sábado, 28 de fevereiro de 2015

Refinando discussões sobre meritocracia - Parte I


Um assunto recorrente neste blog é a questão da meritocracia em universidades públicas, com especial ênfase nas instituições federais de ensino superior (IFES). É claro que discussões sobre este tema jamais podem ser realizadas sem a definição de políticas pedagógicas e científicas claras, algo que não existe (e nem pode existir, por enquanto) nas IFES. Por isso fortemente recomendo ao leitor a comparação entre a discussão que segue abaixo e o texto escrito com exclusividade para este blog pelo matemático Steven Krantz. Esta é a primeira parte de uma sequência de postagens que visam tratar de aspectos específicos do problema da meritocracia no ensino superior em nosso país.

O texto abaixo é de autoria de Fabiano R. de Melo, Professor Associado do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás e Vice-Presidente Regional para o Brasil e Guianas do Primate Specialist Group, Species Survival Comission, IUCN. 

O que Melo coloca em seu excelente texto é um ponto de vista que certamente não pode ser ignorado em discussões responsáveis sobre políticas meritocráticas em universidades públicas, apesar de eu discordar de sua visão sobre órgãos de fomento à pesquisa em nossa nação.

Desejo a todos uma leitura crítica.
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O que é meritocracia nas universidades federais no Brasil?
de Fabiano R. de Melo

Os mecanismos para avaliar o mérito de um professor concursado em uma instituição de ensino superior no Brasil, ainda que em praticamente todas as áreas do conhecimento sejam hoje fortemente dependentes de um sistema baseado em quantidade de artigos produzidos, com uma forte associação ao fator de impacto desses artigos (IF), devem gerar uma mensuração robusta desse mérito. De fato, o uso da produção bibliográfica como critério preponderante constitui um importante indicador de mérito, e ainda que eu concorde plenamente que ele seja a força motriz de qualquer universidade, não posso descartar a inclusão de critérios mais abrangentes na análise final do que cada professor, dentro do seu contexto e realidade de trabalho, consegue obter, para daí sim, considerar o mérito e poder avaliar o resultado obtido entre os pares. 

Portanto, reafirmo e concordo em dizer que produzir bons artigos a partir de ideias e hipóteses, especialmente aqueles de maior impacto (1), é a espinha dorsal dessa mensuração de mérito. Porém, minha intenção aqui é considerar ou reforçar a necessidade de se incluir outras atividades na vida acadêmica de um professor de uma IFES que podem e devem ser incorporados ao processo de avaliação. Entendo que, como bom medidor que é, possuir artigos com alto fator de impacto e delimitar isso como ponto de corte, é justo e bastante confiável, pois mantém sempre a "competição" saudável entre os pares (realidade que vivenciamos hoje pela CAPES, CNPq e FAPs para concessão de bolsas produtividade, obtenção de recursos para projetos etc.). Neste quesito, tenho tentado sobreviver ao processo de enquadramento vigente no país, com publicações de artigos completos em periódicos indexados, livros e capítulos de livros, ainda que de forma regular para a minha grande área e sem vínculo direto com o fator de impacto alcançado. Porém, para entender o discurso que me proponho, é fundamental fazer uma resenha dos meus últimos seis anos e meio como professor universitário.

Pensando apenas em números, desde 2006, consegui publicar 15 artigos completos, 16 capítulos de livros, editei 3 coletâneas (entre livros e anais de congressos), publiquei 97 resumos, entre simples, expandidos e/ou completos, trabalhei em 15 diferentes projetos técnicos envolvendo assessoria/consultoria, revisei pelo menos uma centena de artigos científicos, orientei ou co-orientei 09 estudantes de mestrado e 02 de doutorado, 01 de pós-doutorado, 37 alunos de monografia/iniciação científica (PIBIC ou voluntária), participei de 71 eventos (entre locais, regionais, nacionais e internacionais), organizei diretamente pelo menos 07 grandes eventos ou cursos de capacitação (regionais ou nacionais), participei de pelo menos 42 bancas de defesas (entre graduação e pós-graduação) e pelo menos 05 bancas de concursos públicos. Tive até pouco tempo atrás (nos casos de projetos encerrados) e tenho participação direta em cerca de 30 projetos de pesquisa, entre alguns de extensão, nesse período de 6 anos, incluindo pelo menos 2/3 deles com financiamento de diversas agências regionais, nacionais e internacionais. Isso significa escrever dezenas de propostas (incluindo orçamentárias) para conseguir recursos e depois, escrever mais dezenas de relatórios (técnicos e financeiros) e muitos dias de campo por ano, fora das salas de aula ou de seu ambiente de universidade para se treinar seus alunos e coletar seus dados.

