segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O mundo está ficando mais estúpido?


James R. Flynn foi pioneiro no estudo da evolução de certos aspectos da inteligência humana em diferentes partes do mundo. O impacto de seu trabalho tem sido tão profundo que há algum tempo se usa o termo "efeito Flynn" para designar o considerável aumento de inteligência da população de países desenvolvidos entre as décadas de 1930 e 1980. Tanto Japão quanto Dinamarca, por exemplo, experimentaram no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial um considerável melhoramento em resultados de testes de inteligência realizados em suas populações. 

No entanto, testes recentes de QI (quociente de inteligência) usados pelo governo dinamarquês para determinar quais homens estão aptos para serviços militares revelam uma queda de um ponto e meio desde 1998. E este fenômeno não ocorre apenas na Dinamarca, segundo a reportagem indicada no link acima, mas também nos Estados Unidos e na Austrália. 

Um artigo recente de Gerald Crabtree (Stanford University) sugere que a perda de inteligência da humanidade é um processo que está ocorrendo há milhares de anos, por conta do processo de socialização. A criação da agricultura e de cidades tornou, com o tempo, cada vez menos necessárias certas habilidades cognitivas para construir abrigos e caçar. É a dependência que a espécie humana tem dela própria que estaria sendo responsável pelo declínio de inteligência. O efeito Flynn, segundo ele, representou um aumento repentino de níveis de inteligência por conta de repentinas mudanças na oferta de melhores condições de saúde, alimentação e educação em inúmeras sociedades. Mas nos últimos dez anos a tendência natural de declínio intelectual está voltando a ser percebida. 

Por que escrevo sobre este tema aqui? Por dois motivos:

1) Por um lado, tenho percebido pessoalmente em sala de aula um declínio não apenas intelectual, mas também de motivação entre alunos. E este declínio tem sido muito marcante especialmente nos últimos dez anos. E, segundo alguns pesquisadores, a inteligência humana atingiu seu ápice cerca de dez anos atrás. É claro que há quem conteste isso. Mas, levando em conta que já existem até mesmo físicos renomados que contestam a necessidade de verificação experimental para validar teorias, fico pensando se os contestadores não estão apenas menos inteligentes. 

2) Dois dias atrás publiquei neste blog uma postagem que bateu vários recordes de visualizações neste blog. É uma postagem sobre a dominante preguiça intelectual que impera nas universidades brasileiras. Recebi algumas dezenas de comentários, mensagens e e-mails sobre esta postagem, que foi responsável por mais de sete mil visualizações em dois dias. Mas o melhor comentário que li até agora veio de um importante matemático que, neste momento, está escrevendo uma resposta ao meu texto para fins de publicação neste blog. Resumidamente, ele afirma que meu texto é superficial. E, de fato, é superficial. Tenho respondido a praticamente todos os comentários veiculados aqui, com o objetivo de qualificar detalhadamente a tese central de que existe muita preguiça e até desonestidade intelectual em nossas universidades. No entanto, há neste blog dezenas de postagens que abordam temas semelhantes e correlatos de forma muito mais aprofundada. Porém, tais postagens não tiveram tanta repercussão. Por quê? Será que é porque o brasileiro também está ficando mais estúpido? Estamos tão confiantes na estrutura social construída ao nosso redor a ponto de simplesmente não nos importarmos mais com o futuro? 

Dias atrás escrevi um texto que eu planejava veicular apenas no primeiro dia de 2015, como mensagem de Ano Novo. Mas agora decidi veicular este texto neste momento, pois o julgo oportuno diante dos últimos eventos ocorridos neste blog. É um texto inspirado em um recente monólogo de um artista muito conhecido da indústria fonográfica. E, enquanto aguardamos as novas postagens para 2015 (convidei muitas pessoas para contribuírem por aqui e que têm de fato algo importante para dizer), peço que o leitor reflita com cuidado sobre o que se segue. Pode parecer piegas, mas é de coração.

Desejo a todos um Feliz Ano Novo. Até 2015.
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Por que você faz o que faz?

Por que você lê esta postagem? A resposta é óbvia, direta e dolorida. Porque você não tem nada melhor para fazer. 

Ler um clássico da literatura? Não. Agora não.

Compreender aquele teorema cuja demonstração ocupa apenas meia página, mas que apresenta uns detalhes realmente intrincados? Não. De que forma esses detalhes ajudarão a entender a vastidão da matemática? Aliás, o que há de melhor na matemática do que esta postagem que você lê? 

Dialogar com quem você ama, para ajudar esta pessoa a lidar com os seus problemas? Não. Você já tem os seus próprios problemas para se preocupar.

Ver um vídeo no YouTube que mostra cambaleantes elefantes bêbados por conta da ingestão de amarula fermentada? Talvez. Talvez seja melhor do que ler um texto que o intima a refletir sobre o que você tem de melhor para fazer. 

Você tem algo melhor para fazer do que navegar no Facebook? Você tem algo melhor para fazer do que ler postagens publicadas em blogs? Você tem algo melhor para fazer do que se sentir pior consigo mesmo ao ler este texto que questiona "você não tem nada melhor para fazer"? Se tivesse algo melhor para fazer, estaria aqui? Afinal, você está aqui porque não tem absolutamente nada melhor para fazer. E isso é você, na plenitude de sua vida, no auge de suas capacidades, no ápice de seus prazeres, no cume de sua curiosidade a respeito de si mesmo e do mundo que o abriga.

Por que Albert Einstein criou a teoria da relatividade? Simples. Porque ele não tinha nada melhor para fazer. E, para o bem da humanidade e até mesmo para o bem do sistema GPS que você usa em seu celular, ainda bem que ele não tinha nada melhor para fazer. Imagine se o melhor que Einstein tivesse para fazer fosse tocar violino. O mundo teria sido temporariamente apenas mais ruidoso.

Por que Beethoven compôs a sua Nona Sinfonia? Por que ele simplesmente não tinha nada melhor para fazer. E por que tantas pessoas ouvem a Nona de Beethoven? Porque graciosamente não têm nada melhor para fazer.

Por que um alcoólatra bebe? Porque ele não tem absolutamente nada melhor para fazer. É o que lhe faz realmente bem! E nada melhor do que bebida alcoólica para entorpecer a mente de quem não quer pensar sobre o que há de melhor para fazer. É por isso que tantas pessoas gostam de elefantes bêbados? É uma identificação pessoal?

Por que escrevi este texto? Simplesmente porque eu não tinha nada, absolutamente nada, melhor para fazer. E você, leitor, entende o que isso significa aqui, neste momento, neste blog? Consegue fazer melhor do que simplesmente ler? Consegue fazer melhor do que julgar a partir de seus próprios parâmetros? Consegue ler entrelinhas? Consegue parar de ler? 

Consegue se sentir melhor em relação a todos os momentos de sua vida, após a leitura deste texto? Consegue se sentir bem consigo mesmo por tudo o que já fez e o que não fez, simplesmente porque não havia nada melhor para fazer?

Por que você vai ignorar este texto após a sua leitura? Porque certamente tem algo muito melhor para fazer. E por que você vai compartilhar esta discussão, para que outros também pensem sobre o que estão fazendo de melhor? Porque você não tem nada melhor para fazer. 

Quer saber quem você realmente é? Então faça um relato diário de suas escolhas, de suas atividades e, após um tempo, leia este relato. 

O que você tem de melhor para fazer é somente aquilo que o beneficia? Ou você pode fazer melhor do que isso? Até onde vai a sua vida? Até o momento de sua morte? Ou ela vai um pouco mais longe? 

Einstein vive. Elvis vive. Beethoven vive. Mas perfis não vivem. Um perfil é apenas uma silhueta, algo que pode ser deletado. Perfis não constroem, não edificam, não inspiram. 

E agora? O que você fará agora? Seja o que for, revelará o que você tem de melhor para fazer. E este é você, independentemente do julgamento de quem quer que seja. Você é o que faz, seja consigo ou com outro, seja por si ou por outros. Você é o que faz de melhor. E fortemente recomendo que preste muita atenção em sua próxima escolha.

sábado, 27 de dezembro de 2014

Artigo na revista Nature expõe grave crise na física teórica


Este mês foi publicado um brilhante artigo na revista britânica Nature que denuncia de forma alarmante o crescente distanciamento entre físicos experimentais e físicos teóricos nos últimos dez anos. Apesar de eu não concordar com uns poucos pontos discutidos pelos autores do artigo (pois vejo que certas noções ingênuas ainda persistem mesmo entre os mais céticos), a leitura é obrigatória para físicos, matemáticos e filósofos. Por isso mesmo decidi traduzir o texto original para o nosso idioma e veicular neste blog. Por conta de formatação usual do blog Matemática e Sociedade, decidi omitir as referências citadas. Quem quiser conferir a versão original, veiculada no último dia 16, ela está disponível aqui.

Importante também observar que o artigo abaixo está em perfeita sintonia com discussões recentemente promovidas neste blog sobre o método científico, sobre um membro da Academia Brasileira de Ciências que defende o Design Inteligente e sobre o físico brasileiro Gabriel Guerrer, que promove uma visão mística sobre física quântica.

