o que eu quis dizer.
- Você entendeu o que eu quis dizer.
- Mas foi isso o que eu disse!
- Mas foi isso o que eu quis dizer!
- Mas era isso o que eu queria dizer!
- Assim não vale!
- Isso é pegadinha.
- Eu sabia a resposta, mas não quis dizer.
- Eu sei a resposta, mas não sei como me expressar. (Esta última fala é sempre acompanhada de exagerados gestos com as mãos.)
- Eu sabia isso, mas na hora me deu um branco.
- Mas eu me esforcei tanto.
- Mas... tipo eu... eu... tipo... me esforcei tipo... tanto.
- Mas eu passei o final de semana inteiro estudando.


...


Quando aprendi que meus alunos não sabem onde estão


Perguntei:


- Qual é o nome do Centro Politécnico da Universidade Federal do Paraná?


Ouvi:


- Centro Politécnico.
- Setor de Ciências Exatas.
- Universidade Federal do Paraná.
- Jardim das Américas.
- Não tem nome.


...


Quando descobri que meus alunos não são estudantes


Perguntei:


- Qual foi o único brasileiro a ganhar o Prêmio Nobel?


Normalmente a resposta é um sorriso amarelo que implicitamente afirma "Por favor, não me machuque!" Mas, daqueles que verbalizaram algo, ouvi o seguinte:


- César Lattes.
- César Lattes.
- César Lattes.
- Não lembro.
- Uma penca.
- Não tenho ideia.
- Nenhum brasileiro ganhou o Prêmio Nobel.


Respondi:


- Peter Medawar. Carioca e Nobel de Medicina.


Ouvi:


- Mas este nome não é brasileiro.


Aparentemente os jovens aculturados e vergonhosos descendentes de italianos, alemães, japoneses, poloneses, portugueses e ingleses, entre outros, apenas reconhecem o brasileiríssimo nome Juruna.


...


Algumas falas são de alunos e outras são de professores. Consegue dizer quem é quem?


- Qual é o valor de pi no vácuo?
- Não. Não é pós-graduação. É mestrado.
- Pós-graduação lacto senso.
- Mas pra fazer doutorado não tem que ter primeiro mestrado?
- Titulação mais alta: pós-doutorado.
- Journal of Mathematical Physics? Então não é periódico sério. É só um jornal.
- Força é massa vezes aceleração. E massa é força dividida por aceleração.
- Ponto não tem dimensão.
- A reta dos reais tem uma dimensão.
- Vetor é um ente que tem módulo, direção e sentido.
- Vetor é um ente que tem módulo, direção, sentido e unidade.
- Vetor é um treco que tem módulo, direção, sentido e unidade.
- O professor sabe a matéria, mas não sabe explicar.
- Como é que é o nome do livro do Sei-Lá-Kowiski?
- Hoje em dia não se faz nada de novo em teoria de conjuntos.
- Integral de Rímel.
- Disciplina: Cauculo.


(Estas duas últimas estavam escritas em provas.)


- O senhor poderia evitar provas nas sextas-feiras? Minha religião não permite que eu venha nas sextas.
- Assisti Alice no País das Maravilhas. O filme é bem fiel ao desenho animado.


...


Confusões praticamente unânimes


Alguns dos muitos termos frequentemente usados por docentes e discentes, sem que eles sequer saibam o que significam:


- Ética.
- Definição.
- Teorema.
- Postulado.
- Axioma.
- Paradigma.
- Epistemologia.
- Método científico.
- Verdade.
- Avaliação.
- Óbvio.
- Preconceito.
- Trabalho.


...


Em um corredor da universidade, já voltando para casa


Ouvi:


- Se você critica tanto o Brasil, por que ainda trabalha por aqui?


Respondi:


- Ótima pergunta.
........................................


Leitura complementar sobre experiências profissionais de uma docente.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Motivando Crianças a Estudar

Esta postagem foi anunciada anteriormente com o título provisório "Mecânica Quântica para Crianças". Achei recomendável mudar o título, apesar da motivação ainda ser a mesma.