Agora, pensando em outros pontos a serem mensurados e, claro, concursado que sou desde 2006, em pleno período de expansão das universidades e de formatação do que ficou conhecido como REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), tenho lecionado até 14 horas aula/semana/semestre, incluindo graduação e pós-graduação. Isso se deve, basicamente, por falta de quadro técnico adequado (das vagas prometidas do REUNI, muitas não foram concedidas e o acordado seria que cada professor deveria assumir uma carga mínima de entre 8 e 12 horas semanais, ao se preconizar uma média de 18 alunos por professor), ou por desejo próprio (por que não?). Porém, acaba que esse processo nos massifica como professores ao nos tomar um grande tempo em sala de aula. E quando digo "desejo próprio", é porque podemos e devemos gostar de questões políticas que nos cercam, ao participarmos de comissões e diversos cargos administrativos disponíveis. Cargos que, inclusive, já assumi como vice-coordenador de curso de graduação (01 ano) e de pós-graduação (02 anos), além de ter assumido a assessoria de pesquisa e pós-graduação do campus que estou vinculado (04 anos), sendo que, diga-se de passagem, em nenhum caso tive remuneração ou função gratificada. 

Como se não bastasse, participo ativamente de nossas entidades representativas, como sociedades (no meu caso dentro da grande área de Biodiversidade). Assumi a presidência da Sociedade Brasileira de Primatologia no biênio 2005-2007, desde então colaboro revezando entre diretoria e conselho. Sou sócio ativo da Sociedade Brasileira de Mastozoologia e participei por 02 anos do Fórum de Sociedades afins à Zoologia. Desde 2001, colaboro com pelo menos 03 Organizações Não-Governamentais, onde exerço papel ininterrupto na diretoria de uma delas e divido a coordenação, em nível nacional, de um grupo de especialistas em primatologia desde 2010. Tenho participado sistematicamente de reuniões técnicas promovidas pelos distintos órgãos governamentais no âmbito do Ministério do Meio Ambiente – MMA (IBAMA e ICMBio), seja para discutirmos sobre listas de espécies da fauna ameaçadas de extinção, ou para propor a criação de novas Unidades de Conservação (UCs), ou ainda, planejar ações sistematizadas de manejo de espécies ameaçadas. Isso representa dezenas de dias fora de meu ambiente de trabalho e algumas milhares de horas em reuniões longas e, felizmente, muito produtivas. Como mencionado acima, já auxiliei na organização de eventos paralelos (extra-IFES), seja coordenando o evento em si ou abrigando simpósios, palestras ou mesas-redondas, nestes casos, dentro dos congressos nacionais ou regionais ou ainda, coordenando cursos de capacitação de alunos para uma determinada área do conhecimento. Já contribui de forma expressiva na organização de atividades com as secretarias municipais ou estaduais de meio ambiente, auxiliando programas de fiscalização, até mesmo em âmbito federal (IBAMA), estadual (secretárias de meio ambiente dos estados que tenho colaborado, como Goiás e Minas Gerais) ou local (polícia ambiental de cidades onde trabalhei), emitindo dezenas de laudos técnicos, participando de ações de combate e fiscalização in loco por dezenas de vezes.

Enfim, isso só para lembrar do que eu, como professor de uma IFES, consigo fazer. Entendo que meu contrato de trabalho não prevê tudo isso, mas como cidadão responsável, sinto-me bastante orgulhoso de conseguir realizar esse leque de atividades. Provocado recentemente (2), de forma extremamente lúcida e objetiva, senti-me impelido a fazer este meu apontamento, indagando: o que é meritocracia nas universidades federais no Brasil? 

1- Seria publicar na Nature ou na Science (revistas de topo para qualquer cientista, principalmente, dentro das áreas de Exatas e Biológicas) e ganhar uma cátedra vitalícia ou um prêmio Nobel?

2- Ou, tentar fazer isso de forma mais criteriosa? Neste caso, claro, respeitando o ponto de corte de publicações, mas mesclando ao ranquear, de forma direta, com uma produção bibliográfica e técnica mais difusa, porém, diretamente alinhada com outras questões mais prementes da sociedade que nos cerca.