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Método Científico: Em Defesa da Integridade da Física
de George Ellis e Joe Silk

Tentativas para isentar teorias especulativas sobre o universo, de verificação experimental, prejudicam a ciência.

Durante este ano, debates entre físicos tiveram uma preocupante reviravolta. Diante de dificuldades para aplicar teorias fundamentais ao universo observado, alguns pesquisadores pediram por uma mudança na maneira como a física teórica seja desenvolvida. Eles começaram a argumentar - explicitamente - que se uma teoria é suficientemente elegante e explanatória, ela não precisa ser testada experimentalmente, algo que rompe com séculos de tradição filosófica no tratamento de conhecimento científico como empírico. Nós discordamos disso. Como argumentou o filósofo da ciência Karl Popper, uma teoria precisa ser falseável para ser científica. 

Entre os líderes que advogam a tese de que elegância basta, estão alguns pesquisadores de teoria das cordas. Como teoria das cordas é supostamente o "único jogo na cidade" capaz de unificar as quatro forças fundamentais, eles acreditam que ela deve conter um grão de verdade, apesar de se sustentar em dimensões espaciais extras que jamais podemos observar. Alguns cosmólogos também estão procurando abandonar a verificação experimental de grandes hipóteses que invocam domínios imperceptíveis, como aqueles que ocorrem no caleidoscópico multiverso (compreendendo uma miríade de universos), a interpretação dos muitos mundos para a realidade quântica (na qual atos de observação são associados a ramos paralelos da realidade) e conceitos pré-Big Bang.

Essas hipóteses não verificáveis são muito diferentes daquelas que se relacionam diretamente com o mundo real e que são testáveis através de observações - como as do modelo padrão em física de partículas e a existência de matéria escura e energia escura. Da maneira como estamos percebendo a situação, a física teórica corre o risco de se tornar uma "terra de ninguém", que perambula entre matemática, física e filosofia, mas que não atende aos critérios de nenhum desses ramos do conhecimento. 

A questão da testabilidade tem assombrado a física por uma década. A teoria das cordas e a teoria do multiverso têm sido criticadas em livros e artigos de divulgação científica, incluindo alguns escritos por um de nós (G.E.). Em março último, Paul Steinhardt publicou neste periódico que a teoria do universo inflacionário não é mais científica, uma vez que se tornou tão flexível a ponto de acomodar qualquer resultado observável. O físico teórico e filósofo Richard Dawid e o cosmólogo Sean Carroll têm combatido essas críticas com uma defesa filosófica para enfraquecer a exigência de testabilidade em fundamentos da física. 

Congratulamos Dawid, Carroll e outros físicos por terem trazido este problema à tona. Mas o passo drástico que eles propõem exige um debate cuidadoso. Essa batalha pelo coração e pela alma da física está ocorrendo em uma época na qual resultados científicos - em tópicos que variam de mudanças climáticas à teoria da evolução - estão sendo questionados por alguns políticos e fundamentalistas religiosos. O potencial dano na confiança pública em ciência e na natureza dos fundamentos da física precisa ser contido a partir de um diálogo mais profundo entre cientistas e filósofos.

Teoria da Cordas

Teoria das cordas é uma elaborada proposta para explicar como minúsculas cordas (objetos unidimensionais) e membranas (extensões de cordas para várias dimensões) existentes em espaços multi-dimensionais sustentam toda a física. Essas dimensões extras são entrelaçadas de maneira tão intensa que são pequenas demais para serem observadas a níveis de energia acessíveis por meio de colisões em qualquer acelerador de partículas concebível no futuro. 

Alguns aspectos da teoria das cordas podem ser testados experimentalmente, em princípio. Por exemplo, um princípio de simetria entre férmions e bósons, central nesta teoria - supersimetria - prevê que cada tipo de partícula admite uma parceira ainda não observada. Tais parceiras não foram detectadas ainda pelo Large Hadron Collider, no CERN, o laboratório europeu de física de partículas localizado próximo de Genebra, Suíça, o que limita o espectro de energias no qual a supersimetria possa existir. Se essas parceiras das partículas já conhecidas continuarem imperceptíveis, então poderemos jamais saber se existem ou não. Os defensores da teoria das cordas poderão sempre afirmar que as massas dessas partículas são maiores do que os níveis de energia sondados.

Dawid argumenta que a veracidade da teoria das cordas pode ser estabelecida através de argumentos filosóficos e probabilísticos sobre o processo de pesquisa. Citando análise Bayesiana, um método estatístico para inferir a probabilidade de que uma explicação seja adequada para um conjunto de fatos, Dawid afirma que confirmação é equivalente ao aumento de probabilidade de que uma teoria seja verdadeira ou viável. No entanto, este aumento de probabilidade pode ser puramente teórico. Como "ninguém propôs uma boa alternativa" e "teorias sem alternativas tinham a tendência de ser viáveis no passado", ele argumenta que a teoria das cordas deveria ser assumida como válida.

Na nossa opinião isso é como mover as traves do gol. No lugar de aumentar a crença em uma teoria com base em evidências observacionais, ele sugere que descobertas teóricas é que devem reforçar a crença. Mas conclusões oriundas da matemática não precisam se aplicar ao mundo real. Experimentos já demonstraram que muitas teorias belas e simples estavam erradas, desde a teoria do estado estacionário em cosmologia até a Grande Teoria Unificada SU(5) de física de partículas, que buscavam unificar as forças nucleares eletrofraca e forte. A ideia de que verdades pré-concebidas sobre o universo podem ser inferidas além de fatos estabelecidos (indutivismo) foi descartada por Popper e outros filósofos do século 20. 

Não podemos assumir a inexistência de teorias alternativas. Pode ser que não as tenhamos encontrado ainda. Pode não haver a necessidade de uma teoria geral de quatro forças fundamentais se a gravidade, um efeito da curvatura do espaço-tempo, difere das forças forte, fraca e eletromagnética que governam partículas. Em suas muitas variantes, a teoria das cordas não é sequer bem definida. Na nossa opinião, a possibilidade de uma teoria unificada é uma nota promissória.

Muitos multiversos

A hipótese do multiverso é motivada por um enigma: por que as constantes da natureza, como a constante de estrutura fina (que caracteriza a intensidade de interações eletromagnéticas entre partículas) e a constante cosmológica (associada com a aceleração da expansão do universo) têm valores que se encontram no pequeno intervalo que permite a existência de vida? A teoria do multiverso estabelece que existem bilhões de universos paralelos não observáveis lá fora, nos quais todos os possíveis valores para essas constantes podem ocorrer. Portanto, em algum lugar existe um universo condizente com vida, como o nosso, apesar disso ser altamente improvável. 

Alguns físicos consideram que a teoria do multiverso não encontra qualquer ideia alternativa para explicar muitas outras coincidências bizarras. O baixo valor da constante cosmológica - conhecido como 10 elevado a 120 vezes menor do que o valor previsto pela teoria quântica de campos - é difícil de explicar, por exemplo. 

Este ano, defendendo as hipóteses do multiverso e da interpretação de muitos mundos, Carroll dipensou o critério de falseabilidade de Popper, alegando que se trata de um "instrumento contundente". Ele apresentou duas outras exigências: uma teoria científica deveria ser "definitiva" e "empírica". Por definitiva, Carroll entende que a teoria diz "algo claro e sem ambiguidade sobre como a realidade funciona". Por empírica ele compreende algo que está de acordo com a definição usual de que uma teoria deve ser julgada como bem sucedida ou fracassada a partir de sua habilidade para explicar dados. 

Ele argumenta que domínios inacessíveis podem ter um "efeito dramático" em nosso quintal cósmico, explicando por que a constante cosmológica é tão pequena na parte que observamos. Mas na teoria do multiverso, essa explicação poderia ser dada independentemente do que astrônomos observam. Todas as possíveis combinações de parâmetros cosmológicos existiriam em algum lugar, e a teoria tem muitas variáveis que podem ser alteradas. Outras teorias, como a gravidade unimodular, uma versão modificada da teoria da relatividade geral de Einstein, também podem explicar por que a constante cosmológica não é enorme.

Algumas pessoas desenvolveram variantes da teoria do multiverso que são suscetíveis a testes. A versão do físico Leonard Susskind pode ser falseada se algum dia for descoberta uma curvatura espacial negativa no universo. Mas tal descoberta não provaria coisa alguma a respeito das outras versões. Fundamentalmente, a hipótese do multiverso se sustenta na teoria das cordas, que ainda é não verificada, e nos mecanismos especulativos para compreender diferentes físicas em universos paralelos. Isso, em nossa opinião, não é robusto e, muito menos, testável.

A interpretação dos muitos mundos para a realidade quântica, proposta pelo físico Hugh Everett, é o multiverso quântico final, onde probabilidades quânticas afetam a realidade macroscópica. De acordo com Everett, cada um dos famosos gatos de Schrödinger, o vivo e o morto, envenenado ou não em sua caixa fechada por ação de decaimentos radioativos aleatórios, é real em seu próprio universo. Cada vez que você faz uma escolha, mesmo que seja tão mundana quanto seguir para a direita ou para a esquerda, um universo alternativo pipoca a partir do vácuo quântico para acomodar a outra ação. 