A palestra mais marcante em minha carreira foi para uma turma de quarta série do primário de uma pequena escola particular de Curitiba. A professora daquela turma queria que eu falasse com seus alunos sobre água. É claro que fiz uma breve apresentação sobre o tema pedido. Mas logo em seguida aproveitei a oportunidade para provocar aquelas criaturas ainda pouco contaminadas pelo desestimulante sistema educacional de nosso país.


O tema da água foi usado como gancho para falar sobre ciência. Pedi às crianças que fizessem uma lista de três artistas brasileiros. Todos rapidamente citaram dezenas de nomes (apesar de demonstrarem conhecer apenas atores e atrizes de telenovelas). Em seguida pedi três nomes de atletas brasileiros. Também citaram, sem dificuldade, nomes amplamente divulgados pela mídia e que se destacam, principalmente, em futebol. Por último solicitei uma lista de três cientistas brasileiros. O silêncio foi absoluto. Mas o mais surpreendente foi a conclusão deles. Disseram-me que não sabiam nomes de cientistas brasileiros simplesmente porque eles não existem. Isso demonstra muito bem alguns dos pontos principais que apresentei na postagem sobre crime e educação


Expliquei àquelas crianças que existem, sim, cientistas brasileiros, sendo que muitos deles são conhecidos no mundo inteiro por trabalhos muito importantes. Mas não quis perder tempo com citações de nomes e obras que aqueles alunos imediatamente esqueceriam. Procurei, então, seguir o caminho da provocação. E eu adoro perturbar a acomodada paz intelectual de pessoas, principalmente crianças.


Falei para aquelas crianças que a estrutura molecular da água é estudada, em parte, em um ramo da ciência conhecida como física quântica. Uma vez que o ramo mais elementar da física quântica é a mecânica quântica não relativística, parecia sensato falar algo sobre essa fabulosa teoria que está próxima de completar cem anos de idade. 


Ninguém sabe ao certo o que é mecânica quântica (MQ). Não existe na literatura especializada qualquer formulação axiomática que seja amplamente aceita como uma definição precisa dessa área do conhecimento. Mas sabe-se que a MQ tem características notáveis que se opõem drasticamente à mecânica clássica e até mesmo aos nossos modos intuitivos de pensar sobre o mundo que nos cerca. 


Pensei com meus botões, sobre o que eu poderia discutir com aquelas crianças. Eu poderia falar sobre o papel de probabilidades em MQ, sobre o fenômeno de não-localidade, sobre a discretização de níveis de energia e de estados de sistemas de partículas, sobre as peculiares propriedades topológicas de spin, sobre o problema da não-individualidade etc. Mas tudo isso parece muito difícil de adaptar para uma linguagem acessível a crianças de nove anos. Então decidi discutir com elas sobre realismo.


Do ponto de vista da filosofia da física, um realista é aquele que considera que o mundo dos fenômenos mensuráveis independe do ato da observação. E a MQ colocou em desconfortante xeque a visão realista que tão bem se aplica à mecânica clássica. O teorema de Bell, por exemplo, e sua confirmação experimental devida a Alain Aspect, foi uma grande façanha intelectual que despertou discussões até hoje muito ativas sobre os aspectos não realistas da MQ. Ou seja, evidências muito convincentes apontam para a visão de que o ato da observação, de fato, afeta sistemas físicos quânticos. 


Lembrando disso e apontando para a mesa da professora, fiz a seguinte pergunta para a turma: "Se todo mundo sair desta sala e se ninguém estiver olhando para a mesa da professora, esta mesma mesa continua existindo?" 


A resposta imediata, animada e unânime foi "Claro!". 


Insisti: "Mas se ninguém estiver olhando para a mesa, como saber se ela continua existindo?" 