Entendo que a posição 2, por se tratar de uma posição mais complexa, fatalmente será discutida, debatida e melhorada. Mas como ator e multiplicador que sou, ao atuar em diversas frentes de batalha (representando a minha IFES), especialmente quando considero que auxilio de forma substancial e direta na formação de alunos como cidadãos conscientes, ao aproximar a universidade do grande público que a sustenta (pagando onerosos impostos), que é a nossa sociedade, não tenho dúvida que devemos repensar nossos caminhos.

Até porque entendo que, fazendo isso, estou próximo dos problemas da vida real, do cotidiano e, mesmo que isso não me leve a um artigo de excelência, pelo menos garante um dos pilares da nossa universidade, que é a pluralidade de funções, pensamentos e discussões.

Não quero levar aqui a uma discussão simplista (apesar do tema ser bastante relevante), de que estaria promovendo a Slow Science (3,4), até porque considero minha vida acadêmica extremamente agitada e em nada aproximo-me dessa filosofia. Entendo e considero importante mantermos um ritmo acelerado de publicações (5), em todas as áreas do conhecimento, para aprofundarmos nosso conhecimento, gerar ciência de qualidade e elevar o status quo do Brasil com uma alta competitividade de produção. Até porque, infelizmente, o Brasil tem produzido uma quantidade maior de artigos, mas cada vez com menor fator de impacto (1). O que não é um privilégio nosso, quando percebemos que essa esfera de discussão está tomando dimensões globalizadas (3,4). 

Enfim, fica minha análise um pouco mais aprofundada, do que entendo por meritocracia institucional, de forma que possamos ser, pelo menos, mais cuidadosos e criteriosos para avançar em uma discussão tão importante. Discussão essa que pode não só envolver, por exemplo, política institucional, como estabilidade do cargo do servidor público nas IFES, quanto questões bem mais amplas, complexas e sérias, como o avanço da ciência. Até porque temos uma imensa responsabilidade em auxiliar a nossa sociedade em se deslocar pensando num futuro melhor, ao compreender e conhecer melhor o mundo em que vivemos, sabendo e utilizando de forma sempre mais coerente esse conhecimento e, em última instância, ampliando a qualidade de vida de todos nós. 

Lembrando que o mérito mensurado não é só meu, mas incluiu, nesse tempo, pelo menos 90 colaboradores diretos e indiretos, entre parceiros e colegas de trabalho institucionais, estudantes, pesquisadores etc. Afinal de contas, estamos falando de UNIVERSIDADE, ou será que eu fiz o concurso errado?

(1) Wainer, J. 2012. A crescente irrelevância da ciência brasileira? JC, e-mail 4577, de 05 de Setembro de 2012. Jornal da Ciência – SBPC. 

(2) Sant’Anna, A. 2013. Ciência e Educação (de qualidade) são a Base da Esperança. Scientific American do Brasil 129.

(3) Fischer, J., Ritchie, E. R. & Hanspach, J. 2012. Academia’s obsession with quantity. Trends in Ecology and Evolution 27 (9): 473-472.

(4) Lutz, J. F. 2012. Slow Science. Nature Chemistry 4: 588-589.

(5) Loyola, R. D., Diniz-Filho, J. A. F. & Bini, L. M. 2012. Obsession with quantity: a view from the south. Trends in Ecology and Evolution 27 (11): 585.

Filosofia para crianças... no Brasil


Semanas atrás publiquei neste blog uma postagem sobre estudos recentes do ato de filosofar entre crianças. Há, claro, quem considera que crianças são incapazes de filosofar, confundindo de maneira dogmática a filosofia promovida por experientes profissionais com os primeiros passos para o ingresso no mundo da especulação filosófica. Se crianças não são intelectualmente maduras o bastante para compreender os axiomas de Peano para a aritmética, isso não deve impedi-las de aprender noções intuitivas sobre como contar e somar números naturais. Analogamente, se crianças não são maduras o bastante para discutir sobre modalidades no estoicismo, isso não deve impedi-las de especular sobre aquilo que elas julgam ser possível ou não no mundo em que vivem.

Motivado pela postagem acima citada, Gilson Maicá escreveu o excelente texto que segue abaixo, no qual aborda experiências pessoais e profissionais sobre filosofia no ensino básico, bem como uma visão histórica e pedagógica sobre o desenvolvimento e o ensino de filosofia. 