Bilhões de universos - e de galáxias e de cópias de cada um de nós - se acumulam sem a possibilidade de comunicação entre eles ou de teste sobre suas existências. Mas se uma duplicata de alguém existe em cada multiverso e se há infinitos universos, qual é o verdadeiro "eu" que experimento neste momento? Alguma versão deste "eu" é preferida sobre alguma outra? Como "eu" poderia saber qual é a "verdadeira" natureza da realidade se um "eu" favorece o multiverso e o outro não? 

Em nosso ponto de vista, cosmólogos deveriam acatar a advertência do matemático David Hilbert: apesar de infinidades serem necessárias para completar a matemática, elas não ocorrem em lugar algum do universo físico. 

Passe pelo teste

Nós concordamos com a física teórica Sabine Hossenfelder: ciência pós-empírica é um oximoro. Teorias como mecânica quântica e relatividade se saíram bem porque fizeram previsões que resistiram a testes. Porém, inúmeros exemplos históricos indicam como, na ausência de dados adequados, ideias elegantes e sedutoras conduziram pesquisadores para o caminho errado, desde a teoria geocêntrica de Ptolomeu até a teoria do vórtex do átomo de Lord Kelvin e a visão do universo em estado estacionário perpétuo, devida a Fred Hoyle. 

As consequências da supervalorização do significado de certas teorias são profundas - o método científico está em jogo. Afirmar que uma teoria é tão boa que sua existência dispensa a necessidade de dados e de testes, em nossa opinião, coloca em risco a visão de estudantes e do público sobre como ciência deveria ser feita. E ainda pode abrir portas para pseudocientistas afirmarem que suas ideias atendem a exigências semelhantes. 

O que fazer então? Físicos, filósofos e outros cientistas deveriam insistir em uma nova narrativa para o método científico que possa lidar com o escopo da física moderna. Em nossa perspectiva, a questão se resume a esclarecer o seguinte: qual tipo de evidência observacional ou experimental que pode persuadi-lo a acreditar que a teoria está errada e que deve ser abandonada? Se não existir alguma, não é uma teoria científica.

Tal defesa deve ser feita em termos filosóficos formais. Uma conferência deve ser convocada no próximo ano para dar os primeiros passos. Pessoas de ambos os lados do debate sobre testabilidade devem participar.

Enquanto isso, editores e editoras poderiam destinar trabalho especulativo para outras categorias de pesquisa - como matemática, ao invés de cosmologia - de acordo com o potencial para testabilidade. E o domínio dessas atividades em alguns departamentos e institutos de física poderia ser reavaliado. 

O imprimatur da ciência deveria ser conferido apenas a uma teoria que seja testável. Somente assim poderemos defender a ciência de ataques.

Conquistando respeito acadêmico sem esforço


Digamos que você seja intelectualmente vaidoso, ou seja, uma pessoa que moralmente se alimenta de elogios sobre a sua inteligência. Mas, digamos também que você seja intelectualmente preguiçoso, isto é, uma pessoa sem muita disposição para trabalhar duro e realizar conquistas intelectuais reais e significativas. Diante deste quadro, como conquistar respeito e até admiração de seus pares profissionais, caso você decida seguir uma carreira acadêmica no Brasil? 

Para responder a esta questão encaminho a seguir uma lista de oito sugestões básicas para resolver este aparente paradoxo. É claro que essas recomendações jamais funcionarão para a conquista de respeito e admiração por parte dos genuínos pensadores, aqueles que efetivamente produzem conhecimento relevante e dominam uma visão crítica sobre ciência. Mas a lista de sugestões dadas abaixo funciona para a conquista de respeito e admiração entre os seus semelhantes, principalmente se você souber escolher com bastante cuidado a sua área de atuação profissional. Portanto, aí vai.

Sugestão 1: Publique o máximo que puder em anais de congressos. Na maioria dos casos, o processo de seleção de artigos ou resumos para fins de publicação em anais de congressos científicos é pouco rigoroso. Isso porque resumos pouco dizem. E mesmo aqueles textos um pouco mais extensos que, do ponto de vista editorial, se qualificam como artigos, podem ser recheados de ideias jamais testadas, mas que parecem sensatas à primeira vista. Neste último caso temos textos usualmente qualificados como artigos completos, sem de fato o serem. Como ninguém mesmo terá qualquer interesse em ler esses artigos e resumos, simplesmente por não serem informativos, você estará intelectualmente seguro. A Plataforma Lattes está repleta de casos assim. 

Sugestão 2: Organize ou edite livros. Convide colegas ou amigos para contribuírem com artigos a serem publicados em seu livro. Mas nem pense em publicar através de alguma editora de alcance internacional, a não ser que seja uma daquelas que cobram elevadas taxas dos autores e veiculam absolutamente qualquer coisa em troca de dinheiro. Se não quer ou não pode investir com subornos, procure organizar ou editar seus livros através de editoras de universidades federais, estaduais ou privadas de nosso país. E não se esqueça da importância do título de seu livro. Deve ser algo que dê destaque à sua inteligência, como "A Filosofia do Nada" ou "Desamando os Desarmados". Desta forma seus colegas perceberão que, além de inteligente, você é também espirituoso. Como ninguém lerá estes livros, novamente você estará seguro contra críticas sérias ao seu trabalho. A Plataforma Lattes está repleta de casos assim. 

Sugestão 3: Faça muitos amigos, participando de congressos nacionais e regionais. Se participar de algum congresso internacional realizado no Brasil, jamais fale em outro idioma que não seja o Português. Se assistir a alguma palestra proferida por um renomado cientista, não esqueça de comentar com os seus amigos: "É. Ele é muito bom, mas adora fazer propaganda de si mesmo.", "Não gostei da palestra. O conferencista dá mais destaque a pesquisas atuais do que a conteúdos realmente relevantes.". Ou seja, jamais elogie sem fazer ressalvas. E jamais discuta o mérito do tema da conferência. Faça afirmações vagas, mas impactantes. Sempre dê preferência a comentários de ordem pessoal. E não esqueça de falar com uma postura altiva. Muitos perceberão o quão antenado você está com a vida acadêmica. 

Sugestão 4: Oriente a maior quantia possível de monografias de especialização, dissertações de mestrado e teses de doutorado, convidando para membros de suas bancas somente aqueles que o respeitam e/ou admiram. Aqueles que o admiram são pessoas que certamente não gostam de criar polêmica. Eles aprovarão qualquer coisa que você aprove. Para mostrar aos seus orientados como você é brilhante, mas tolerante, sempre aprove as defesas de especialização, mestrado ou doutorado com a seguinte ressalva: "O candidato está aprovado com a condição de que faça as alterações sugeridas pela banca." Como ninguém lê monografias, dissertações ou teses e como ninguém confere se o candidato fez de fato quaisquer alterações após a defesa, você estará intelectualmente seguro. Ah, sim. Não se esqueça de obrigar seus orientados a aceitarem a inserção de seu nome em todos os artigos que escreverem e publicarem. A Plataforma Lattes está repleta de casos assim.

Sugestão 5: Se você deseja publicar em algum periódico especializado, para fazer volume em seu Currículo Lattes, basta submeter artigos para publicação em revistas editadas e distribuídas por universidades brasileiras. Na maioria dos casos essas revistas aceitam artigos escritos em Português. Além disso, elas não são procuradas por pesquisadores de ponta dos grandes centros de pesquisa espalhados pelo mundo. Eles sequer sabem da existência dessas revistas! Portanto, não há muita competitividade. Isso significa que você não precisa se empenhar de fato no artigo. Não se preocupe com conteúdo ou relevância. O que você escrever ficará apenas entre você e o editor. Talvez um ou dois "especialistas" leiam alguns trechos do que escrever. Nada além disso. A Plataforma Lattes está repleta da casos assim. 

Sugestão 6: Assuma cargos de chefia. Chefes, Diretores, Reitores e Pró-Reitores podem facilmente vender a imagem de tomadores de decisões, aqueles que definem quem recebe verbas e benefícios e quem fica de fora. Reclame da mentalidade política nas universidades, mas sempre seja político. Reclame de governos, mas sempre aceite quaisquer benefícios que possam vir deles. Reclame dos pesquisadores que não se envolvem com questões políticas, alegando que eles têm visão estreita de mundo. Reclame dos professores que se envolvem com questões políticas, alegando que eles se distanciam do ensino e da pesquisa. Mas, mais importante do que tudo, convoque reuniões, muitas reuniões. Reuniões conferem visibilidade. Todos estarão olhando para você. E não se incomode com aqueles que não gostam de você. Invista apenas naqueles que são beneficiados por suas decisões. Estes darão o apoio moral necessário para inflar o seu ego, mesmo diante de críticas alheias. 

Sugestão 7: Somente participe de eventos acadêmicos que emitam certificados, não importando quais sejam. Quanto maior a quantia de certificados, maior o volume de seu Curriculum Vitae. Apresente palestras em sua instituição e exija certificado assinado pelo seu chefe imediato. Obrigue seus alunos a participarem de atividades extra-curriculares e exija de seu chefe imediato um certificado de coordenador de evento de extensão universitária. Se algum colega seu estiver organizando um colóquio ou congresso, peça para trabalhar como mestre de cerimônias e exija um certificado. E cada certificado deve ser declarado em seu Currículo Lattes. 

