Esta postagem conta com uma colaboração muito especial de várias pessoas. Por um lado, temos a autorização do NUPESC (Núcleo de Pesquisa de Ciências) para publicar uma transcrição livre de uma entrevista recentemente realizada com o professor José Abdalla Helayël Neto. Por outro lado, temos o árduo e cuidadoso trabalho de transcrição feito por Adam Luiz de Azevedo (a partir de vídeo disponível no YouTube), com exclusividade para este blog. O professor Helayël leu a transcrição feita por Adam, que resume os aspectos mais importantes da entrevista, e a aprovou. E agora o leitor terá acesso por escrito a uma fascinante entrevista concedida por um dos mais importantes físicos de nosso país.
Quanto a Adam de Azevedo, tive a sorte de ser seu professor em 1999 e 2000. E tive mais sorte ainda de poder contar com esta excepcional colaboração voluntária, da qual sou muito grato.
Desejo a todos uma leitura genuinamente crítica. Isso porque o professor Helayël apresenta pontos de vista que não são exatamente unanimidade em nosso país.
Para o leitor pouco familiarizado com transcrições, vale observar que eventualmente pode haver uma certa dificuldade para compreender a estrutura de certas frases. Isso se deve às profundas diferenças entre as linguagens oral e escrita.
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Educação científica no Brasil
entrevista com José Abdalla Helayël Neto
transcrição de Adam Luiz de Azevedo
Entrevista (as perguntas estão destacadas em itálico)
Qual foi a motivação que o levou a seguir a carreira de físico?
Quando era jovem eu não tinha ideia de que um dia seria um físico. Isto porque eu tinha interesse nas áreas humanísticas e artísticas e, em especial, em música, chegando fazer o Conservatório. Quando tive contato com a física, percebi que era um conhecimento muito interessante por causa de sua interface com filosofia e com questões sociais. Ou seja, o interesse pela física partiu do seu aspecto humanístico e não tanto pelo seu aspecto técnico e formal. Outro motivo foi o desafio: a física era a única disciplina que me exigia muito mais concentração para aprender. Então, decidi cursar física pois, se conseguisse fazer o curso, isto permitiria fazer muitas outras coisas.
Já na graduação da PUC-RJ, percebi que a física apresentada ali não era uma mera extensão da física do ensino médio, mas sim muito mais interessante, principalmente quando cursei as disciplinas mais avançadas, que é uma física mais contemporânea, voltada para o desenvolvimento científico. Outro aspecto que contribuiu para o meu encantamento pela física e, em particular, pela física teórica, foi o da discussão de ideias e conceitos, formulação de teorias e o gosto pela matemática. Tudo isso me motivou em permanecer e seguir a carreira científica em Física.
Concomitantemente, terminei o Conservatório e a música tornou-se um hobby. Após o término do mestrado na PUC-RJ, aproveitei a oportunidade dada aos países ditos, à época, subdesenvolvidos e em desenvolvimento, como uma cota mesmo, e consegui ser selecionado para fazer o doutorado em Trieste, no grupo do Professor Abdus Salam. Foi um período intenso de formação, realização de muitos cursos, contato direto com o próprio Abdus Salam, além de outros alicerces da física, como o Professor Dirac, o Professor Wigner e o Professor Yang. O ICTP não era simplesmente um centro de pesquisa, mas sim do conhecimento, o que me deu a certeza de ter feito a escolha certa. No período de permanência na Europa, mantive o desejo de voltar ao Brasil quando me sentisse preparado para atuar no país e dar o retorno à sociedade. Já estabelecido no Brasil, não fiquei no meu mundinho da física, fui conhecer melhor as várias realidades brasileiras, outras regiões, outros setores da vida social brasileira. Isto foi muito marcante para mim. Estou muito satisfeito em trabalhar com física no Brasil, pelas condições de pesquisa, das instituições bem aparelhadas, dos estudantes altamente interessados. Há uma juventude expressiva fazendo ciência no Brasil, com competência, energia, garra mesmo, com ideal, estou sim muito satisfeito. Esta é a minha vida de físico. Pude também atuar mais em ensino, não como pesquisador em ensino, mas como praticante de ensino, conhecendo novas metodologias, a relação de ensino de física com outras áreas do conhecimento.
Os jovens e alunos dos cursos pré-vestibulares comunitários possuem uma noção do que é ciência? A divulgação científica chega até eles?
