sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O Exorcista e A Universidade Brasileira



FADE IN. Sem créditos iniciais, a primeira cena inicia com uma tomada externa noturna, na qual vemos a residência onde mora Regan, a menina interpretada por Linda Blair. O quarto da garota é o único aposento com luz acesa. A luz se apaga e a câmera desloca lentamente para baixo e para a direita, fixando-se em seguida em um casal que caminha pela rua completamente alheio sobre o que se passa na casa ao lado. Logo depois a tomada dissolve para o rosto de uma estátua que remete à Virgem Maria. FADE OUT. CRÉDITOS.

Esta é a apresentação de um dos mais belos filmes já realizados na história do cinema: O Exorcista, de William Friedkin. Com roteiro de William Peter Blatty, baseado em seu próprio romance - e embalado pela extraordinária Tubular Bells, do britânico Mike Oldfield - O Exorcista é uma obra prima de um dos períodos mais felizes do cinema estadunidense, a década de 1970 (que produziu Guerra nas Estrelas, O Poderoso Chefão, O Homem de Palha, Sem Destino, entre muitos outros). 

Para o público em geral, O Exorcista é um filme de terror no qual a menina Regan é possuída por alguma entidade oculta e maligna. Por inusitada recomendação médica, a mãe decide pedir ajuda a um jovem e confuso padre, o qual recorre a um sacerdote mais velho para a realização de um ritual de exorcismo. No final do filme os dois padres morrem brutalmente. No entanto, Regan se livra do mal. Seu corpo não está mais subjugado àquela entidade diabólica. Em suma, O Exorcista parece, aos olhos do grande público, uma história que começa mal e termina bem, apesar do trágico sacrifício de dois sacerdotes da Igreja Católica. Aparentemente se trata de mais um exemplo hollywoodiano do bem triunfando contra o mal. Mas esta percepção superficial está evidentemente equivocada. E é justamente neste detalhe que reside a extraordinária beleza do filme.

Existe uma trama principal em O Exorcista tão oculta e misteriosa quanto a entidade que toma posse do corpo de Regan. 

O Exorcista é claramente uma arquitrama, dividida em três atos (começo, meio e fim; apresentação, conflito e resolução), obedecendo às regras usuais de histórias clássicas (como consistência, irreversibilidade de eventos e ordem cronológica). Sendo assim, devemos prestar especial atenção à maneira como as personagens são exploradas durante o filme. 

Regan aparece pela primeira vez após quase doze minutos de projeção. Mesmo assim ela está dormindo, enquanto a mãe escuta estranhos ruídos que pareciam vir do quarto da filha. Tais ruídos são a continuação da apresentação da personagem oculta, a tal da entidade que posteriormente toma posse da garota, gerando o principal conflito. Esta personagem oculta foi a primeira a ser apresentada, justamente na primeira cena do filme. Portanto, a personagem principal não é Regan, mas a entidade (uma personagem sem rosto, sem nome, que se esconde covardemente nas trevas). 

Após os créditos iniciais, os próximos minutos são dedicados inteiramente ao padre Merrin, interpretado pelo veterano Max von Sydow. Merrin é um padre idoso, que anos atrás havia realizado um exorcismo bem sucedido na África, mas que quase lhe custou a vida. Hoje ele é um senhor de saúde debilitada e muito cansado, realizando escavações arqueológicas no Iraque. Através de simbolismos brilhantemente bem colocados, com sombras que se movem, um relógio que para e cães ferozes, fica claro que a entidade oculta está provocando o idoso sacerdote, dizendo-lhe: "Não esqueci de você, homem de Deus."

Isso significa que a força antagônica sobre a personagem principal é o Padre Merrin, aquele que, através da fé em Jesus Cristo, conseguiu livrar uma criança do mal no continente africano, após meses de luta. Mas a entidade oculta é consistentemente covarde. Ela toma posse de crianças indefesas e esperou tempo o suficiente para que a saúde do Padre Merrin enfraquecesse.

Regan foi apenas instrumento para a entidade oculta exercer seu plano de mesquinha vingança contra o humano Padre Merrin.