Sugestão 8: Sempre fale sobre as suas conquistas. Mas faça isso de maneira sutil, comentando casualmente em algum contexto que nada tem a ver com as suas atividades profissionais. Se souber falar, pode facilmente passar a sensação de que a vida acadêmica é parte fundamental de seu ser. Por exemplo, se alguém está falando sobre viagens, diga o seguinte: "Pois é. Anos atrás, participei de um congresso de engenharia de produção em Itatiaia, no Rio de Janeiro. E, cara, como aquele parque nacional é lindo. A janela de meu quarto dava direto para aquela mata atlântica maravilhosa. Você sabia que tem esquilos em Itatiaia?"

Enfim, se você se mantiver ocupado, jamais precisará trabalhar de fato. Após a sua morte, ninguém mais se lembrará de sua remota existência. Mas, em vida, você ainda poderá desfrutar da sensação de que era um profissional socialmente necessário e academicamente engajado. 
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Observação: Acompanhe aqui a repercussão desta postagem em blog da Folha de São Paulo.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Podemos confiar em cientistas? Como diferenciar fatos de teorias?


Cibele Sidney é uma colaboradora deste site, responsável por uma das postagens mais visualizadas aqui desde 2009, ano em que foi criado o blog Matemática e Sociedade. Sua contribuição foi uma denúncia contra o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp). Ela é também a administradora do excelente blog Física Sem Educação.

Recentemente, porém, recebi desta extraordinária professora uma mensagem via Facebook, beirando o desespero. Sua preocupação? Marcos Eberlin. 

Marcos Nogueira Eberlin é Professor Titular do Departamento de Química da Unicamp, Pesquisador Nível 1A do CNPq, Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, Comendador da Ordem do Mérito Científico, autor de centenas de artigos científicos publicados em periódicos internacionais, com milhares de citações na literatura especializada. E é também um defensor do Design Inteligente. 

Não quero desperdiçar o tempo do leitor com detalhes sobre o Design Inteligente. Para os propósitos desta postagem, basta dizer que o Design Inteligente (DI) é uma tentativa de conferir cientificidade ao Criacionismo, em detrimento à Teoria da Evolução das Espécies. Os adeptos do DI defendem que pelo menos certas características do universo e dos seres vivos somente podem ser explicadas pela interferência de uma inteligência, algo que poderíamos eventualmente chamar de Deus. Ironicamente está despertando considerável atenção um recente artigo de Jeremy England no qual se sugere um modelo que descreve a inevitabilidade do surgimento de vida como consequência natural de leis físicas bem conhecidas

Na mensagem que recebi de Cibele Sidney, ela encaminhou um vídeo disponível no YouTube. Neste vídeo há uma palestra de Eberlin sobre o Dilúvio e a Arca de Noé. O vídeo foi postado pelo próprio palestrante e está bloqueado para comentários, algo que evidencia uma tendência pessoal a ignorar críticas. 

Eberlin defende que a história bíblica da Arca de Noé não é um boato (termo extremamente vulgar, neste contexto, porém usado pelo próprio Eberlin!), mas um fato. E, pior, ele afirma que conhece evidências que confirmam este alegado fato. Para justificar, por exemplo, como todos os animais puderam embarcar na Arca de Noé (estou assumindo que o leitor está familiarizado com a Bíblia Sagrada) o palestrante apela para Pangea. Desta forma animais não precisariam cruzar oceanos para alcançar Noé e sua monumental embarcação. 

É sabido que cerca de trezentos milhões de anos atrás havia um único continente em nosso planeta, chamado Pangea. E, segundo Eberlin, foi antes da ruptura de Pangea que Noé embarcou todos os animais da Terra em seu navio. Ou seja, Eberlin usa conceitos científicos quando acha conveniente (como o passado remoto de Pangea), enquanto ignora outras teorias científicas (como a evolução da espécie humana que, trezentos milhões de anos atrás, se reduzia a meros tetrápodes). Vale lembrar que mamíferos somente surgiram na Terra quando Pangea começou a romper, por conta da deriva continental. Isso foi duzentos milhões de anos antes do surgimento dos primeiros hominídeos. 

Procurando mais informações sobre o tema acabei descobrindo que este profundo embaraço provocado por Eberlin não é novidade. Em 2010, por exemplo, o blog da revista Unesp Ciência já publicava postagens que denunciavam seu escandaloso analfabetismo científico.

Mas, novamente, não quero desperdiçar o tempo do leitor com argumentos naturais contra a insana e alarmante irracionalidade e ignorância de um "respeitado" membro da Academia Brasileira de Ciências. O que realmente quero é alertar o leitor para jamais confiar em credenciais acadêmicas quando o assunto é ciência. Afinal, no que depender de autoridade acadêmica, o amalucado Marcos Eberlin conta com vasto material. Mas ele demonstra alguma racionalidade em seus discursos a favor de DI? Não. Simplesmente não.

Eberlin se confunde de maneira primária com conceitos científicos fundamentais e estratégicos, como "fato", "teoria", "probabilidade", entre outros. E ao acompanhar a sua palestra acabei lembrando que muitas pessoas se confundem gravemente com as diferenças entre teorias e fatos. Uma das confusões mais comuns é a seguinte: teorias são contestáveis e fatos são inquestionáveis.

Por que teorias são contestáveis? Eu poderia apresentar ao leitor uma vasta (porém infindável) discussão filosófica para justificar a contestabilidade de teorias científicas. Mas prefiro seguir um atalho que me parece bastante eficaz e convincente. Teorias científicas são concebidas e sustentadas pela mente humana. E como a experiência vem demonstrando ao longo de milhares de anos, humanos podem errar e muito frequentemente o fazem. Portanto, teorias podem ser contestadas justamente por serem criadas por seres humanos. E quem as contesta? Por enquanto, apenas a nossa espécie. Ou seja, assim como é humano errar, também é humano contestar.

Mas e fatos? Fatos podem ser questionados? Para responder a esta questão precisamos primeiramente saber o que é um fato. 

Na filosofia especulativa há inúmeras visões divergentes entre si sobre o que é, de fato, um fato. Por exemplo, na visão funtorial sobre fatos admite-se que a sentença "É um fato que" funciona como um operador que age sobre outras sentenças. No entanto, enquanto alguns filósofos assumem que fatos funtoriais podem ser contingentes (É fato que João está triste) e outros não (É fato que 2 + 2 = 4), grandes nomes da filosofia como Wittgenstein consideram que todo fato funtorial é contingente. Confuso? Então apelemos à matemática.

Entre as teorias formais de fatos, apesar da literatura ser escassa, também existem significativas divergências. Algumas das teorias formais de fatos mais conhecidas foram edificadas por pensadores com Roman Suszko (1968), Bas Van Fraassen (1969) e Edward Zalta (1991). No entanto, essas teorias diferem muito em pelo menos dois aspectos: as linguagens empregadas para fins de formalização (o que compromete a expressabilidade de cada teoria) e o suposto domínio de aplicação (de acordo com os interesses específicos de cada teórico). Portanto, nem mesmo do ponto de vista formal axiomático existe ainda uma visão unificada e suficientemente convincente para qualificar o que, afinal de contas, é um fato. Isso porque a própria noção de "fato" tem um caráter teórico, algo que parece ser inevitável na espécie humana. Afinal, assim como é humano contestar, também é humano teorizar e especular.

Uma rara visão que parece ser comum a todos os filósofos é que o conceito de "fato" está estreitamente ligado ao conceito de "linguagem". Isso porque tanto a filosofia especulativa quanto a filosofia sustentada por métodos formais da lógica-matemática qualificam e classificam fatos no contexto de alguma linguagem, seja natural ou formal. E como linguagens humanas limitam a expressabilidade de teorias ou até mesmo de visões meramente intuitivas, não há evidências de que tão cedo a espécie humana consiga entender o que é um fato. Logo, fatos são questionáveis. 

Quando um cientista defende uma teoria, ele se submete a críticas e revisões. E quando um cientista apresenta fatos, apenas expressa uma visão de aparente senso comum, nada além disso. 

Se uma pessoa pega uma pedra do chão e afirma que é um fato que ela tem uma pedra em sua mão, está apenas expressando linguisticamente uma experiência sensorial que eventualmente pode ser compartilhada com outras pessoas. Mas se ela apertar essa pedra com a própria mão, pode eventualmente perceber que aquele objeto não era de fato uma pedra, mas apenas esterco seco. Neste momento a pedra se esfarela.

Portanto, sempre tome muito cuidado com aqueles que fazem afirmações de forma convicta (por exemplo, "O que digo é um fato!"), especialmente quando demonstram aversão a críticas. Comumente são pessoas não confiáveis. Mas esta não confiabilidade radica principalmente na indisposição para o debate sério. Os cientistas mais confiáveis são aqueles que duvidam até de si mesmos. 