Maicá é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina e professor de escola pública no Paraná. 

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Filosofia e ensino de filosofia: uma perspectiva terapêutica
contra dogmatismos ingênuos
de Gilson Maicá

A nossa educação é uma barbaridade. No Brasil, o aluno que consegue chegar ao fim do curso médio ou superior deve ser considerado um herói, visto que tudo concorre contra ele. Falta infraestrutura, os professores são despreparados e o modelo pedagógico, com raríssimas exceções, privilegia a decoreba em detrimento da reflexão” 

Newton da Costa


É comum que alunos perguntem ao professor de Filosofia, quando do primeiro contato com a disciplina, sobre o que é a Filosofia ou do que trata e, pior ainda, sobre sua utilidade. Isso é usual mesmo na graduação! Naturalmente, este tipo de questão pressupõe que eles sabem, por exemplo, o que é a Matemática, a Ciência ou a Arte e qual sua utilidade. A resposta mais honesta, e que tenho dado ao longo dos anos, é que não é possível dar uma resposta sensata a estas e muitas outras questões relacionadas à Filosofia. De fato, costumo dizer que não sei o que é Filosofia. O máximo que um professor de Filosofia, razoavelmente preparado, pode fazer é uma caracterização da Filosofia que, ao final, parecerá muito mais uma caricatura do que propriamente um retrato. Costumo, em especial na graduação, distinguir duas posturas que acredito que representem de alguma maneira dois modos de encarar a Filosofia e sua função no quadro geral do saber: 

(1) A primeira, uma postura que chamo de perspectiva socrática. De acordo com este ponto de vista, que tem implicações significativas sobre a didática desta disciplina, a Filosofia não tem por finalidade produzir qualquer tipo de conhecimento, não cabe ao filósofo teorizar nem sobre os fenômenos naturais, nem sobre os fenômenos humanos. O papel da Filosofia consiste numa espécie de atividade terapêutica contra o engessamento da consciência em dogmatismos, ou a pretensão de um saber definitivo. A Filosofia, neste sentido, se confunde mesmo com a análise crítica de conceitos, das crenças e pressupostos teóricos. 

(2) A segunda postura, que chamo de perspectiva platônico-aristotélica, admite que cabe à Filosofia teorizar e produzir conhecimentos. Mas sobre o que? Não sobre a natureza ou a cultura e a sociedade, já que isso é papel das Ciências especiais. É quase certo que, de início, a Filosofia envolvia em certa acepção toda uma gama de saberes; mas foi se esvaziando de seu conteúdo com o nascimento da Ciência moderna. Para alguns pensadores do início do século XX, a Filosofia podia parecer uma floresta muito fértil que se transformou no mais árido dos desertos. Mas ainda resta alguma coisa à Filosofia, em especial no que diz respeito à teoria do conhecimento, em particular a Teoria da Ciência (Epistemologia), a Metafísica e a Ética. De qualquer forma, vale notar que nestas áreas em que a Filosofia ainda teoriza, não o faz de modo significativo sem as contribuições da Ciência. Não me parece produtivo em nossos dias fazer, por exemplo, Metafísica sem levar em conta os desenvolvimentos da Física moderna, ou fazer Filosofia da Lógica sem ter conhecimentos muito refinados em certas áreas da Matemática. A teoria do conhecimento não está imune às descobertas das neurociências. O problema é que muitos filósofos, em especial no Brasil, não estão preocupados com as contribuições da Ciência, ou simplesmente as desconhecem, e acabam se limitando à História da Filosofia e à exegese de autores do passado, o que tem profundas implicações sobre o ensino de Filosofia. No último congresso da ANPOF, que tive a oportunidade de participar, pelo menos 80% das comunicações eram de caráter exegético.

Seria então possível, de modo sensato e significativo, abordar questões filosóficas, ou mesmo teorias filosóficas, com crianças do ensino básico? Nossa resposta à questão é afirmativa, a despeito das gigantescas dificuldades que envolve tal empreitada, não apenas para o Estado, mas sobretudo para o professor de Filosofia.