A resposta agora foi um novo silêncio. Meninos e meninas pareciam estar engajados em agoniados pensamentos (como se fossem os clássicos personagens felinos de T. S. Eliot). Aos poucos fui explicando para aquelas perturbadas criaturinhas que ninguém sabe ao certo se a mesa continua existindo ou não, se não houver pessoa alguma a observando. Falei para as crianças que algumas teorias dizem que a mesa ainda está lá; mas que outras dizem que não. E as teorias que dizem que a mesa não está necessariamente no mesmo lugar onde foi observada pela última vez, são as mesmas teorias físicas que ajudam a compreender a estrutura molecular da água. Os olhares daqueles alunos foram assombrosos. Ficaram simplesmente desnorteados.


O resultado mais animador dessa palestra veio dois ou três dias depois. Recebi uma carta de uma das meninas da turma. O nome dela é Sarah. Na carta, que ainda guardo, ela agradecia pela palestra e dizia que ainda estava pensando no problema da mesa da professora.


Bingo! Objetivo alcançado. Educação científica não se faz com amontoados de fatos ou teorias que visem estabelecer uma zona de conforto intelectual. Educação científica se faz com o estímulo à busca pelo conhecimento. E a busca ao conhecimento somente pode ser promovida onde houver perguntas relevantes não respondidas.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Nota de Esclarecimento



Alguns leitores deste blog têm demonstrado preocupação quase pessoal com certas críticas aqui expostas. Preciso insistir que a crítica é parte fundamental do desenvolvimento intelectual. O segredo para não ser criticado é ser invisível, ou seja, nada produzir. Por isso aproveito a oportunidade para expor uma crítica séria a um trabalho meu, a qual foi feita com perturbadora propriedade.


Anos atrás desenvolvi um projeto de pesquisa em parceria com Décio Krause, Analice Gebauer Volkov e Aurélio Sartorelli sobre aplicações de teorias de quase-conjuntos em mecânica quântica, assunto sobre o qual pretendo postar detalhes futuramente. Esse projeto rendeu algumas publicações internacionais e várias citações na literatura especializada, comumente animadoras. Mas uma das citações foi feita por Nicholas J. J. Smith, da University of Sydney (Austrália). Neste excelente artigo o autor afirma (nas páginas 10 e 11) que Krause, Sartorelli e eu simplesmente  não fizemos o que foi proposto em nosso programa de pesquisa. Os argumentos são contundentes e certamente nos obrigam a repensar nossa estratégia de ataque ao problema da não-individualidade em mecânica quântica.


Ou seja, críticas acadêmicas não constituem ataques pessoais. Elas fazem parte do próprio desenvolvimento do conhecimento humano. Se queremos desenvolver alguma tradição na produção de conhecimentos em nosso país, precisamos nos acostumar com a noção de crítica.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Como ler livros de matemática?

Desconheço livros de matemática em português que não sejam carregados de erros conceituais, em todos os níveis de ensino. Isso por si só já demonstra que não é fácil ler livros de matemática em nosso idioma.


Para ilustrar as ideias que pretendo expor, cito dois exemplos bem conhecidos na literatura especializada. O primeiro é uma obra de Elon Lages Lima, na qual há questionáveis críticas a coleções de ensino médio. O segundo exemplo é um livro altamente suspeito de Georges Ifrah, sobre história da matemática.


Preocupado com erros sistemáticos em obras de ensino médio, o matemático brasileiro Elon Lages Lima editou um livro intitulado "Exame de Textos: Análise de Livros de Matemática para o Ensino Médio" (2001, SBM), no qual ele e diversos professores colaboradores fazem uma análise sobre uma dúzia de coleções de matemática (totalizando trinta e seis livros). A obra, dirigida a professores do ensino médio, certamente tem seu mérito. Os avaliadores fazem muitas críticas pertinentes. Outras, porém, novamente tornam evidente a precária situação de nosso ensino mesmo entre matemáticos considerados importantes no nosso país. Afinal, quem critica o crítico?  


Já na primeira página há um parágrafo que diz: "A Conceituação compreende a formulação de definições, o enunciado de proposições, o estabelecimento de conexões entre diversos conceitos, bem como a interpretação e a reformulação dos mesmos sob diferentes aspectos. É importante destacar que a conceituação precisa é indispensável para o êxito das aplicações."