Ciência não é a busca pelo conforto da resposta, mas a insaciável sede pelo mundo das ideias. Se alguém tiver uma ideia melhor, que dê um passo à frente e fale. As comunidades científica e filosófica estão sedentas por ideias. 
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Observação: Acabo de saber que hoje mesmo foi publicada reportagem de Maurício Tuffani, no blog da Folha de São Paulo, sobre Design Inteligente no Brasil. Para acessar basta clicar aqui

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

No que você se transforma em vinte anos?


Não faz parte da política deste blog veicular notícias de mídias populares. Mas esta é fenomenal demais e aparentemente foi ignorada por mídias brasileiras. 

O professor de ensino médio Bruce Ferrer lecionou inglês durante muitos anos no Canadá. A partir de 1994 ele pediu para seus alunos escreverem cartas para eles mesmos, as quais foram guardadas pelo professor até hoje. A promessa feita pelo docente era de enviar estes documentos de história pessoal aos próprios autores vinte anos depois.

Pois bem, cumprindo sua palavra, este ano o professor Ferrer começou a remeter as primeiras cartas. Ele fez extensa pesquisa para localizar o endereço de cada ex-aluno e enviou esses documentos, por correio convencional, um a um. Há ainda mais cinco caixas de cartas a serem enviadas pelos próximos anos. 

Este é um exemplo fenomenal de memória, extremamente valioso, principalmente nos tempos hoje vividos de consumo imediato de informações e de esquecimento sobre o que aconteceu ontem. 

Esta notícia foi amplamente divulgada no Canadá, com repercussão na Alemanha, Reino Unido e Portugal, entre outros países. 

O impacto de tais cartas é evidentemente marcante. Um dos alunos, por exemplo, pergunta ao seu "futuro eu" se ele casou e se cursou medicina desportiva. Portanto, o contato de uma pessoa com ela mesma após duas décadas é uma rara oportunidade de autoconhecimento. 

Se o leitor clicar aqui, terá também acesso a um pequeno documentário sobre esta extraordinária iniciativa do professor Ferrer. É um exemplo que certamente deve ser seguido.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O efeito de elogios sobre o intelecto de crianças


Este blog já existe há algum tempo. E frequentemente tenho insistido sobre a importância da família no processo educacional de jovens e crianças. No entanto, pouco tenho detalhado sobre o tema. Por conta disso, preciso remediar esta falha. Já publiquei quase três anos atrás uma postagem sobre como explicar as usuais críticas ao realismo em mecânica quântica para crianças. E mais recentemente veiculei um texto sobre como explicar a teoria da relatividade especial para crianças. Mas agora o tema é mais abrangente: Como estimular a inteligência desses futuros adultos a partir de elogios.

Para dar suporte às ideias aqui apresentadas, tomo como base um detalhado e demorado estudo publicado em 2013 no prestigiado periódico Child Development

De acordo com a teoria da habilidade incremental, inteligência é algo que pode ser desenvolvido. Não se trata de uma característica inerente e imutável com a qual uma pessoa está destinada a viver para sempre. No entanto, o leitor deve ter muito cuidado com esta visão. Em momento algum se afirma que uma pessoa de inteligência normal possa se tornar um gênio ou um superdotado. Apenas se afirma que inteligência pode ser melhorada com estímulos adequados. E um dos possíveis estímulos é o elogio. Mas como deve ser o elogio, quando se trata de crianças?

Um elogio da forma "Nossa, como você é inteligente!" é extremamente inadequado. Isso porque a criança pode se sentir inútil e indefesa diante de uma futura tarefa difícil. E a tendência é ela desistir da busca por soluções para problemas mais complexos, justamente porque não quer mais errar. Esta tendência foi claramente identificada pelos pesquisadores do artigo acima citado, com efeitos muito negativos a curto e médio prazo. 

No entanto, um elogio da forma "Gostei da maneira como você resolveu este problema" ou "Gostei de ver seu empenho" é um estímulo à motivação. Esta atitude é a mais recomendável para crianças entre um e três anos de idade, apresentando reflexos positivos até cinco anos depois. 

Ou seja, crianças não devem se sentir intelectualmente superiores. O que elas precisam é da motivação para se tornarem cada vez melhores. A referência para a criança, portanto, não é a comparação dela com outras, mas a comparação dela com ela mesma. O elogio deve exercer influência positiva sobre a criatividade da criança para encontrar soluções.

Espero que o leitor também perceba que elogios não podem surgir gratuitamente, sem uma permanente oferta de desafios. Elogio é apenas um dos estímulos. Um problema a ser resolvido já é outro. 

Esta recente descoberta em psicologia cognitiva infantil está em perfeita sintonia com a visão meramente intuitiva de Terence Tao, matemático ganhador da Medalha Fields. Segundo ele, para fazer contribuições relevantes em matemática não há necessidade de ser um gênio. Precisa sim de uma certa inteligência. Mas também precisa trabalhar duro, conhecer bem sua área específica de estudos, conhecer outras áreas de estudos, conversar com outros matemáticos, formular questões e ter muita paciência. O que incrementa inteligência é a capacidade de encarar desafios, mesmo que eles não sejam superados. 

Para finalizar esta postagem, eu gostaria de recomendar um jogo de tabuleiro que conheci durante minha infância e que lamentavelmente não vejo mais entre crianças de hoje. O nome do jogo é Caixa Negra. É um excelente estímulo para crianças de até dez anos de idade desenvolverem intuições sobre realidades não visíveis a olho nu. Caixa Negra é uma brincadeira brilhante que sugere a investigação de mundos invisíveis a partir de seus efeitos sobre o mundo visível. Espero que o leitor aprecie o valor deste jogo tanto quanto eu. 

Teoria da Relatividade Restrita para Crianças


A partir de hoje há um novo marcador neste blog: crianças.

O objetivo é publicar uma série de postagens sobre ciência, destinadas a crianças. E hoje começo com a teoria da relatividade restrita de Einstein. O desafio é este: como explicar a teoria da relatividade restrita para uma criança de seis anos ou mais. Uma vez que este blog atinge um público-alvo de adultos, esta é uma oportunidade para o leitor mesmo explicar aos seus filhos, sobrinhos, netos, vizinhos ou alunos alguns dos conceitos mais importantes da ciência moderna. Pois bem, aqui vai.

O mundo em que vivemos é um planeta, conhecido como Terra. Um planeta é como um gigantesco pedaço de matéria, mais ou menos redondo, que gira ao redor de uma estrela. E a Terra é um planeta que gira ao redor de uma estrela chamada Sol. 

O problema é que o Sol também viaja no espaço sideral, como a Terra. Assim como a Terra se move ao redor do Sol, o Sol se move no espaço sideral, ao redor da galáxia onde vivemos. E os cientistas queriam saber qual era a velocidade do planeta Terra no espaço sideral, uma vez que nossa própria galáxia também deve se mover. 

Imagine um carro se movendo em círculos ao redor de um poste. Quando alguém quer saber a velocidade deste carro, geralmente usa como referência o terreno que o carro percorre ao redor do poste. Isso porque temos a impressão de que tanto o terreno quanto o poste não se movem. Portanto, quando alguém mede a velocidade de um carro, usando um velocímetro, consegue a informação da velocidade em relação ao terreno sobre o qual o carro se movimenta. Mas o planeta Terra não se move por terreno algum. O planeta Terra está solto no espaço. Logo, o Sol não é como o poste, pois ele não está parado em relação a terreno algum. Isso porque não existe qualquer terreno no espaço sideral. Não tem chão.

Então, como medir a velocidade do planeta Terra no espaço sideral? A ideia para responder a esta questão vem da chuva. Isso mesmo, chuva!

Imagine que você está dentro de um carro parado. E imagine que o velocímetro de seu carro está quebrado, o que impede uma leitura precisa sobre velocidade. Se o seu carro começar a se mover, ainda é possível ter uma ideia da velocidade, durante uma chuva, por exemplo. 

Digamos que a chuva está muito forte e com muito vento. E digamos que esta chuva atinge fortemente a parte de trás do carro onde você está.

Agora imagine o carro acelerando. Ele começa a se mover. Se o carro for rápido o bastante, a chuva quase não acerta mais a parte de trás. Isso pode ser conferido olhando pela janela de trás do veículo. Neste caso, você saberá que o carro está mais rápido do que a chuva. 

Pois bem. No espaço sideral não tem chuva. Mas tem luz. Tem luz que vem do Sol e de outras estrelas. Os cientistas então pensaram em medir a velocidade da luz que chega na Terra, em diferentes direções e em diferentes momentos. Desta forma eles poderiam ter uma ideia de qual era a velocidade do planeta Terra no espaço sideral. Isso porque luz é algo como chuva. Mas é uma chuva que não molha, apenas ilumina. 

Foi então que dois cientistas muito importantes, chamados Michelson e Morley, mediram a velocidade da luz vinda de estrelas. E descobriram algo bastante esquisito. Eles descobriram que a luz das estrelas sempre chega exatamente na mesma velocidade em nosso planeta, não importando para qual direção se olhasse. É como se o carro recebesse exatamente a mesma pancada de chuva na parte de trás, não importando a velocidade dele. 