Em resumo, O Exorcista é um filme no qual o mal triunfa sobre o bem. É uma mensagem que se deposita inconscientemente na platéia e que justifica, em parte, o grande sucesso da película como um dos clássicos do terror. Isso porque as grandes obras cinematográficas sempre contam com uma intangibilidade que transcende a trama explicitada.

Além do roteiro brilhantemente arquitetado, um dos fatores que contribui para a ilusão de que o filme trata da vitória do bem é justamente a menina Regan. A platéia ficou ofuscada pela pobre vítima Regan que chega a se masturbar com uma cruz em hediondo ritual de autoflagelação. 

O que isso tudo tem a ver com A Universidade Brasileira?

O Brasil é um país notoriamente medíocre em termos de sistema de ensino. Mas essa mediocridade é mais facilmente perceptível em escalas internacionais, que transcendem nossa míope visão local. Basta observar o fracasso brasileiro no PISA, a falta de tradição na produção de ideias, a ausência de prêmios Nobel em nossos círculos acadêmicos, as políticas retrógradas de ensino, as greves nas universidades federais e estaduais. Do ponto de vista do próprio povo brasileiro, porém, a educação brasileira está muito bem. Há quem reclame. Sempre existem aqueles que reclamam, culpando principalmente o Governo Federal. Mas se existisse a convicção de que precisamos de um sistema educacional consideravelmente melhor, certamente teríamos muito mais do que reclamações vazias que apenas preenchem blogs, facebook e eventuais cartazes espalhados pelo país. 

O Brasil está ofuscado por reivindicações irresponsáveis que demandam salários mais elevados para professores. Afinal, coitados dos professores! Eles merecem algo melhor do que um carro popular e uma residência financiada, não importando quais sejam os seus rostos. E no meio desses apelos emocionais a própria população perde de vista o problema real. 

O problema real é que nossa educação está fundamentalmente errada. 

A estabilidade para professores de instituições federais de ensino superior é um erro fundamental. O vestibular é um erro fundamental. O ENEM é um erro fundamental. A centralização da educação é um erro fundamental. A ausência de meritocracia para docentes é um erro fundamental. A falta de um código de ética para professores é um erro fundamental. A falta de avaliação séria de desempenho de docentes e pesquisadores é um erro fundamental. 

Jovens estudantes não podem perder tempo apoiando greves de professores, pois seus mestres simplesmente não sabem o que fazem. Isso porque tais mestres estão cegos e dominados por um sistema ineficiente, corrompido e comodista. Jovens estudantes deveriam se recusar a entrar em uma sala de aula na qual seu professor conta com estabilidade de emprego. Jovens estudantes deveriam exigir que bons pesquisadores e bons professores sejam recompensados por seus sólidos resultados e não por seus vagos esforços. Jovens estudantes deveriam exigir que professores incompetentes e pesquisadores não produtivos sejam demitidos das instituições federais de ensino superior.

Conheço muitos jovens talentosos e inteligentes que simplesmente abandonam os cursos superiores nos quais ingressaram após exaustiva batalha. Por quê? Isso é sinal de inteligência de nosso sistema de ensino superior?

A força antagônica contra a nação não é a falta de dinheiro para a educação. O verdadeiro inimigo, oculto diante do olhar da imensa maioria que apenas assiste à saga brasileira com superficial atenção, é a estrutura de todo o nosso sistema educacional. 

Se você é um jovem estudante de uma instituição federal de ensino superior, converse com seus amigos. Procure organizar um movimento sério contra este sistema perverso hoje dominante por pura inércia. Diga não à comodidade. Educação não se faz com estabilidade ou garantia de emprego a alguém que foi aprovado em um único concurso público. Não faz diferença se uns poucos alunos tentarem se render ao sistema. Impeçam as aulas! Cantem durante a aula! Gritem! Criem uma manifestação real, agressiva mas não violenta. Não aceitem aulas de docentes que se acomodaram com a estabilidade. É a única forma de mudar para um sistema internacionalmente competitivo. É a única forma de nos livrarmos da noção de um professor sem rosto, que se esconde nas trevas da ignorância e da comodidade. Isso porque um professor perde identidade quando exige melhores salários para toda a categoria, independente de mérito pessoal.

Coloco-me à disposição para colaborar pessoalmente com grupos organizados de estudantes que queiram efetivamente mudar o país para melhor. Ainda há uma tênue esperança de que talvez exista cérebro e sangue nas veias dos jovens brasileiros.