Uma boa introdução à Filosofia, pelo menos de nosso ponto de vista, não começa explicando o que é a Filosofia, do que trata, sua finalidade, ou ainda, apresentando um conjunto de teorias filosóficas, por vezes ultrapassadas, sobre qualquer tema filosófico, como ocorre usualmente em enfadonhos manuais desta disciplina. Particularmente no ensino básico, é muito mais produtivo partir de algumas questões fundamentais, por exemplo, aquelas ligadas à Epistemologia, à Metafísica, ou à Ética, não apresentando respostas, mas incitando os alunos a buscarem suas próprias respostas, que só num segundo momento podem ser confrontadas com a tradição filosófica e científica. Por exemplo, como podemos saber algo? Seria lícito mentir? Existem princípios universalmente válidos de como devemos agir? O que há (ou existe)? Números existem? O que as palavras representam? É comum que crianças e adolescentes já cheguem nas escolas imbuídos de uma série de crenças e preconceitos. E cabe à Filosofia, como referencial do pensamento crítico, “jogar a serpente no paraíso” destes estudantes. Sustentamos que uma filosofia que não cause desassossego, não é efetivamente filosofia! Não se trata, contudo, de apenas levantar questões, mas de promover uma busca dialética de soluções e fomentar o embate de ideias. Talvez este seja o grande desafio da Filosofia no ensino fundamental.

Gostaria de concluir estas notas apresentando três casos em que questões filosóficas foram propostas para adolescentes (e crianças). Nenhum fictício!

Caso 01: Este primeiro caso foi-me relatado pelo Professor Newton da Costa, provavelmente um dos mais renomados filósofos brasileiros da atualidade, muito citado neste blog. Segundo da Costa, quando jovem, seu tio e professor de filosofia Milton Carneiro, o chamou e disse que iria lhe ensinar a filosofar (a rigor não se pode ensinar Filosofia). Então, indagou ao jovem Newton se ele podia provar sua própria existência. Newton acreditava que sua própria existência era um fato irretorquível, porém, depois da conversa com seu tio percebeu, segundo ele, que a prova disso não era uma tarefa tão fácil. De acordo com o próprio Newton, as conversas “filosóficas” com seu tio o marcaram profundamente. Newton da Costa tinha por volta de 15 anos quando recebeu de seu tio um exemplar, em francês, do Discurso do Método, livro que, segundo ele, guarda até hoje. Esta é uma daquelas questões que não costumo deixar de lado em minhas aulas de Filosofia. Uma espécie de desafio cartesiano!

Caso 02: Há alguns anos dei início a um curso de Filosofia para os alunos do 6º ano com as seguintes questões: (1) o mundo realmente existe quando não o estamos observando? Será que quando ninguém está olhando, uma árvore no meio da Floresta Amazônica, realmente existe? (2) Quando é que podemos dizer que sabemos alguma coisa, e para que serve o saber? Essas duas questões renderam três meses de aulas. Ao final do período pedi que os alunos produzissem algum texto sobre o tema. A produção de alguns alunos foi realmente recompensadora. Naturalmente estes são problemas da filosofia ligados ao realismo e antirrealismo, à epistemologia e à Filosofia da Ciência, que podem ser discutidos, dentro de certos limites, até mesmo por alunos que estão no início da vida escolar. Uma aluna em particular me surpreendeu com um texto, em que argumentava por que Deus não poderia existir, embora, não tenha tratado diretamente nas aulas da questão da existência ou não de Deus.

Caso 03: Recentemente eu estava sozinho em casa, quando meu sobrinho entrou na porta e perguntou: tem alguém aí? Respondi imediatamente: não, não tem ninguém aqui! Então ele gritou lá da sala: mas como estou ouvindo sua voz? Então eu disse que era apenas uma gravação programada para responder a qualquer pergunta. Na dúvida ele veio até a cozinha para confirmar (crianças não têm as certezas de um adulto!), e me disse: mas eu agora estou vendo você! Então respondi que não, que ele não estava vendo o tio dele, mas um clone que fazia o almoço enquanto o verdadeiro tio Gilson trabalhava, idêntico em tudo ao tio Gilson. Como ele poderia saber que eu não era de fato um clone, perguntei? Então me respondeu que não poderia saber, pois eu era igualzinho ao tio. Em seguida, com um sorriso me disse que eu era o tio dele, pois não tinha nada de diferente entre o clone do tio e o próprio tio Gilson. Foi, enfim, uma conversa de alguns minutos sobre as noções de identidade e indiscernibilidade com um garoto de quatro anos e meio. Ele saiu correndo e, depois de alguns minutos, voltou me dizendo que ele não era o Henrique, mas o clone de meu sobrinho. Então me perguntou como eu poderia saber se ele era ou não meu sobrinho. Provavelmente ele esperava de minha parte uma resposta sobre o problema anteriormente discutido. Então, lhe disse que não poderia saber se ele era ou não o Henrique, que não tinha uma resposta definitiva sobre o assunto, mas que ele poderia pensar no caso. O problema da identidade é um dos temas recorrentes da Filosofia que procuro abordar em minhas aulas no fundamental.