Ou seja, a luz é sim como uma chuva. Mas é uma chuva esquisita. É uma chuva que tem sempre a mesma velocidade, não importando se seu carro se movimenta ou não. Pode olhar para trás, para os lados ou para a frente, a chuva sempre bate no carro exatamente da mesma forma. Portanto, a velocidade da luz é sempre a mesma. Ela é constante.

Como explicar esta velocidade da luz, que nunca muda? A solução é considerar que o tempo passa mais devagar para você, quando está se movendo. Quem teve esta ideia foram dois cientistas mais importantes ainda: Einstein e Lorentz. 

Se o seu tempo passar mais devagar, você terá a sensação de que tudo ao seu redor passa mais rápido. Você fica mais lento, quando tudo ao seu redor fica mais veloz. Ou seja, você não fica com a sensação de que está mais lento. Mas fica com a sensação de que tudo fora do carro está mais rápido. Os cientistas chamam isso de dilatação do tempo. Se a chuva fosse como a luz, à medida em que o carro se move mais rapidamente, seu tempo ficaria mais lento. Portanto, a chuva lá fora pareceria ficar mais rápida. Assim ela conseguiria sempre acertar a parte de trás do carro exatamente de mesma forma, não importando a sua velocidade. 

Se sua mãe estivesse do lado da fora do carro, ela poderia perceber que tudo o que você faz dentro do carro parece estar mais lento. O único problema é que isso acontece somente com luz e não com chuva comum.

Mas a coisa não para por aí. Velocidade não faz apenas o tempo passar mais devagar. Velocidade também deixa mais curtos os objetos que se movem. É o que os cientistas chamam de contração do espaço.

Digamos que dentro do carro em movimento, relativamente à sua mãe, você acende uma lâmpada bem no meio do veículo. A luz emitida por esta lâmpada seguirá várias direções. Uma dessas direções é a parte de trás do veículo. E a outra direção é a parte da frente. Se a lâmpada está bem no meio, ela vai demorar uma fração de segundo para atingir a parte de trás e vai demorar exatamente a mesma fração de segundo para atingir a parte da frente. Mas isso acontecerá só do seu ponto de vista. Afinal, do seu ponto de vista, a distância da lâmpada até a parte de trás do carro é a mesma distância da lâmpada até a parte da frente. 

Mas, do ponto de vista de sua mãe, que está fora do carro, a situação é bem diferente. Para a sua mãe, a luz que segue para a parte de trás do carro, está indo na direção de um parabrisa que se aproxima da luz. Já a luz que segue na direção da frente do veículo, está indo na direção de um parabrisa que se afasta da luz. Desta forma, ambas devem chegar aos respectivos parabrisas em instantes diferentes. É uma situação completamente distinta do ponto de vista de quem está dentro carro. Para que ela possa medir o comprimento do carro, é necessário que ela perceba a parte de trás e a parte da frente simultaneamente, pelo menos de seu ponto de vista. E para que isso aconteça, necessariamente ela deve perceber o carro com comprimento menor do que aquele medido por quem está dentro do veículo. É como se o carro estivesse sendo achatado da frente para trás, à medida em que se movimenta para frente.

Mas, agora, por que a gente não percebe de maneira clara esses fenômenos de dilatação do tempo e contração de espaço? Simplesmente porque a luz tem uma velocidade muito grande, bem maior do que qualquer chuva. Ou seja, para perceber a olho nu esses bizarros fenômenos, seria necessário que observássemos objetos que se movem a velocidades muito próximas da velocidade da luz no vácuo. E não estamos acostumados a situações desse tipo em nosso dia-a-dia. 

Mesmo assim a teoria da relatividade restrita é extremamente útil no dia-a-dia de muita gente. Sistemas de GPS, tão comuns em carros e telefones celulares, contam com programas de computador que aplicam as equações da teoria da relatividade restrita de Einstein e Lorentz para fins de correção de sincronização entre relógios na Terra e relógios de satélites artificiais que orbitam nosso planeta. Se não houvesse essa aplicação da teoria da relatividade restrita, o sistema GPS não seria tão preciso. Na verdade, ele seria praticamente inútil, se você quisesse saber como chegar na padaria ou na nova escola onde foi matriculado.

domingo, 7 de dezembro de 2014

O que há sobre ciência e educação somente neste blog


Pela primeira vez decidi realizar uma campanha paga para divulgar este blog. Estou usando o serviço Facebook para impulsionar três postagens, sendo que esta é a última. Ou seja, desembolso meu próprio dinheiro para divulgar um site que não me beneficia financeiramente. Meu propósito sempre foi o benefício de pessoas e instituições, bem como de nosso país. E os assuntos são ciência e educação, com especial ênfase em matemática e suas relações com diferentes segmentos da sociedade. Por conta disso promovo aqui a primeira propaganda do blog Matemática e Sociedade, na esperança de que muito mais gente tome consciência sobre aspectos fundamentais da ciência e da educação que jamais vejo discutidos em outros fóruns. Então apresento a seguir uma síntese do que este blog já ofereceu de novo em suas 235 postagens que antecedem esta. Aqui vai.

1) É o único blog que conheço que já fez duas parcerias com a revista Scientific American Brasil. Em uma delas foi promovida uma extensa discussão sobre os graves problemas das universidades federais. Em outra foi divulgada a iniciativa da equipe Polyteck, um grupo organizado de estudantes universitários que está mudando a cara da vida acadêmica brasileira.

2) É um blog que conta com textos exclusivos escritos por importantes colaboradores. Apenas para citar uns poucos, Steven Krantz (um dos mais influentes matemáticos da atualidade) discute sobre a estabilidade de emprego em universidades dos Estados Unidos, Newton da Costa (matemático brasileiro mundialmente conhecido na área de lógica) analisa criticamente o perfil do pesquisador científico, José Padilha (diretor dos filmes Tropa de Elite e RoboCop) fala sobre imposturas intelectuais, Bolivar Alves (do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas) apresenta um perturbador depoimento sobre um pesquisador que não gosta de lecionar, Carlos de Brito Pereira (economista da Universidade de São Paulo) avalia com grande profundidade a crise que ocorre na melhor universidade da América Latina, e Yousseff Cherem (professor da UNIFESP) introduz de forma belíssima parte da cultura islâmica. Mas há também neste site espaço para alunos se manifestarem e não apenas profissionais renomados. Ítalo Oliveira (UFPE), por exemplo, faz uma extensa e detalhada crítica sobre os cursos de direito no Brasil, Edson Oliveira da Silva (UFCE) propõe um termo de compromisso para professores de universidades federais e até mesmo um superdotado faz um depoimento de sua vida acadêmica em uma universidade pública.

3) É um blog no qual a maioria dos comentários são respondidos pelo administrador. Além disso, estimula-se aqui o debate, sempre publicando opiniões e visões de pessoas que concordam ou até discordam veementemente de posturas defendidas pelo mantenedor deste site. Os comentários não são moderados* e podem ser veiculados anonimamente. Os únicos textos censurados aqui são aqueles que usam vocabulário chulo. Até mesmo o leitor Rafael Lopes de Sa foi convidado para publicar suas críticas a este blog na forma de postagem. Ou seja, este é um fórum transparente, honesto e responsável.

4) É um blog que divulga conhecimentos fundamentais sobre matemática (bem como outras áreas do conhecimento) e que são ignorados em outras mídias. Você sabe o que é uma definição em matemática? Você sabe por que todo axioma pode ser demonstrado? Você sabe por que muitas definições usuais em matemática estão erradas? Você sabe por que a física clássica permite que planetas tenham órbitas quadradas? Você sabe como a segunda lei de Newton pode ser provada? Você conhece os limites da recursividade em linguagens naturais? Você sabe como explicar teoria da relatividade para uma criança? Você sabe por que blogs têm maior liberdade de expressão do que literatura impressa?

5) Palestras são esquecidas? Não neste blog. Neste link, por exemplo, há uma análise crítica sobre uma escandalosa palestra do economista Claudio de Moura Castro, cuja gravação foi proibida. E aqui o leitor encontra uma transcrição de uma palestra de Newton da Costa sobre a fragilidade de demonstrações em matemática.

6) É um blog que sugere importantes projetos de pesquisa ainda não realizados, em áreas como lógica, educação e até medicina. E é um blog que divulga resultados de pesquisas muitos recentes realizadas por pesquisadores do mundo todo, mas que ainda não são difundidas em português por outras mídias, como o uso de matemática para prever o colapso de sociedades, o emprego de psicologia cognitiva para prever o futuro político de sociedades, as correlações entre opiniões a respeito de ciência e a capacidade de efetivamente fazer ciência, ou até mesmo projetos científicos desenvolvidos pelo próprio criador deste blog, entre muitos outros exemplos.

7) É um blog que apresenta uma lista em construção dos sites que citam postagens deste fórum, bem como uma lista em construção dos grandes nomes da ciência brasileira.

8) É um blog que relata pesquisas de campo, como aquela sobre a pirataria no Brasil, incluindo até mesmo uma entrevista com um criminoso.