Se os jovens não despertarem para a necessidade de uma massiva, agressiva e insistente paralisação em protesto contra o monstro que gerações anteriores criaram em nosso próprio meio, o destino é um só: FADE OUT.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Greve Intelectual



O texto abaixo (assinado por Alberto Carlos Almeida e que reproduzo sem autorização), foi publicado no dia 17 de julho na Folha de São Paulo. Até a presente data nada mudou, o que apenas confirma a indiferença da comunidade "intelectual" brasileira e seus súditos, os alunos e a sociedade em geral. Direito a greve não questiono. Mas greve remunerada? Só no Brasil.

Sem corte de ponto, os doutores pedem mais impostos para que ganhem melhor. Deveriam, em vez disso, usar sua qualificação para obter recursos privados.


Nada é mais caro nos dias de hoje para todos nós contribuintes do que nossos professores universitários funcionários públicos.
Oficialmente, eles entraram em greve no dia 17 de maio. Desde então, eles recebem integralmente, e sem atraso, seus salários.
Trata-se de algo absurdo: uma greve na qual os grevistas são pagos para não trabalhar. Seria cômico se não fosse trágico.

Trata-se da mais longa e abrangente greve remunerada do mundo. Eles querem mais recursos para as universidades. Obviamente, querem aumento salarial, querem que o governo gaste mais com eles. A reivindicação deles poderia também ser colocada do ponto de vista da receita: eles querem que o governo aumente os impostos.

Aumentar impostos com a finalidade de investir na educação básica, de melhorar o sistema de saúde, de ampliar a abrangência do Bolsa Família para diminuir a desigualdade de renda é muito mais legítimo e defensável do que aumentar impostos e ampliar os gastos com professores universitários que em sua grande maioria concluíram o doutorado, algo que os qualifica para obter recursos para a universidade de fontes que não o governo.

Eles são o elo forte da sociedade porque são as pessoas mais qualificadas do ponto de vista da educação formal. Fizeram graduação, mestrado e doutorado e ainda assim querem mais recursos públicos.

O elevado nível educacional de nossos professores é um ativo que poderia facilmente ser convertido em mais recursos para as universidades. É isso que fazem vários departamentos de engenharia, por exemplo, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Além de não fazerem greves, eles se utilizam de sua elevada qualificação técnica e educacional para fecharem contratos com empresas que financiam pesquisas.

Com esses recursos, eles equipam suas universidades, constroem prédios novos, complementam seus salários -enfim, realizam investimentos importantes em seu próprio trabalho sem onerar ainda mais o contribuinte. Eles cultivam, de fato, a identidade de professores universitários, pesquisadores e cientistas.

Por outro lado, os professores grevistas cultivam a identidade de funcionários públicos. É muito conveniente fazer greve sem nenhum tipo de custo, sem ter o ponto cortado ou sem sofrer ameaça de demissão.

Aliás, nada mais maléfico para o ensino e a pesquisa no Brasil do que professores universitários que são funcionários públicos. Aqueles professores que se consideram mais professores universitários do que funcionários públicos tendem a não entrar em greve. Por outro lado, aqueles que se consideram mais funcionários públicos do que professores, pesquisadores ou cientistas tendem a não titubear quando se trata de entrar em greve.

A greve remunerada caminha para o fracasso, pois provavelmente a presidente Dilma e o ministro Mercadante não irão ceder. Não há novidade nisso. Não se trata da primeira greve remunerada de professores funcionários púbicos que fracassará. Infelizmente, não será a última, posto que o governo não decide pelo corte de ponto dos dias não trabalhados.

O fato é que a prioridade do governo é o atendimento das demandas dos pobres que nunca entraram em uma universidade e que, portanto, não fazem ideia do que é um doutorado.

O governo federal não irá ceder para um grupo de privilegiados que, apesar de chorar miséria, pertence à classe A brasileira, compõe o andar de cima de nossa pirâmide social. É preciso direcionar os recursos públicos para quem realmente precisa. Dilma e Mercadante sabem disso.