Como tenho atuado tanto em núcleos de pré-vestibulares comunitários e sociais, em projetos de divulgação e educação científica e também em escolas particulares, com alunos de maior poder aquisitivo, de classe média, a noção do que é ciência é quase a mesma. E digo mais. Os estudantes de classe média alta tem pouco interesse em fazer um curso relacionado à ciência básica, como ser físico, ser químico, ou ser matemático, ser biólogo, ou estudar português e literatura, buscando mais os cursos ligados às profissões tradicionais e de mercado, como engenharia, odontologia, medicina e direito. Por outro lado, o aluno da classe popular vê na ciência uma motivação para ele melhorar a sua condição socioeconômica e exercer um papel social onde ele cresceu. Este comportamento, muitas vezes, tem origem no ambiente familiar, onde ele já é educado para a impossibilidade de cursar engenharia, medicina etc. Nos últimos anos, as universidades públicas cresceram bastante, com corpo docente de altíssima qualidade e aberto justamente para o jovem da classe popular, podendo usufruir dos incentivos e programas para a sua manutenção na universidade. Um receio que existiu no início, após a introdução de cotas e incentivos à popularização da universidade, foi que o aluno cotista ou bolsista não daria conta porque entraria com defasagem de conhecimento e despreparado e que desistiria. Hoje já se verificou que isso não ocorreu.
Voltando à questão inicial, tanto o garoto da classe popular quanto o da classe média possuem uma visão parecida da ciência: domina-se o senso comum de que no Brasil não se pode fazer ciência, que os cientistas querem ir para o exterior, que ganham pouco, de que o físico vai trabalhar apenas no ensino médio, ou seja, uma série de ideias mal concebidas. A classe média não sabe que a carreira científica no Brasil está bem estruturada, e muito menos que se pode fazer pesquisa e ter uma vida bastante digna e razoável no Brasil. Não digo ficar rico, mas é perfeitamente possível viver dignamente, ter um salário razoável, ótimas condições de trabalho.
Vejo com otimismo o nosso papel de divulgação da ciência e da física para o jovem brasileiro, mostrando a magnitude de uma carreira científica para a nossa sociedade. Por exemplo, o Professor Nathan tem realizado um trabalho magnífico na divulgação e na internacionalização da física no Brasil. Assim como o Nathan, o Brasil tem atraído vários estrangeiros por causa das boas condições de trabalho, de estudantes convictos de que vale a pena fazer ciência, sobretudo no Norte e Nordeste. Isto se deve também à falta de interesse e descrença dos estudantes europeus pela ciência em detrimento às áreas profissionais de mercado. Os países europeus fazem um enorme esforço para trazer os jovens de qualquer país para a carreira científica, como aulas em inglês para garantir a universalização de acesso. Felizmente, isto não está acontecendo no Brasil. Os jovens brasileiros, quando se dão conta do que é ciência, e querem fazer ciência (física, matemática, química, biologia, história, sociologia, antropologia etc.) são muito entusiastas com o que estão fazendo e cientes do papel que possuem para o desenvolvimento do nosso país. O estrangeiro se encanta com isto e se sensibiliza com esses jovens, que são seus parceiros de trabalho. Não é simplesmente o atrativo do salário e do emprego garantido, mas também o entusiasmo, que não tem preço, que não é material, é espiritual. Isto não é mais visto no exterior, pois as pessoas lá estão mais apegadas à questão material decorrente da força do capitalismo existente. Contudo, isto não significa que somos românticos, mas é a manifestação da consciência de nossos estudantes de hoje devido às semanas nacionais de ciência e tecnologia, levando a ciência ao público, com a participação das famílias das classes populares e estudantes da Zona Norte do Rio de Janeiro, da Baixada Fluminense.
O que o professor tem a dizer sobre a falta de flexibilidade dos currículos acadêmicos, uma vez que o jovem de 17, 18 anos já tem que definir a carreira no início do curso e, às vezes, se interessa por outro curso e encontra grandes dificuldades para uma mudança?