No mesmo texto (página 2) está ainda escrito: "Uma definição pode ser incorreta por vários motivos. Ela pode estar em flagrante desacordo com a prática universal (exemplo: "chama-se intervalo a todo conjunto de números reais"), pode conduzir a contradições (exemplo: admitir uma reta como paralela a si própria e, noutro local, dizer que um sistema linear com duas incógnitas é impossível quando as retas que representam as equações são paralelas), pode ser incompleta, deixando de lado casos importantes que deveriam ser incluídos nela, pode ser excessivamente abrangente, etc."


Porém, na mesma obra, os autores jamais deixam claro o que significam termos como "definição", "proposição", "conceito" ou "interpretação". Também não deixam claro o que significa uma conceituação precisa ou o que é uma definição excessivamente abrangente. Além disso, como pode a conceituação compreender conexões entre conceitos? Não há uma bizarra circularidade aqui? 


Outro ponto falho no texto é o uso inadequado de "etc.". Para o leitor, esse "etc." pode interessar e muito. Aparentemente demanda um tratado sobre definições. Onde conseguir isso? Os autores não recomendam qualquer literatura específica como, por exemplo, a excelente obra de iniciação "Definições: Termos Teóricos e Significado" de Leônidas Hegenberg (Cultrix/EDUSP, 1974). Se o público alvo é o de professores e demais profissionais ligados ao ensino, é importante que informações complementares ajudem a orientar os leitores, para que elas minimizem erros e preencham lacunas de formação.


Parece bastante prudente considerar que um treinamento em lógica elementar seria recomendável para professores de matemática e áreas correlatas. Escrever sobre educação matemática para professores do ensino médio não é uma tarefa fácil. Pelo contrário, é extremamente difícil e talvez até ingrata. Um professor de ensino médio minimamente inteligente que leia a obra em tela de Elon Lages Lima deve achar o conceito de "conceituação precisa" pouco preciso. Por isso, parece altamente recomendável que um autor de qualquer livro de matemática (seja qual for o público-alvo) seja humilde o bastante para perceber que não há livros de matemática sem erros. O que se faz necessário é uma vasta bibliografia, para que se permita extrair um pouco de "ouro" de "uma tonelada de papel impresso".


Insisto que jamais proponho um estudo de lógica formal no ensino médio. O que sugiro é um treinamento direcionado a profissionais, sobre noções básicas de lógica formal. Isso certamente ajudaria a evitar certas discussões amalucadas que pouco contribuem para a educação. E poderia se refletir de forma bastante construtiva nos textos de matemática do ensino médio e até mesmo na prática da sala de aula.


Outro ponto que chama atenção sobre o livro de Lima é o fato de que o editor defende a prática da manipulação algébrica na resolução de problemas como uma atitude mental automática, verdadeiro reflexo condicionado (usando a terminologia do próprio autor), que permita ao usuário da matemática concentrar sua atenção nos pontos cruciais, sem perder tempo e energia com detalhes. 


Compreendo a postura pragmática de Lima, usual na matemática de alguns dos melhores centros do mundo. Mas acho que esse é um ponto que deveria ser melhor qualificado, pois trata-se de uma questão extremamente delicada. Um dos piores aspectos em sistemas educacionais como o nosso é justamente a falta da prática de senso crítico em sala de aula, tanto por parte de alunos, quanto de professores e até mesmo autores, como o próprio Lima. 


Matemática não se faz por doutrinação, revelação, autoridade ou tradição. Matemática se faz criticamente. Certos detalhes que comumente são associados a meros preciosismos podem ter extrema relevância, dependendo do contexto.