9) É um blog que avalia criticamente, sempre com direito a resposta, atividades de empresas suspeitas (seja do ponto de vista educacional ou até mesmo legal) que vendem trabalhos universitários, que promovem uma combinação entre ciência e misticismo, ou que oferecem ensino a distância

10) É um blog que não se compromete nem com a iniciativa privada e nem com órgãos governamentais, denunciando, por exemplo, a mediocridade da produção científica de certos pesquisadores do CNPq, bem como a falta de compromisso de universidades privadas com educação e pesquisa.

11) É um blog que promove interdisciplinaridade, com textos que estabelecem relações entre matemática e música, matemática e artes visuais, matemática e literatura, matemática e linguística, matemática e teoria da cognição, entre outros exemplos. 

Em suma, este é um fórum que promove o livre pensamento enquanto houver liberdade de expressão neste país. E tanto o criador e mantenedor deste fórum quanto seus colaboradores, leitores e comentaristas estão contando com a sua colaboração. A síntese feita na lista acima cobre apenas uma pequena fração do que tem sido promovido por aqui. Afinal, o sonho de todos nós é um Brasil mais justo, melhor educado e com esperança justificada.
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* Entre os dias 13 e 27 de fevereiro de 2015 a moderação de comentários passou a ser necessária, em virtude de um repentino crescimento extraordinário de visualizações. Alguns comentaristas novos apelaram a ataques pessoais e uso de vocabulário inadequado. Como este fórum valoriza a boa conduta social, tais comentários inapropriados não puderam ser tolerados. A partir do dia 28 de fevereiro voltamos a não moderar comentários. Esperamos que essa prática possa permanecer por aqui.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Como o vestibular seleciona os piores alunos


Leciono na Universidade Federal do Paraná (UFPR) há 25 anos. E o que posso dizer sobre o aluno típico da UFPR? É um indivíduo desprovido de senso crítico, iniciativa, ambição e criatividade. Além disso, o aluno típico da UFPR lê muito pouco. Mas, é uma pessoa que adora obedecer. O aluno típico da UFPR é um indivíduo que sempre demonstra grande preocupação com aquilo que o professor quer. É um cãozinho pronto para adestramento. Se o professor diz "pula", ele pula. E fica muito feliz com manifestações de aprovação de seus mestres, mesmo que sejam referentes a atos tolos.

É claro que há exceções. Há aqueles que questionam seus professores e buscam por novas formas de pensar. Mas alunos assim são raríssimos na UFPR. E têm sido cada vez mais raros.

Há muito tempo me preocupo com esta questão. Por que os alunos da UFPR são tão pobres, intelectualmente falando? Será isso reflexo da realidade brasileira como um todo? Talvez. Mas o fato é que o vestibular, uma das etapas de seleção de novos alunos, certamente colabora para a seleção das piores mentes. E as piores mentes são aquelas que assumem que a melhor política educacional é aquela na qual o professor manda e o aluno obedece.

Recentemente visitei uma página do Curso Positivo, uma instituição de ensino destinada a preparar jovens para o ingresso em universidades. Na página em questão há a lista completa das questões de matemática do Vestibular UFPR 2014/2015. Nos próximos parágrafos apresento algumas das questões, acompanhadas de breves discussões no contexto de minhas preocupações com o perfil dos alunos selecionados para a vida universitária.

Questão 55. O motivo de uma pessoa ser destra ou canhota é um dos mistérios da ciência. Acredita-se que 11% dos homens e 9% das mulheres são canhotos. Supondo que 48% da população brasileira é constituída de homens, e que essa crença seja verdadeira, que percentual da população brasileira é constituído de canhotos? 

Bem. Nesta questão falta um ingrediente fundamental em ciência e, em particular, matemática: qualificação de discurso. Qual é o universo de discurso? Esta alegada crença de que 11% dos homens e 9% das mulheres são canhotos se refere a qual população? É a população brasileira ou mundial? Se for a população brasileira, a resposta 9,96% é consistente com o enunciado. Mas o texto não qualifica. Portanto, se o universo de discurso for a população mundial, certamente deveríamos admitir a possibilidade de que 11% dos homens e 9% das mulheres serem canhotos é apenas uma média mundial, podendo apresentar flutuações em diferentes países e em diferentes épocas. Neste caso, não há uma única resposta, como se espera no enunciado. Para muitos, esta crítica pode soar como mero preciosismo (termo muito usual entre aqueles que adoram nivelar todos a um único patamar intelectual). Mas o que esta questão sugere é que respostas únicas e inequivocamente corretas podem ser dadas mesmo diante de enunciados vagos. Ou seja, não se espera aqui qualquer análise crítica. O que se espera é obediência. Se 11% dos homens e 9% das mulheres do planeta Terra são canhotos, então 11% dos homens e 9% das mulheres no Brasil são canhotos. Pois assim falou o professor. 

Questão 56. Qual é o número mínimo de voltas completas que a menor das engrenagens deve realizar para que as quatro flechas fiquem alinhadas da mesma maneira novamente?

Temos aqui o mesmo problema da falta de qualificação de discurso. Mas desta vez ele é bem mais grave. Em primeiro lugar, a compreensão do enunciado depende da visualização de uma imagem que, acredito, retrata as três engrenagens. Pois bem, repito algo que venho insistindo há muito tempo: matemática não se faz a partir de figurinhas. Usando justamente as tais figurinhas, existem várias falácias matemáticas. Uma das mais conhecidas é a "prova" de que todo triângulo é isósceles. Figurinhas podem ser uma ferramenta didática interessante para o desenvolvimento de intuições. Mas certamente não constituem conhecimento matemático. Em segundo lugar, o enunciado não permite inferir se os dentes das engrenagens têm o mesmo tamanho ou se eles se encaixam. Portanto, mais um exemplo de pensamento normativo em detrimento do pensamento crítico.

Questão 59. O ângulo de visão de um motorista diminui conforme aumenta a velocidade de seu veículo. Isso pode representar riscos para o trânsito e os pedestres, pois o condutor deixa de prestar atenção a veículos e pessoas fora desse ângulo conforme aumenta sua velocidade. Suponha que o ângulo de visão A relaciona-se com a velocidade v através da expressão A = kv + b, na qual k e b são constantes. Sabendo que o ângulo de visão a 40 km/h é de 100 graus, e que a 120 km/h fica reduzido a apenas 30 graus, qual o ângulo de visão do motorista à velocidade de 64 km/h?

Este enunciado carrega um vício que é insistente no Brasil, a saber, a absoluta indiferença em relação a justificativas. Sem qualificar o conceito de ângulo de visão, simplesmente apresenta-se uma fórmula desprovida de qualquer justificativa e diz-se: "Apenas aplique a fórmula e você ficará bem." Em várias turmas minhas já tentei estimular os alunos a criarem modelos matemáticos para descrever o mundo real. Em turmas de cálculo eu apresentava ferramentas básicas de derivação e integração de funções reais e pedia para os alunos desenvolverem modelos elementares de dinâmica populacional. E ainda assim os alunos sempre (sim, sempre) insistem em usar regra de três para resolver qualquer problema. Ou seja, todas aquelas ferramentas apresentadas e discutidas em sala são completamente ignoradas. Em uma turma de último período do curso de matemática, pedi para os alunos desenvolverem um modelo matemático para cobrir certos fenômenos linguísticos. E eles não tinham a mais remota ideia de como usar ferramentas matemáticas para descrever qualquer fenômeno do mundo real, fosse qual fosse. Esta questão 59 é um exemplo formidável. Se o professor apresentar a fórmula, basta o aluno saber aplicá-la. Mas a questão realmente importante é: de onde veio esta fórmula? Justificar a origem de uma fórmula matemática para resolver um problema do mundo real é algo que demanda senso crítico, algo realmente importante em matemática. Mas, na UFPR, bem como na maioria das universidades deste país, jamais se espera senso crítico de seus alunos. O que se espera é simplesmente obediência. Trata-se de uma cega obediência ao professor. Como professores também, em sua absoluta maioria, não pensam, temos assim o moto-contínuo da ignorância.

Questão 62. Um retângulo no plano cartesiano possui dois vértices sobre o eixo das abscissas e outros dois vértices sobre a parábola de equação y = 4 - x^2, com y>0. Qual é o perímetro máximo desse retângulo?

Em 25 anos de docência na UFPR jamais conheci um único aluno de primeiro período que soubesse responder no primeiro dia de aula o que é uma parábola. Certamente muitos alunos conseguem apresentar a resposta correta para esta questão. Mas eles sabem o que estão fazendo? Garanto que não. Estão apenas adestrados a seguir procedimentos, nada além disso. Não têm a mais remota ideia do que é livre pensamento. Na verdade a situação é muito mais grave. Em todas as turmas de calouros que lecionei, jamais encontrei qualquer aluno que soubesse sequer a equação de uma reta qualquer no plano cartesiano. Invariavelmente os alunos respondem que a equação de uma reta qualquer no plano cartesiano é y = ax + b. E quando eu pedia para eles justificarem esta resposta, irremediavelmente respondiam "Foi assim que eu aprendi.". E, pior, isso já aconteceu em turma de último período do Curso de Matemática da UFPR. 