O currículo acadêmico é rígido sim. Limitando-se à física, o currículo também é antigo, pois o estudante de física termina a graduação com uma física defasada por cinquenta anos, desmotivando os estudantes. O que ameniza esse quadro é o Programa de Iniciação Científica, que permite já ao estudante de graduação desenvolver um trabalho de pesquisa na área e com o professor escolhido. Esse estudante recebe também uma bolsa, uma ajuda financeira para seus gastos acadêmicos e uma maneira de valorizar o seu trabalho. Voltando para a sua questão, os currículos nas universidades não têm a flexibilidade necessária para o estudante que deseja uma transição entre cursos. Normalmente terá que largar tudo para começar tudo de novo. No entanto, há algumas universidades que já possuem certa flexibilidade curricular, a UFABC e a UFRN, as quais se pautam na interdisciplinaridade, não no sentido de aprender nada de tudo, mas no sentido de aprender uma série de assuntos que possibilitarão a mobilidade necessária para uma eventual mudança de curso e permitindo que os estudantes façam uma escolha profissional mais amadurecida, com mais visão.
Outro problema que repercute na mudança de curso é a família do estudante, principalmente a de classe média: por ser muito jovem o estudante, é a sua família que escolhe a profissão dos seus filhos. Aliás, conheci muitos alunos que têm problemas com a família por optarem pela carreira científica, mostrando a falta de informação da família. O problema está na família e não no aluno. Isto é comum em famílias de classe média. A família não pergunta aos seus filhos o que querem fazer para ter uma vida plena de realizações, para serem felizes, mas, ao invés, pergunta o que o filho vai fazer para ganhar dinheiro, qual a profissão mais rentável. O pai fica muito feliz se o filho escolher uma carreira que dê dinheiro, mas ignora se ela vai fazer o seu filho feliz. Este é um problema comum. Até mesmo os meninos escolhem a profissão de mercado, mas se esquecem que passarão trinta e cinco anos nesta profissão que poderá ser extremamente desagradável. Alguém que exerce uma profissão que não gosta, certamente adoecerá em vinte anos de profissão. A profissão menos rentável pode ser aquela que pode te realizar. Isto não se limita ao Brasil, acontece também em outros países. As famílias bem colocadas socialmente resistem muito à escolha profissional de seus filhos. Conheço vários estudantes de 17 anos que confessaram que inicialmente se formarão na profissão escolhida pela família mas, no fim, estudarão o que querem. Embora este estudante adquira experiência de vida, por que não fazer desde o começo o que gosta, para depois procurar se universalizar, aprender coisas novas? A família não ajuda e a escola também tem culpa, pois ela transmite que a pessoa bem sucedida é aquela que tem dinheiro, e não aquela que escolheu a sua profissão e é competente no que faz. Isto, muitas vezes, fica em segundo plano. O estudante não é protagonista de suas escolhas. Quantas pessoas conhecemos que se formam naquilo que não queriam, acabam se conformando e vivendo a vida sem busca, sem renovação profissional, sem encontrar estímulo e instigação? Isto está acontecendo na Europa, onde estudantes procuram a profissão que lhes dê status e visibilidade social.
O que você acha da estrutura curricular de cinco a oito disciplinas semanais, obrigando o estudante a estudar mais a disciplina daquele professor que cobra mais e deixar de lado as outras disciplinas e, assim, o estudante não aprende o necessário para a sua formação, não absorvendo o conhecimento? Não seria melhor para o estudante se tivesse menos disciplinas e mais motivação?
É uma pergunta importante e pela qual me bato: é a questão da reflexão. A universidade brasileira é muito conteudista: aprender muitas coisas simultaneamente e não deixar tempo para a reflexão. Na verdade, é melhor aprender poucas coisas muito bem, do que aprender muitas coisas mal. Aprendendo poucas coisas bem, você está com a cabeça preparada para aprender muitas outras coisas por conta própria. Mas se você aprende muitas coisas mal, tendo alguém dando as coisas aos pouquinhos, você fica com um conhecimento muito compartimentado. Já o sistema universitário italiano é excelente, porque é o estudante que administra a sua formação conforme os seus interesses. O estudante passa um ano na universidade sem fazer prova alguma, cursando apenas disciplinas nas quais quer se desenvolver mais e, no final de um ano, ele faz exames orais para os professores. O exame oral é um recurso que devia ser implantado no Brasil, pois o exame oral organiza a tua cabeça: uma coisa é você fazer uma prova escrita, rabiscando aqui e ali, pega meio ponto aqui, outro ponto acolá, faz aquela ciscação para dar uma notinha razoável no final da soma. Em uma prova oral, você tem que ter um discurso muito claro, precisa desenvolver um senso crítico da disciplina. Você não vai para o quadro simplesmente para responder às pegadinhas. Você tem que ter um discurso sobre o que você aprendeu e, para isto, é necessário reflexão e tempo. Não é possível fazer isto com cinco ou mais disciplinas por semestre simultaneamente.