Essa postura incondicional de Lima faz lembrar de um evento que ocorreu com Richard Feynman, ganhador do prêmio Nobel em Física, durante uma estada de alguns meses no Rio de Janeiro. 
Lecionando eletromagnetismo de Maxwell para jovens brasileiros, Feynman exibiu dois filtros polaróides aos alunos e perguntou como determinar a direção absoluta de polarização de um único polaróide. Ninguém respondeu. Ele achou aquilo muito estranho e, olhando para a luz solar que refletia no mar, insistiu com uma sugestão: "Olhem a luz refletida da baía." Silêncio absoluto na sala de aula. Intrigado, Feynman perguntou se eles já ouviram falar alguma vez a respeito do ângulo de Brewster. Imediatamente veio a resposta: "Sim, senhor! Ângulo de Brewster é o ângulo no qual a luz refletida por um meio, com um dado índice de refração, é completamente polarizada." E aproveitando o embalo, Feynman prossegue: "E em qual direção é a luz polarizada quando refletida?" A resposta estava automaticamente na ponta da língua dos estimulados jovens: "A luz é polarizada em direção perpendicular ao plano de reflexão, senhor!" Feynman, então, tentou finalizar: "Portanto..." Ninguém disse coisa alguma. Feynman pediu aos alunos para que olhassem para a baía através do polaróide e que rotacionassem o instrumento. Foi quando todos ficaram perplexos: "Oh, a luz está polarizada!"
A versão completa deste episódio está no livro "Está a Brincar, Sr. Feynman" de Richard Feynman (Gradiva, 1985). No mesmo livro Feynman revela que após muita investigação, sua conclusão era a de que aqueles estudantes memorizaram tudo o que lhes foi ensinado, de maneira automática (suficiente para serem aprovados em exames), mas sem entenderem o significado daquilo.


Definir o que é crucial no processo educacional é tarefa extremamente complicada, talvez impossível de ser realizada, sem estar sujeito a duras críticas e irreversíveis erros. Por que o aluno deve memorizar de forma mecânica, por exemplo, que não existe divisão por zero (como o próprio Lima estranhamente defende em seu conhecido livro de análise matemática)? Se o objetivo é uma educação em massa, sem cuidados com a intelectualidade do indivíduo, talvez esse seja o melhor caminho. Afinal, muitos profissionais da matemática julgam que apenas os sobreviventes ao sistema educacional brasileiro são merecedores de atenção.


Mas se a meta social é estimular potenciais pensadores do futuro, a atitude mental automática pode ser extremamente perigosa. Por um lado, ela pode agilizar o trabalho do matemático profissional, permitindo-o progredir em seus estudos com eficiência e rapidez, como sugerido por Lima, o qual trabalha em um centro de excelência em matemática que paradoxalmente até hoje não produziu um único ganhador da Medalha Fields, o "Nobel" da matemática (não seria isso um diagnóstico de fracasso do IMPA?). Por outro lado, essa mesma atitude mecânica pode também contribuir na formação de preconceitos, como a pobre mentalidade de que divisão por zero não faz sentido, ou a infeliz noção de que vetores são entes abstratos com módulo, direção e sentido. Não critico de maneira inflexível a visão pragmática de Lima, até porque na prática ela apresenta vantagens impressionantes, como um rápido progresso por parte de muitos estudantes e até mesmo profissionais da pesquisa. Apenas considero que tal postura deve ser melhor qualificada e dependente do contexto sobre o que se deseja produzir. Toda ideologia incondicional é suspeita de catalisadora da ignorância e deve ser examinada de maneira profundamente crítica. E são muitos os matemáticos brasileiros que acreditam incondicionalmente em suas práticas. Um passo fundamental para o progresso é admitir que podemos estar errando. E acredito que estamos todos errando.


Não faço aqui uma análise crítica detalhada da obra editada por Lima, até porque isso demanda outro livro, dada a quantia de impropriedades lá presentes. Mas Lima e colegas não se limitam a críticas. Eles também apresentam propostas. Uma dessas está no livro "A Matemática do Ensino Médio" de Elon Lages Lima e colaboradores (SBM, 1996), a qual corresponde a um texto de matemática direcionado ao professor de ensino médio. No entanto, mesmo nessa obra há aspectos surpreendentemente questionáveis. 