Não quero estender esta breve análise para demais questões do vestibular UFPR 2014/2015. Isso porque vou acabar me repetindo. 

Na página do Curso Positivo há enfáticos elogios a essas questões. Chega-se a afirmar que os enunciados são impecáveis. Ou seja, existe uma perfeita sintonia entre UFPR e Positivo. E esta sintonia gira em torno de uma ignorância jamais percebida. Isso porque provas objetivas não permitem a avaliação de senso crítico. E senso crítico é uma virtude extremamente difícil de ser avaliada. Demanda real preparo dos avaliadores, algo que evidentemente não podemos esperar da UFPR e nem do Positivo. 

Uma contradição que vejo nisso tudo é que a UFPR conta com ótimos professores de matemática. São frequentemente profissionais engajados tanto com docência quanto com pesquisa. Mas, quando o assunto é vestibular, a única coisa que vejo é o estímulo à mediocridade. Por quê? É este sistema de avaliações objetivas que encerra a verdadeira armadilha? Se for, por que não acabar de uma vez por todas com este sistema de avaliação? Por que professores têm que ser obedientes à tradição do vestibular? É justamente esta postura da cega obediência que está contaminando o futuro intelectual de nosso país. 

Moral da história. Não existe qualquer conspiração organizada para destruir a educação brasileira. Eu já ouvi muitos discursos repetitivos e impensados que insistem na visão de que educação ruim para o povo garante a perpetuação do poder de uns poucos. Nada disso. O verdadeiro inimigo da educação brasileira é um só: ingenuidade. E a questão realmente importante é esta: como estimular o senso crítico em uma pessoa ingênua?

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Os limites da liberdade de expressão


Nota Importante: Apesar de eu usar um exemplo recente da história política de nossa nação para ilustrar o problema da liberdade de expressão, insisto que o tema desta postagem é muito mais abrangente do que um simples processo eleitoral. Espero que o leitor não prejudique a leitura por conta de preferências pessoais sobre políticas partidárias. Não estou colocando aqui uma visão política partidária, mas apenas fatos extremamente importantes que devem ser conhecidos por todos.

Todas as postagens deste blog contam com um campo de avaliação, no qual leitores decidem se o texto publicado é bom, ruim ou indiferente. E a postagem que teve a pior avaliação até hoje foi aquela que criticava a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de proibir a propaganda de uma matéria de capa da revista Veja. Foram 13 leitores que avaliaram a postagem como ruim e 14 que avaliaram como boa. Ninguém se manifestou como indiferente.

A tese que defendi naquela postagem é que informações não podem ser censuradas, como foi o caso da revista Veja versus TSE. Ou seja, um dos fatores que está em jogo é a liberdade de expressão, bem como o direito à informação. É claro que a informação divulgada pela matéria de capa da revista Veja poderia ser falsa, uma vez que ela se sustentava em um depoimento de uma pessoa detida pela Polícia Federal que denunciava supostas ações criminosas da Presidente Dilma Rousseff, que na época se candidatava à reeleição. No entanto, há mais um fator em jogo que certamente não pode ser ignorado: liberdade de pensamento.

Qual é a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de pensamento?

Liberdade de expressão é o direito de comunicar opiniões e ideias para qualquer pessoa disposta a ouvir ou ler tais opiniões e ideias. Neste sentido o Brasil é um país que permite, nos dias de hoje, certa liberdade de expressão. No entanto, ainda persistem alguns mecanismos naturais e artificiais para coibir essa liberdade. Isso porque a liberdade de expressão carrega em si uma armadilha. É muito difícil sustentá-la onde não há liberdade de pensamento.

Liberdade de pensamento é um direito que uma pessoa dá a si mesma para apoiar, se opor ou analisar criticamente um fato, um ponto de vista ou uma ideia, independentemente da opinião de outras pessoas. Ou seja, enquanto a liberdade de expressão de um indivíduo depende do contexto social onde vive, a liberdade de pensamento depende apenas dele mesmo. E é aí que reside o desagradável e não produtivo fenômeno social que transforma debates em embates. Este fenômeno ocorre em sociedades que contam com liberdade de expressão, mas não com liberdade de pensamento.

Consideremos o problema de ética jornalística. A revista Veja foi ética ao publicar matéria de capa, que claramente prejudicava uma candidata à Presidência da República, dois dias antes das eleições? 

Existe vasta literatura especializada sobre ética jornalística. E um dos mais atuais e relevantes trabalhos que vi sobre o tema está neste artigo de Theodore Glasser (Stanford University) e James Ettema (Northwestern University). O texto foi originalmente publicado no excelente Journalism Studies. De acordo com os autores, o maior problema da ética em jornalismo não é a inabilidade de diferenciar o certo do errado, mas a inabilidade de falar de forma articulada e reflexiva. 

A matéria de capa em questão estava escrita de forma articulada? Sim, sem dúvida. Estava escrita de forma reflexiva? Bem, esta é uma questão realmente difícil de responder. Isso porque uma revista como Veja certamente oferece um minúsculo leque de pontos de vista. Esta é uma limitação inerente a qualquer veículo de comunicação. Portanto, responder se a revista Veja foi ética ao publicar aquela matéria de capa naquele momento de sensibilidade política é extremamente complicado. Não há resposta fácil. Quem responder a esta questão de maneira decisiva com um simples sim ou não, corre o sério risco de estar dominado por emoções e não pela razão. E razão é justamente o instrumento usado para fins de reflexão. Não cabe apenas ao jornalista a responsabilidade da reflexão, mas ao público leitor também.

No entanto, a liberdade de expressão deve existir mesmo quando ainda não existe liberdade de pensamento. Isso porque a liberdade de expressão abre caminho para facilitar a liberdade de pensamento.

Diante de pontos de vista diferenciados, as pessoas têm às suas mãos informações que devem ajudar em suas próprias percepções. Mecanismos artificiais como a censura promovida pelo TSE comprometem a liberdade de expressão e, consequentemente, a liberdade de pensamento de cada um.

O leitor poderia argumentar o seguinte: "Tudo bem, mas a notícia era bombástica e foi divulgada dois dias antes das eleições. Portanto, não havia tempo hábil para reflexão."

Sim, é verdade. Reflexão demanda tempo e dois dias é um intervalo de tempo muito pequeno para uma tomada de decisão tão importante quanto a escolha de um candidato à Presidência da República.

Por isso mesmo jamais poderemos permitir censura de informações, sejam quais forem! Enquanto nação, ainda não estamos acostumados à prática do livre pensamento. Se errarmos em nossas decisões, seja por influência de uma revista semanal ou por influência de propaganda política, que aprendamos com isso. Mas impedir divulgação de informações é uma tentativa de castrar a liberdade de pensamento. E nosso país precisa de liberdade de pensamento.

Além disso é um erro assumir que toda reflexão feita de maneira responsável e bem informada necessariamente garante uma decisão com bons resultados. Em teoria das decisões sabe-se que a melhor decisão é aquela sustentada pela razão e não a que fornece os melhores resultados. Se uma pessoa joga na loteria e ganha um prêmio, ainda tomou a pior decisão. Isso porque jogos de azar não são racionalmente recomendáveis para aqueles que apostam. O apostador está sempre em desvantagem.

Liberdade de pensamento depende de liberdade de expressão, apesar de ser mais fundamental do que a última. 

Se você detesta a Presidente Dilma, coloque-se no lugar dela. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você adora a Presidente Dilma, coloque-se no lugar daqueles que reclamam dela. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você é um matemático, leia clássicos da literatura e conheça outras visões de mundo, conversando com especialistas em literatura. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você é um especialista em literatura, leia textos sobre física e matemática e converse com físicos e matemáticos. Exercite sua liberdade de pensamento! Se você é comunista, converse com pessoas que viveram em países comunistas e que não suportam este regime. Se você é capitalista, converse com aqueles que são socialmente desamparados, esquecidos pelos donos do poder e do dinheiro. Exercite sua liberdade de pensamento!

O exercício da liberdade de pensamento não é uma postura relativista de mundo. É apenas a postura de quem ouve e genuinamente dá o melhor de si para entender mentalidades distintas. E, a partir disso, forma então uma visão de mundo. No entanto, quem é mentalmente livre sempre está aberto a mudanças de ideias e opiniões. 

Sem o empenho na busca da liberdade de pensamento, a liberdade de expressão sempre será sinônimo de caos e continuará sujeita à censura. O emaranhamento entre essas duas formas de liberdade é extremamente intrincado e delicado. 

Aprenda a ouvir! Aprenda a falar! No artigo de Glasser e Ettema, acima citado, os autores defendem que uma postura ética em jornalismo se identifica muito mais com um contínuo processo do que com resultados. Algo semelhante ocorre com o livre pensamento. Uma pessoa mentalmente livre não tem escolha a não ser o reconhecimento de que não existem respostas definitivas nem em ciência e muito menos em política. Mas existe a responsabilidade de todos nós para ouvir bem, falar bem e promover o bem. Então esqueçamos nossas vaidades e comecemos a realmente pensar e agir livremente. Pensar dói. Mas não pensar é se colocar nas mãos do acaso.