Estes e outros casos semelhantes deveriam fazer parte do cotidiano escolar, ou seja, não só o professor de filosofia deve promover a dúvida e a reflexão, fazendo com que os alunos pensem por si mesmos. 

Para concluir, certa vez comentei em sala, logo após uma aula de matemática, que poderia provar aos alunos que nem sempre 1+1=2, isto é, que poderíamos ter uma matemática, embora estranha e muito diferente, perfeitamente consequente em si mesma. A aula foi acalorada, pois estava pondo em xeque uma “certeza indubitável”. No intervalo, meu colega e amigo, o professor de matemática, me disse que eu queria confundir os alunos e destruir o que ele e outros colegas estavam pretendendo ensinar. Respondi simplesmente que sim!

Ah! Não posso deixar de confessar que, por vezes, costumo subornar meus alunos com um pirulito!

Ciência, Tecnologia e Inovação na UFPR


Mecânica quântica é uma teoria física que antecipa fenômenos bizarros, pelo menos do ponto de vista de intuições comuns à maioria das pessoas e sustentadas por experiências pessoais do cotidiano. Entre esses fenômenos há fótons que aparentemente seguem dois caminhos ao mesmo tempo, gatos teóricos que estão simultaneamente vivos e mortos e partículas que parecem interagir entre si, desrespeitando noções usuais de causalidade. No entanto, sem mecânica quântica não haveria o transistor e, consequentemente, não existiria o computador pessoal. Também não existiria o laser e, consequentemente, não haveria a tecnologia Blu-Ray. Para detalhes sobre os inúmeros avanços tecnológicos e inovações consequentes de aplicações da mecânica quântica, recomendo o excelente livro de divulgação científica The Amazing Story of Quantum Mechanics, de James Kakalios. 

Outras teorias científicas básicas deram origem a significativos avanços tecnológicos que beneficiam sociedades inteiras. E o estudo deste ramo da sociologia é de grande interesse no mundo de hoje. 

Sem ciência, não há tecnologia. E sem tecnologia, não há inovação. Porém, nos dias de hoje as relações entre ciência, tecnologia e inovação são extremamente complexas. Há inúmeros exemplos de avanços científicos consequentes do uso de inovações tecnológicas. Apenas para citar um exemplo, lembro aqui do recente caso do emprego de vídeos do YouTube para avaliação de desempenho de um software que aprende a reconhecer imagens sem intervenção humana. Essa investigação tem viabilizado novas visões sobre pesquisas básicas em inteligência artificial. Portanto, as relações entre ciência, tecnologia e inovação formam hoje uma rede social de grande impacto para a humanidade. 

E de que forma uma instituição brasileira e pública como a Universidade Federal do Paraná (UFPR) se integra neste ambiente mundial de ciência, tecnologia e inovação? 

De acordo com o Jornal Comunicação, a UFPR obteve sua primeira patente científica apenas em 2013. Isso aconteceu apesar de a Lei de Inovação Tecnológica ter sido instituída em 2004 pelo Governo Federal, com o propósito de estimular o patenteamento universitário em nosso país. Um dos grandes entraves no processo de patenteamento, que pode envolver universidades, institutos tecnológicos e empresas, é a burocracia. O tempo de espera para a decisão final pode demorar até dez anos. Outro problema, mais grave ainda, é a falta de sintonia de nossos professores universitários com realidades externas ao microcosmo acadêmico brasileiro.

Neste meio tempo o Brasil fica obviamente para trás dos países com tradição científica e tecnológica. 

Uso aqui o exemplo da UFPR para ilustrar o problema da interface entre ciência, tecnologia e inovação por dois motivos: em primeiro lugar, sou professor de matemática na UFPR e, em segundo, a UFPR está entre as universidades brasileiras que se destacam em termos de número de depósitos de patentes. Ou seja, nosso país definitivamente não faz parte da rede social mundial que impulsiona inovações. 