Já na primeira página do Capítulo 1 está escrito que "[t]oda a Matemática atual é formulada na linguagem de conjuntos."
Pelo amor de Deus! Isso é falso! Erro grave! Basta pensar por poucos segundos para perceber que a afirmação é falsa. O cálculo proposicional clássico e algumas formulações de teorias de categorias são dois exemplos muito conhecidos de teorias matemáticas que são fundamentadas em linguagens não-conjuntistas. Até mesmo um estudante de ensino médio poderia perceber esse erro. Afinal, se toda a matemática é formulada na linguagem de conjuntos, então isso deve incluir a própria teoria de conjuntos. Precisamos da linguagem de conjuntos para formular a teoria de conjuntos? Não há uma inconveniente circularidade nessa afirmação? 


Mas independentemente deste erro, há vários exemplos de inconsistência interna com relação a tal afirmação. Ou seja, nem o próprio Lima acredita no que diz. Na página 25, por exemplo, lê-se que "[n]úmeros são entes abstratos, desenvolvidos pelo homem como modelos que permitem contar e medir." Mas se a linguagem de conjuntos é universal a ponto de formular toda a matemática atual, os números não deveriam ser conjuntos? Onde está a conceituação precisa considerada tão importante por Lima? 


É claro que afirmar para um aluno do ensino médio que números são casos particulares de conjuntos pode estar fora de questão, devido à formação precária dos jovens, se comparada com os pré-requisitos necessários para compreender tal concepção. Mas o professor de matemática não deveria entender isso melhor? Afinal, a obra em questão é direcionada a profissionais do ensino. E se um aluno encurralar um professor com perguntas do tipo "Se conjuntos fundamentam a matemática, por que números não são conjuntos?", ou "Então a teoria de conjuntos é formulada na linguagem da teoria de conjuntos?" Aposto meu braço direito que pelo menos 90% dos professores de matemática do ensino médio no Brasil não sabem responder a essas questões de maneira qualificada.


Além disso, se números servem para contar e medir, o que exatamente os números racionais estariam contando ou medindo? Sabe-se que o conjunto dos números racionais é equipotente ao conjunto dos números naturais. Isso significa que os números racionais podem ser empregados em processos de contagem, assim como os naturais? Mas os números racionais, bem como os naturais, são usualmente considerados como sub-conjuntos do conjunto dos números reais, os quais, imagino, seriam úteis em processos de medida. Afinal, racionais (e naturais) são úteis para contagem ou medida? Como se operam tais processos de contagem e medida? O que é medida? O que é contagem? Contagem é uma associação que se faz entre objetos e números naturais? Não há uma nova circularidade implicada?


É claro que esses temas não interessam a alunos do ensino médio, mas a obra em questão não é direcionada a este público. É dirigida ao professor. Não deveria o professor conhecer um pouco melhor esses temas? Se tais assuntos são de, algum modo, impertinentes no contexto da obra, não deveria haver citações a referências complementares? Afinal, quem trouxe o assunto à tona? Um livro de matemática não deveria ser auto-suficiente? Ou será que Lima e colaboradores defendem a ideia de que professores de ensino médio devem dominar somente os conteúdos de seus livros?


Também na página 211 do livro sobre matemática no ensino médio, diz-se que "seno e cosseno pertencem ao ângulo, e não ao eventual triângulo que contém." Este é um dos piores absurdos que já li em minha vida. O profissional ou o aluno de licenciatura podem ficar completamente perdidos quando se diz que seno e co-seno pertencem a um ângulo. O que significa o termo "pertencem"? Tem o mesmo significado que ocorre em teoria de conjuntos, a alegada linguagem universal da matemática? Essa bizarra declaração significa que ângulo é um conjunto de senos e co-senos? É esse o conteúdo que os professores de ensino médio devem passar para seus alunos? Qual é a contribuição real à formação de professores dada aqui?


A teoria de conjuntos oferece a possibilidade de uma visão parcialmente unificada para a matemática do ensino médio e até mesmo para a matemática de cursos de graduação e pós-graduação. Sem apelar a ela, corre-se o risco de expor a matemática como uma "colcha de retalhos", na qual matrizes são tabelas, probabilidades são razões entre números de ocorrências de eventos, e números são entes abstratos úteis para processos de contagem e medida. Por isso, as questões que julgo relevantes são:


(i) Como transpor a linguagem conjuntista para o aluno de ensino médio?