Outra crítica ao currículo em física é ele ser muito repetitivo. O estudante vê o mesmo assunto em níveis diferentes. Por que não se vê um assunto uma única vez e bem? Assim sobraria mais tempo para cursar melhor outras disciplinas importantes e com mais tempo para pensar. Por exemplo, mecânica clássica, que se faz em Física 1 e 2, depois se faz mais um pouco em Mecânica Geral, depois Mecânica Analítica; o mesmo acontece com Eletromagnetismo, que se faz em Física 3 e 4, depois se vê o mesmo assunto em uma disciplina de Eletromagnetismo mais avançada, daí novamente se vê o assunto em Eletrodinâmica Clássica na pós-graduação. Estamos repetindo as mesmas disciplinas muitas vezes. Por que não fazer uma vez só bem feito, é assim que é feito no exterior em universidades com quatrocentos, quinhentos, anos de ensino e pesquisa. Isto é um problema na educação universitária no Brasil, com excesso de conteúdo e simultâneo, impossibilitando o estudante de desenvolver o sentido crítico. Esta é uma experiência pessoal, pois senti falta de reflexão quando fui fazer o meu doutorado no exterior, observando meus colegas, ainda bem jovens, apresentando suas reflexões e críticas em cada assunto, dando até visões próprias, visões pessoais mesmo, enquanto a minha visão era em reproduzir o que me ensinaram e o que lia nos livros, me convencendo que tinha aprendido física. Não tive o estímulo para desenvolver o próprio raciocínio e a visão crítica dos assuntos e isso falta ao ensino superior e tenho certeza que o estudante brasileiro faria isto bem. Aprendemos os fatos e conceitos de forma isolada e não a sua correlação e contexto em que existem. Uma outra coisa que também me bato nos cursos é sobre o contexto; nossos estudantes aprendem assuntos técnicos, métodos, isoladamente, sem dar o contexto em que foram desenvolvidas essas coisas. Saber como se deu o acúmulo de conhecimento que temos hoje, entender quais são os grandes problemas de uma época específica, o que é importante hoje em física, quais são as áreas mais estimulantes, quais são as grandes questões científicas, tudo isto, esta contextualização, está ausente na maneira como são ministradas as disciplinas em física. Se não há reflexão, os estudantes de física vão terminar a graduação extremamente adestrados em reproduzir técnicas sem qualquer espírito crítico. Mas acho que, aos poucos, estamos aprendendo a construir uma universidade melhor. Há muitas outras pessoas que também pensam assim e estão trabalhando para mudar isso, com consciência nacional para melhorar a qualidade de ensino. Já conseguimos trazer as pessoas para a pesquisa, conquistamos o quantitativos, os índices. Agora temos que mudar as graduações, reduzir a repetição dos conteúdos, redistribuir os assuntos para reduzir o número de disciplinas semestrais, para que nossos estudantes possam ter uma formação mais reflexiva.
O ensino no Brasil nas universidades e no ensino médio estimula o senso crítico?
No ensino básico (fundamental e médio) não. E não importa se é na escola pública ou particular, o perfil conteudista e adestrador persiste em ambas as esferas. Por exemplo, quando se aproxima o período de vestibular e ENEM, o estudante é adestrado para conseguir entrar no curso desejado. O ensino médio é direcionado a preparar o estudante para ingressar na universidade, sem se preocupar o que o estudante vai fazer com este conhecimento dentro da universidade. Já na universidade, em cursos de ciências básicas, na medida do possível, há sim um estímulo à reflexão e senso crítico. A Iniciação Científica também contribui para uma formação mais crítica e reflexiva, uma vez que o currículo possui muitas disciplinas para serem cursadas por semestre simultaneamente, levando a um estudo todo fragmentado. Por exemplo, um professor marca uma prova, e aí o estudante investe a maior parte, ou todo o seu tempo, para se preparar, abandonando o estudos das outras disciplinas. Isto leva a um estudo irregular, prejudicando o aprendizado eficaz. No atual modelo, o estudante não pode se dedicar, digamos, um mês, devido à importância do assunto, a um determinado tópico. Isso é impossível de se fazer, é artigo de luxo. A Iniciação Científica é a oportunidade que o estudante tem para a reflexão, fazer uma pesquisa, aproveitando para conversar com o professor, discordar, mesmo estando errado, e não aulas de reforço como alguém poderia pensar. É importante destacar que a Iniciação Científica está bem agressiva no bom sentido, está ampla, universalizada e bem estabelecida. Nos Institutos Federais de Ciência e Tecnologia há muitos projetos de Iniciação Científica. Sou um entusiasta dos Institutos Federais, pois os estudantes sabem o que querem, são guerreiros, vocacionados e temos que aproveitar essas oportunidades para pensar em atualizar a estrutura de nossos currículos.