ALBERTO CARLOS ALMEIDA, 46, doutor em ciência política, é sociólogo e autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto, Mais Consumo" (ambos pela Record)
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Estudo Crítico de Cálculo



Existem muitos livros de cálculo diferencial e integral no mundo. Muitos! Até no Brasil há inúmeros títulos fora de catálogo e muito mais sendo impressos. Eu mesmo já traduzi para o português vários volumes publicados pela Bookman, todos da Coleção Schaum. Mas ainda existe uma absurda lacuna nessa literatura voltada principalmente para alunos de graduação em ciências exatas e tecnológicas. É claro que alunos de economia e ciências biológicas também consomem livros de cálculo. Mas as deficiências de formação nessas áreas são muito piores. Prefiro não explorar este problema, por enquanto.

Como o tema do ensino de cálculo é extraordinariamente extenso, sou obrigado a focar em uns poucos pontos desta fundamental disciplina. Meu objetivo aqui é apontar para algumas das preocupantes lacunas de formação que percebo tanto na literatura especializada disponível em língua portuguesa quanto na prática da sala de aula. 

É bem sabido que os índices de reprovação em disciplinas de cálculo são extremamente elevados, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Mas o curioso é que mesmo entre os poucos aprovados, praticamente nenhum deles é capaz de dizer o que é, afinal, cálculo diferencial e integral. E isso se deve à absoluta falta da prática do senso crítico no estudo de matemática em geral. 

Em uma primeira abordagem informal, poderíamos dizer que cálculo diferencial e integral é o mais usual conjunto de ferramentas matemáticas que permite descrever formalmente o conceito intuitivo de movimento. Já do ponto de vista histórico o cálculo, como praticamente toda disciplina da matemática, foi muito além.  Sabemos que o conceito de derivada pode ser interpretado fisicamente como uma taxa de variação (de posição, massa, velocidade e outros conceitos físicos) em relação ao tempo. Mas também pode ser associada a um gradiente, ou seja, uma variação de alguma quantia física em relação ao espaço. Mas e do ponto de vista matemático? O que é, afinal de contas, o cálculo?

Qualquer tentativa séria de definir matematicamente esta disciplina está fadada ao fracasso. Isso porque existem muitas formulações para o cálculo que não são equivalentes entre si. 

Usualmente se leciona cálculo em nossas graduações seguindo-se uma ementa bem conhecida: conjuntos, funções, limites, derivadas, integrais de Riemann e equações diferenciais. No entanto, existem outras formas de se fazer cálculo. Um exemplo bem conhecido é a análise não standard, na qual derivadas e integrais não são definidas a partir de limites, mas a partir de operações sobre infinitésimos. Além disso, as integrais de Riemann não constituem de forma alguma qualquer palavra final sobre o conceito de integral. Aqueles que estudaram teoria da medida bem sabem que certas funções não integráveis por Riemann são integráveis por Lebesgue. Para aqueles que estudam matemática fuzzy, sabe-se que podem existir funções constantes não contínuas. E, para piorar a situação, existe uma variedade virtualmente infinita de teorias de conjuntos, tanto formais quanto intuitivas. Portanto, para cada teoria de conjuntos que se adota, desenvolve-se um cálculo diferencial e integral em particular. Logo, não existe o cálculo diferencial e integral como disciplina matemática. O que existe é apenas a intenção de se descrever formalmente uma visão intuitiva de dinâmica. O objetivo de se desenvolver linguagens formais para descrever conceitos como os de taxa de variação ou gradiente é viabilizar um caráter epistemológico claro para as ciências reais, com especial ênfase para a física e as engenharias. 

Ou seja, um estudo crítico sobre cálculo deveria alertar os alunos sobre estes fatos. 

Feito isso, concentremo-nos agora no estudo usual de cálculo. Deixarei de lado, por enquanto, a equivocada visão usual sobre conjuntos e funções, os conceitos básicos para o estudo padrão de cálculo. Normalmente professores e alunos são completamente ignorantes sobre os conceitos usuais de conjuntos e funções. Consequentemente não sabem o que são números reais e complexos. Portanto, serei obrigado a fazer de conta que tais assuntos podem ser ignorados (no que se refere aos seus fundamentos) até um certo ponto de tolerância. Isso porque toda graduação está presa a um calendário que deve estar em sintonia com as realidades do mercado de trabalho. Mas, ainda assim, vejamos a definição usual de limite de uma função real (função cujas imagens são números reais). 