(ii) Como justificar a importância da teoria de conjuntos no ensino médio?


Somente profissionais que conheçam muito bem teorias de conjuntos e lógica podem responder a essas duas questões.


Meu segundo exemplo de literatura suspeita tem enganado até mesmo experientes professores universitários. Tratam-se dos livros bem conhecidos de Georges Ifrah, "História Universal dos Algarismos", Tomos 1 e 2 (Nova Fronteira, 1997), sobre história da matemática, que acabam tirando proveito da ignorância da população acadêmica brasileira e de outros países também, incluindo França e Estados Unidos.


Desconheço a existência de algum historiador de matemática em nosso país, especializado em algo não-trivial que se encontre além da história matemática brasileira. Por isso, sou obrigado a recorrer à opinião de especialistas de outros países. Isso porque história da matemática demanda, além de profundo conhecimento matemático, o acesso a documentos históricos originais, bem como a devida leitura e interpretação deles no contexto social da época em que foram originalmente escritos. 


Georges Ifrah escreveu uma obra monumental em termos de volume de informações. A edição brasileira, traduzida do original francês Histoire Universalle des Chiffres, conta com dois tomos que totalizam mais de mil páginas, com mil e seiscentas figuras, tabelas, fac-símiles de documentos e ilustrações. O autor, ex-professor de matemática, viajou a inúmeros países como Estados Unidos, Egito, Índia, México, Peru e China, visitando os mais famosos museus do mundo, com o propósito de coletar extenso material para sua obra. Sem ajuda financeira, ele se submeteu a diversos empregos que permitissem sustentar seu dia-a-dia e sua empreitada, como office boy, motorista, garçom e até vigia noturno de um hotel. 


No prefácio do primeiro tomo, Ifrah demonstra ser totalmente desprovido de modéstia, ao afirmar que seu objetivo é "responder em termos simples e acessíveis e da maneira mais completa possível a todas as questões que o público se coloca com respeito à história universal dos algarismos e do cálculo, evolução complexa e multiforme que se estende da pré-história à era dos computadores e que parte das operações mais elementares – errando no terreno das aritméticas especulativas, místicas, religiosas, mágicas ou adivinhatórias – para desembocar nos cálculos mais gerais possíveis, após ter passado pela descoberta do zero e da numeração de posição."


A tradução para o português é ruim, mas a obra é um best seller traduzido para diversos idiomas, incluindo o inglês. Famosas mídias de comunicação em massa enalteceram o trabalho de Ifrah. Segundo o L’Express, o autor é "o Indiana Jones da aritmética [...] que decidiu em 1974 iniciar a busca pelo seu Gral, a origem dos números." Publicações respeitadas como The Guardian, The International Herald Tribune e Le Figaro também não economizaram nos entusiasmados elogios aos dois volumes. 


Aqui no Brasil muitos professores universitários usam essa obra como referência histórica em suas aulas, influenciando as mentes de nossos jovens e impressionáveis estudantes.


Mas a questão que deve ser levantada é a seguinte: "O que os historiadores de matemática pensam sobre a famosa obra de Georges Ifrah?"


Um grupo de cinco historiadores franceses começou a ficar preocupado com os livros em questão. Apesar de textos ruins não faltarem no mundo, este merecia especial atenção, dada a sua popularidade e levando-se em conta o tema. O objetivo desse grupo era prestar esclarecimentos sobre os graves problemas no que Ifrah escreve. 