O senhor acha que a inclusão social nas universidades tem sido maior na última década?
Sim, a inclusão tem sido extraordinariamente grande nos últimos dez anos. Antigamente se dizia que a universidade pública é lugar só de rico, pois os que lá estão pagaram os melhores cursinhos. Hoje isto não é mais verdade. Hoje o filho do trabalhador está em uma universidade pública, não só por causa das cotas, pois o estudante cotista possui bom desempenho acadêmico nas melhores universidades. Vale lembrar que o estudante universitário brasileiro tem criado projetos-cidadãos, pré-vestibulares comunitários em vários lugares do Rio de Janeiro e do Brasil. Os estudantes se reúnem com os professores para participarem de cursos que auxiliam os jovens da classe popular a terem acesso às boas universidades públicas e isto tem dado certo, ao contrário do que afirmavam algumas campanhas, desqualificando os estudantes cotistas, de que iam fracassar por serem “fracos”. As universidades não querem apenas receber o estudante, mas também que ele fique e, para isto, foram criados vários programas para assegurar a sua permanência, os professores estão se empenhando também para isto. Está dando muito certo, pois aquele estudante demarcado socialmente está se saindo muito bem, com excelente desempenho acadêmico. Estamos diante de uma realidade muito interessante que merece ser ampliada.
Existe uma internacionalização na ciência brasileira ou ainda está muito longe para isso acontecer?
Está havendo sim a internacionalização da ciência, não estamos longe disso não. Ela está crescendo. Isto já acontecia antes. Na minha época acontecia de não haver doutorado em algumas áreas. Eu fiquei dez anos fora do país. A minha geração era muito internacionalizada e quando voltou ao Brasil, trouxe junto o conhecimento adquirido e desenvolveu projetos no Brasil. Há também um grande fluxo de professores estrangeiros, professores brasileiros visitando outros países, fazendo pós-doutorados, como professores visitantes, estudantes do Ciência Sem Fronteiras, instituições concedendo bolsas para trazer estrangeiros, realização de eventos internacionais em todas as áreas, estrangeiros que vêm participar de concursos e se radicar no Brasil. Apesar das aulas não serem em inglês, a internacionalização está ocorrendo nas universidades através do acesso aos periódicos internacionais, acesso de artigos pela CAPES, colaborações com grupos no exterior, hangouts, vídeo-conferências etc.
O Instituto Internacional de Física com sede na UFRN está seguindo o mesmo modelo que o IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada)? Essa informação procede? Esse seria um modelo como estratégia para a ciência brasileira e para a física?
O Instituto Internacional de Física não possui curso de graduação em física, assim como o IMPA também não tem, e não tem pós-graduação, mas conta com a colaboração dos professores da UFRN na realização de suas atividades; o Instituto Internacional de Física organiza conferências de altíssimo nível, workshops, divulgação de resultados científicos, formação de pessoal, promove intercâmbio e internacionalização entre pesquisadores do Brasil e estrangeiros rotineiramente, focando-se em pesquisa, enquanto o IMPA, por ter maior tradição, investe mais na formação de pessoal, reciclagem de professores e cursos de verão (vale lembrar que o IMPA possui forte tradição em pesquisa em matemática de nível internacional). Há também o SAIFR (South American Institute for Fundamental Research) que reúne os melhores pesquisadores de suas respectivas áreas, realiza cursos abertos aos estudantes de pós-graduação e pesquisadores. Além disso, em todas as universidades públicas estão ocorrendo diversos eventos, ou seja, a física brasileira está bem integrada à comunidade internacional.
(Pergunta feita por Rodrigo Aroucas) Professor, no Brasil se diz que há uma proporção muito pequena de físicos experimentais. Você acha que isso se deve à falta de física experimental no ensino fundamental e médio?