Costuma-se dizer que o limite de uma função real f(x), com x tendendo a a, é igual ao número real L se, e somente se, para todo épsilon positivo existe pelo menos um delta positivo tal que para todo x pertencente ao intervalo aberto (a - delta, a + delta) (exceto possivelmente o próprio a) temos que f(x) pertence ao intervalo aberto (L - épsilon, L + épsilon). 

Esta definição foi uma das grandes conquistas da matemática, principalmente por permitir extensões que envolvem o conceito de infinito. No entanto, é desanimador perceber que pouco se compreende a respeito de tal conceito. Tanto é verdade que até hoje se ouve e se lê o patético discurso de que 5 dividido por infinito é zero.

Sabe-se, por exemplo, que o limite necessariamente é único, quando existe. Este é o célebre teorema da unicidade do limite, cuja demonstração é relativamente simples. Um estudo crítico sobre limites deveria levar em conta possíveis alterações na definição de limite e a posterior análise de suas repercussões, algo que não vejo discutido em livro algum de cálculo aqui no Brasil. Digamos que alguém tentasse apresentar definições alternativas para limites de funções reais. Quais seriam as consequências disso?

Cito dois exemplos: 

Definição Alternativa 1: o limite de uma função real f(x), com x tendendo a a, é igual ao número real L se, e somente se, existe épsilon positivo e existe delta positivo tal que para todo x pertencente ao intervalo aberto (a - delta, a + delta) (exceto possivelmente o próprio a) temos que f(x) pertence ao intervalo aberto (L - épsilon, L + épsilon).

Neste caso é possível demonstrar que a unicidade de limite não é teorema. 

Definição Alternativa 2: o limite de uma função real f(x), com x tendendo a a, é igual ao número real L se, e somente se, para todo épsilon positivo e para todo delta positivo temos que para todo x pertencente ao intervalo aberto (a - delta, a + delta) (exceto possivelmente o próprio a) necessariamente f(x) pertence ao intervalo aberto (L - épsilon, L + épsilon). 

Neste caso a unicidade do limite ainda é teorema. Porém apenas funções constantes admitiriam limites. 

Eu poderia apresentar aqui centenas de definições alternativas para limites, todas não equivalentes entre si. Portanto, para cada definição alternativa de limite existe um cálculo diferencial e integral totalmente diferente do usual. Isso porque normalmente se definem derivadas e integrais como casos particulares de limites. E derivadas e integrais são fundamentais para desenvolver equações diferenciais, aquelas ferramentas empregadas para descrever a dinâmica do mundo físico. Então a pergunta natural é a seguinte: por que se adota especificamente a primeira definição apresentada acima? A resposta novamente repousa sobre a intuição.

Os matemáticos já tinham uma visão intuitiva sobre limites. O que se encontrou na definição acima foi uma descrição formal que resgata a intuição do matemático, levando em conta os objetivos que se desejavam alcançar. 

O curioso é que este resgate formal da visão intuitiva apresenta resultados posteriores que desafiam a intuição. Qualquer bom aluno que tenha estudado um semestre de cálculo sabe da existência de funções que descrevem regiões de comprimento infinito e área infinita as quais, após uma rotação em torno de um eixo, assumem volume finito. Isso significa que o resgate da visão intuiva em uma linguagem formal apresenta características perturbadoras. Por isso mesmo existe uma constante batalha em busca por novas formulações que atendam a novas visões intuitivas.

Trocando em miúdos, qualquer estudo crítico de cálculo demanda um profundo compromisso com a intuição. E intuição é um lado do intelecto que ainda se encontra insondável pela razão. 

Não se estuda seriamente cálculo apenas com procedimentos mecanizados que podem ser repetidos por máquinas. O estudo sério de cálculo exige humanidade. Somos, por natureza, mais do que máquinas triviais. 

Para quem quiser estudar seriamente cálculo, aqui vai uma última advertência: do ponto de vista das teorias usuais de definição, nenhuma das fórmulas discutidas acima é, de fato, uma definição para limites. Consegue descobrir o por quê?
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Mais discussões sobre cálculo podem ser encontradas aqui.