No entanto, sustento o presente texto em artigos publicados na prestigiada Notices of the American Mathematical Society, escritos por Joseph Dauben (no volume 49 de 2002, páginas 32-38 e 211-216), professor de história da ciência no Lehman College da City University of New York


Em linhas gerais, a resenha crítica feita por Dauben pode ser resumida da seguinte maneira: 


(i) Nos dois tomos o autor reivindica descobertas históricas que, na verdade, foram anteriormente feitas por outros; 


(ii) Os livros nada acrescentam em termos de fatos ou análises históricas sensatas sobre a história dos algarismos; 


(iii) Na obra há informações históricas que foram meramente inventadas; 


(iv) O autor ignora a história detalhada de números famosos como o e (base dos logaritmos naturais) e o π (a razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro), os irracionais, os transcendentes, os transfinitos, os quatérnions, os perplexos e os infinitesimais (citando apenas alguns exemplos); 


(v) O autor promete discutir sobre assuntos como computação quântica, mas não o faz. 


É claro que Dauben e os franceses mencionados podem estar equivocados ou invejosos e, de algum modo, mancomunados para a execução de uma perversa conspiração contra Ifrah. Mas o fato é que no Brasil circulam livros sobre história da matemática que têm se consagrado mundialmente ao longo de anos como referências confiáveis, como a obra de Carl Boyer ou a de Howard Eves. Por que então apelar para um livro tão controverso como o de Georges Ifrah? Além disso, há fascinantes e excelentes livros de história da matemática que não foram ainda traduzidos para nosso idioma, como as obras de Nicolas Bourbaki e de Eric Temple Bell, que apesar de tendenciosas, são razoavelmente confiáveis e endossadas por profissionais da história da matemática e de reputação internacional.


O Brasil conta com professores de cálculo diferencial e integral e de álgebra linear suficientemente competentes para decidirem, com certa sensatez, se uma nova obra lançada sobre um desses temas pode ser adotada em sala de aula. Mas não há historiadores que realmente conheçam a matemática indiana, maia, chinesa ou persa. Nesse caso, por que não contar com a opinião de especialistas? 


Toda a literatura que acessei e que elogia o que Ifrah fez foi escrita por leigos em história da matemática. Toda a literatura que acessei e que foi escrita por historiadores profissionais denuncia os livros de Ifrah como lamentáveis, decepcionantes, não recomendáveis. Como não sou historiador da matemática, prefiro confiar em quem é.


Além disso, qual é o autor confiável que escreve no prefácio de um livro que ele responderá a todas as questões que o público possa colocar sobre algum assunto não-trivial, como a história dos algarismos? História da matemática, ou mesmo a história dos algarismos, é um tema de elevada complexidade. Afirmar que todas as questões serão respondidas é o mesmo que declarar que existe fim ao senso crítico.


Qual é o problema sobre a postura de sermos cuidadosos? Quando vi o livro de Ifrah pela primeira vez, imediatamente fui atrás de resenhas críticas sobre ele. Afinal, não sou especialista em história para poder opinar sobre o tema. E já vi professores universitários com boa bagagem matemática serem completamente descuidados e simplesmente adotarem os dois tomos de Ifrah sem pestanejarem. Afinal, é uma obra famosa! Mas Playboy também é uma publicação famosa. E nem por isso é aconselhável seu uso em aulas de matemática.


Se uma revista de divulgação científica ruim como a Superinteressante vende quatrocentas mil cópias ao mês, enquanto revistas de boa qualidade como a Scientific American Brasil ou Pesquisa FAPESP vendem apenas quarenta mil cópias ao mês, isso ainda é compreensível. Até porque o povo brasileiro quer saber o que acontece no mundo científico mas não tem ideia de como procurar esse conhecimento. No entanto, um professor universitário que não adota critérios sérios para selecionar o que usará em uma sala de aula com seus alunos é uma ameaça, é mais uma célula cancerosa no seio da sociedade acadêmica. 


Se nem mesmo em nossos professores universitários podemos confiar, principalmente quando se proclamam como membros da elite intelectual da nação, quem terá sobrado? Adriane Galisteu?


Portanto, minhas recomendações para leituras de livros de matemática são as seguintes: sempre desconfie do que lê; compare com outras obras; discuta com pesquisadores atuantes e de reconhecida competência internacional; leia resenhas sobre as obras; e, finalmente, pense de forma crítica. Os erros sempre persistirão. Não há como evitá-los. Mas, pelo menos, serão menos graves.