Sim, em nossas escolas há uma grande ausência de experiências, com uma eventual medida ou outra, reforçando a tradição desde cedo de não formar o estudante para o experimento. Na própria universidade, quando o estudante entra no curso de física, se tem pouco incentivo para que ele faça física experimental, pois a maioria das disciplinas são teóricas e com um apelo muito forte, como falar sobre a origem do universo, física de partículas, mecânica quântica, atraindo e encantando os estudantes de graduação. Isso diminui a oportunidade de se conhecer as disciplinas experimentais, a pesquisa em laboratório, ou seja, não se desenvolve o lado experimental como deveria ser, contribuindo para a pouca tradição em física experimental no Brasil e na manutenção do desbalanceamento entre o número de teóricos e experimentais. A gente também observa que este quadro é comum nos países menos desenvolvidos, pois há pouco acesso a laboratórios, levando os estudantes a gostarem mais da física teórica. Nos países desenvolvidos, a situação é diferente, com um equilíbrio maior e, até mesmo, com um sobrenúmero de experimentais em relação a teóricos, porque há acesso aos bons laboratórios desde cedo, o estudante é treinado para a experiência. Apesar de não ter vocação para a área experimental, acho sim muito importante a física experimental pois, nós teóricos precisamos muitos dos experimentais, e vice versa. É preciso discutir o problema para que haja um equilíbrio e um entrosamento maior entre esses dois profissionais. Então, esta questão procede, acho que a questão vem lá de baixo sim, do ensino médio. Se o estudante do ensino médio tivesse acesso a laboratórios, ou mesmo se houvesse uma forma de compartilhar laboratórios de universidades em programas de visitas, não como um programa regular, esses estudantes desenvolveriam sim uma maior sensibilidade para experimentos e isso equilibraria mais a área.
(Pergunta feita por Wilker C. de Lima) O Brasil não deveria ter ações de divulgação científica e expor a vida profissional de um cientista a fim de sanar esta dificuldade da população de entender a vida acadêmica profissional em ciência?
Sim, é importante até para desmistificar, porque muitas vezes as pessoas pensam que quem escolhe uma carreira de cientista, de professor universitário, é monótona, desacoplada da realidade, aquele senso comum que você vê na televisão, quando em novelas há alguém ligado ao estudo, o estudioso é sempre o alopradinho, o cara que não tem senso de realidade, é o cara que não arranja namorada, é associar o estudioso ao nerd. Ao contrário, a pessoa que faz ciência, que é professor universitário, tem uma vida completamente normal, aquela é a profissão dele, faz aquilo porque gosta, sabe bem, faz bem. Ele tem uma vida normal, tem família, ele visita, tem seus hobbies, faz escalada de montanha, faz ciclismo e muitas vezes fica essa ideia preconcebida de que a pessoa que se dedica a uma vida de estudos é uma pessoa fora da realidade, vivendo de ideais, não liga para dinheiro. Não tem nada disso, está errado. É preciso educar para mostrar o que é a vida de estudos, aonde ela pode te levar. A população está desinformada sobre isso.
(Pergunta feita por Natan Oliveira) Quais são os maiores problemas na graduação e pós-graduação em física? O que poderia mudar para melhorar a qualidade do ensino de física nas universidades? Além disso, o ensino de filosofia da ciência nas graduações contribuiria para uma melhor preparação de um físico e nos debates de ideias? Gostaria de saber também se há alguma perspectiva para a educação científica, sobretudo na área de física, que possa ser uma indicação para diminuir a evasão no curso de física?
Em primeiro lugar, o currículo de graduação e pós-graduação tem que mudar por ser muito repetitivo, fazendo a mesma coisa várias vezes em níveis um pouco diferentes. Por que não fazer uma vez só uma disciplina e bem, custe o que custar, mesmo que seja difícil, é só sentar e estudar. Os professores talvez vão ter um pouquinho mais de trabalho, mas cortando esta repetitividade, a gente vai ganhar muito com isso. Em segundo lugar, quando se entra na pós-graduação, pelo menos em física, sobretudo no mestrado, oitenta por cento das disciplinas são repetições de disciplinas da graduação, mesmo sendo por um nível um pouco mais avançado, mas há repetição e simplesmente a gente aprofunda muito pouco em relação ao visto na graduação. Como os cursos de graduação em física são bem homogêneos, com uma reforma curricular que diminuísse esta repetição, um estudante em qualquer lugar do Brasil poderia já fazer uma pós-graduação em um nível mais puxado, cursando disciplinas gerais sobre assuntos mais atuais, não se limitando a assuntos de 50, 60 e 70 anos atrás e cursar também disciplinas mais direcionadas à área de pesquisa escolhida. Isto tornaria o curso muito mais estimulante e motivador. O mesmo serve para a graduação, se o estudante fizer uma disciplina bem feita uma vez só, quando estiver no meio ou no fim da graduação, aprendendo uma física mais contemporânea, ligada ao que se está fazendo agora, ele se formaria muito mais motivado. Acho que os cursos de graduação e pós-graduação em física poderiam mudar nesse sentido. Quanto à questão sobre a filosofia nos cursos de física, acho muito importante. É uma pena não haver uma disciplina de Filosofia da Ciência, História da Ciência, ou debate da Ciência. Bastaria dois ou três semestres de um curso de História e Filosofia da Ciência para compreender os contextos nos quais as teorias foram desenvolvidas, compreendendo as relações da física com as demais disciplinas em uma dada época do desenvolvimento da sociedade, seria muito importante, acho que isso falta em física. Como fui aluno da PUC-RJ, fiz duas disciplinas de Filosofia da Ciência na minha graduação e isto abre a cabeça para ler mais sobre o assunto. A gente sente falta de uma formação filosófica maior, acho que precisaríamos ter um curso de física com um pouco mais de humanidade, de filosofia, até mesmo um bom curso de Física e Sociedade, o aspecto social das ciências, a Sociologia da Ciência. Isto acontece em outros cursos, como quem faz Direito tem Sociologia do Direito, quem está na área da Educação, tem Sociologia da Educação, por que um estudante de física, de ciências naturais, ciências exatas, não pode fazer o mesmo? Nossos cursos são tão áridos, muito direcionados só para a área, falta conhecimento humanístico, isso faria muito bem para a cabeça de nossos estudantes. E, respondendo à última questão, acho que a grande evasão deva-se ao currículo dos cursos de física serem pouco atrativos, e muitas vezes o estudante de física entra pensando em uma realidade e percebe que é outra na verdade. Também o ingresso no Curso de Física é usado como trampolim para fazer uma engenharia. A evasão existe por várias razões, mas acho que a evasão diminuiria de fosse atraente desde o início, relacionando física, filosofia, sociedade, pois isto dá o contexto. Se o estudante tem uma noção de contexto, como para que serve aquele monte de equações e expressões, ou a relação da mecânica com a eletricidade, o que significa tudo isto para o comportamento humano e para a sociedade, ele fará o curso de física com mais consciência, vai se desmotivar muito menos, ele pode até não desistir. Muitas vezes somos muito ligados no curso no “pra quê que serve” e menos no “que significa”. O que está nos faltando é compreender mais o significado do que a utilidade.
O que o senhor tem a dizer sobre a política de investimentos em pesquisa em física teórica, em contraste com o investimento em pesquisa em física experimental e aplicada?
A pesquisa teórica demanda pouco dinheiro em relação ao necessário para uma área experimental. Isto porque em pesquisa experimental é necessário adquirir equipamentos caros para montar laboratórios. O uso de laboratórios internacionais, como o CERN ou Fermilab, é mediante pagamento pelo governo brasileiro, enquanto para o teórico geralmente precisa de um computador, acesso a bibliografia etc. O gasto do pesquisador teórico é maior apenas na organização de eventos científicos. Além disso, há editais de financiamento universal de pesquisa, nos quais a concessão de bolsas de pesquisa não distingue entre as áreas de pesquisa e sem prioridade, se é teórica ou experimental, e muito menos distingue dentro de linhas de pesquisa nessas duas áreas; há também editais específicos para a concessão de bolsas de pesquisa, editais de auxílio à pesquisa das fundações estaduais. O projeto experimental custa muito mais do que um projeto teórico. O teórico não é prejudicado na hora das competições, pois há projetos específicos para os experimentais e tem projetos universais que os teóricos podem participar. O que o teórico precisa geralmente é de estudantes de mestrado e doutorado para os quais são concedidas bolsas, pós-doutoramentos, formando uma força de trabalho fantástica. Ou seja, o físico experimental precisa de mais dinheiro do que o teórico para a realização de seus projetos.
Com relação às publicações científicas no Brasil, o que dá para comentar sobre as reclamações de muitas pessoas que dizem que se dá mais valor à quantidade do que à qualidade, devido à necessidade de publicar bastante para ser valorizado no Brasil? Os jovens das universidades têm alguma ajuda e preparo para a realização dessas iniciativas para buscar essas publicações de artigos científicos desde a sua graduação?
Há muito se constata que vivemos um regime altamente produtivista. Produtividade é importante sim, mas a que nível a produtividade é importante? Os indicadores estão muito em cima da quantidade. A verdade tem que ser dita, no processo de julgamento pelos pares em comissões para a concessão de algum pedido, nem sempre há tempo para analisar a qualidade das publicações das pessoas. O que se vê é o número de trabalhos, e o máximo que se pode fazer é ver o impacto das revistas baseadas em classificações (se a revista é Qualis A1 ou se é Qualis A2, de categoria alfa, de categoria beta ou de categoria gama) a fim de contar o número de artigos e não ver muito a qualidade dos artigos. O Brasil já mostrou que a produtividade científica brasileira alcançou os patamares internacionais de produtividade. Agora é preciso buscar a qualidade. Exige-se muito do pesquisador brasileiro uma numerologia, ou seja, um número mínimo de publicações conforme a classificação de revistas definidas pelos órgãos de fomento de pesquisa para se ter acesso às bolsas e realizar projetos solicitados. Os indicadores são muito pesados, obrigando a pessoa a ser repetitiva. Ela tem pouco tempo para mudar de linha de pesquisa, de aprender coisas novas, pois para se investir em uma nova área, obrigatoriamente terá que parar de publicar por dois anos e perderá uma série de incentivos e projetos que está acostumada a ganhar. Este é um problema que exige um posicionamento muito individual: se você tiver a necessidade de se enquadrar na classificação de produtividade (pesquisador categoria 1C, 1B etc.), ou precisa ganhar projetos que exigem essas classificações, você tem que aprender a se colocar neste regime produtivista; ou, como o salário de professor universitário não é ruim, dá para viver, você pode ser dono do seu tempo e investir para aprender um assunto novo, refletir e publicar sobre ele, pois ninguém deixa de publicar, pois as pessoas gostam de expor o que estão fazendo, esperam um retorno construtivo, que as levam a melhorar. Ela também acha que tem algo a dizer. Às vezes alguém lê nosso trabalho e se vale dele para fazer seu trabalho. Em algum momento a gente vai querer publicar e precisa de um tempinho para a reflexão, isso que o estudante brasileiro é muito sobrecarregado de cursos, tem que fazer trabalho, provas, o mesmo ocorre com o pesquisador. Ele aprende um assunto e tem que sobreviver às custas daquele assunto por muitos anos, acabando se repetindo mas se aperfeiçoando, mas sempre em torno daquele tema. Assim, a decisão de se enquadrar ou não no sistema produtivista é uma questão que devemos saber colocar. Eu não culpo o sistema, porque o sistema somos nós, quem faz as regras somos nós, então não existe um sistema abstrato que nos obriga a isso, fazemos isso porque nós queremos, a situação é essa e você se coloca como você achar melhor para você. A CAPES somos nós, o CNPq somos nós. Tudo isto envolve princípio de vida, ideologia, filosofia de vida também.
Adonai,
ResponderExcluirEm alguns momentos tive a impressão de que o Prof José Abdalla Helayël Neto não está muito a par da realidade educacional brasileira. Claro que existem alunos entusiasmados, mas fiquei com vontade de conhecer esse "paraíso" aqui no Brasil com tanta gente boa e com vontade de fazer ciência. Claro que minha visão pode estar limitada pelo meu contexto no ensino, mas com tantos problemas curriculares, entre eles excesso de disciplinas por semestre, pressões quanto ao número de publicações, e falta de tempo (devido as grades curriculares) para iniciação científica de qualidade, o texto me pareceu em alguns momentos um tanto contraditório.
Adriane
ExcluirDe fato, há várias contradições na entrevista. E certamente o entrevistado demonstra um otimismo resultante de falta de contato com realidades externas ao CBPF. Ainda assim há trechos na entrevista que apresentam ótimas ideias. Isso ocorre principalmente quando Helayël discute sobre possíveis reformas no currículo de cursos de física.
Há algum tipo de lei que impeça que diminuam o número de disciplinas cursadas na graduação, além das disciplinas "repetitivas", em cursos como o Bacharelado em Física? A opinião do professor Helayël, em relação à graduação, é geralmente compartilhada por seus colegas Físicos?
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