Em função do quadro exposto acima, convidei o professor Alexandre Moraes para conceder uma entrevista ao blog Matemática e Sociedade. Moraes é Coordenador de Propriedade Intelectual da Agência de Inovação da UFPR. A entrevista foi feita por intermédio de Franciele Klosowski, Secretária Executiva da Agência. Lamentavelmente as respostas de Moraes foram sucintas demais. Mesmo assim elas revelam a dura realidade de que professores da UFPR praticamente desconhecem o mundo no qual aquela instituição está imersa. E, além disso, empresários também carecem de visão inovadora. O Brasil é um arquipélago social, no qual professores universitários têm pouco contato com realidades extremamente importantes que existem além dos muros das instituições onde trabalham e empresários ignoram o considerável impacto sócio-econômico do empreendedorismo inovador.

Segue abaixo a lista de perguntas do blog Matemática e Sociedade (MeS) e as respectivas respostas de Alexandre Moraes (AM):

MeS: Qual é o perfil daqueles que procuram a Agência de Inovação da UFPR? E qual é o perfil daqueles que têm real potencial para serem beneficiados por esta agência?

AM: Professores, alunos, equipes de laboratório, grupos de pesquisa que realizam pesquisa aplicada e vinculados da UFPR com perfil empreendedor com interesse em incubação de empresas.

MeS: Quando foi criada a Agência de Inovação da UFPR e como tem sido a sua evolução até o presente momento?

AM: Criada em 2008, apresenta um processo de evolução nos anos seguintes, principalmente após o ano de 2011.

MeS: Quais foram as principais vitórias e os principais fracassos da Agência de Inovação da UFPR? 

AM: As principais vitórias foram o aumento do número de pedidos de patente, contratos de transferência de tecnologia e empresas incubadas. Destacamos também a melhoria dos processos internos e a participação da UFPR no sistema de inovação do Paraná, por meio de diversas ações em conjunto com outras instituições.
A principal derrota foi não conseguir, até o presente momento, a melhoria das condições de trabalho planejadas e a insuficiência de elementos na equipe para o desenvolvimento pleno da Agência de Inovação UFPR. 

MeS: Existe algum acompanhamento do progresso das empresas incubadas? Como se faz este acompanhamento?

AM: As empresas incubadas são acompanhadas por meio de reuniões periódicas entre o Coordenador de Empreendedorismo e Incubação de Empresas nas quais discutem-se os avanços e dificuldades para o desenvolvimento das empresas. Além disso, há também, o acompanhamento por relatórios semestrais que os gestores das incubadas encaminham à Coordenação.

MeS: Quais são os principais obstáculos na criação de parcerias entre a UFPR e empresas da iniciativa privada?

AM: Acredito que o principal obstáculo seja a falta de conhecimento por parte dos envolvidos. A burocracia existe e é essencial para a legitimação do processo, principalmente quando uma das partes é uma instituição pública. A falta de conhecimento sobre o processo administrativo por parte dos pesquisadores e empresas ocasiona atrasos por erros cometidos durante as tramitações nas unidades competentes. Esses erros e atrasos fragilizam a relação. São exemplos da falta de conhecimento: falta de documentos, informações não objetivas e esclarecimentos não prestados, falta de entendimento jurídico das regras da administração pública por parte do corpo jurídico das empresas, falta de conhecimento do processo administrativo por parte do pesquisador responsável pela montagem do processo.

Deus e a lógica do CNPq


Está agendado para o período de 1.o a 5 de abril deste ano o Primeiro Congresso Mundial Sobre Lógica e Religião, organizado por Jean-Yves Béziau, Itala D'Ottaviano e pela colaboradora do blog Matemática e Sociedade Maria Espindola, entre outros. A proposta é reunir cerca de duzentas pessoas de diferentes partes do mundo para discutir sobre as relações entre lógica e religião. Entre os conferencistas há especialistas em cristianismo, islamismo, hinduísmo, judaísmo, budismo e zoroastrismo, além de lógicos, matemáticos e filósofos. O comitê científico conta com nomes importantes do Brasil, Noruega, Estados Unidos, Emirados Árabes Unidos, Canadá, França, Vaticano, Rússia e Holanda, incluindo o ganhador da Medalha Fields Laurent Lafforgue

Como este evento deverá ser realizado em nosso país (terra que o lógico francês Béziau adotou para seguir sua brilhante carreira), foi solicitado apoio financeiro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). No entanto, o CNPq negou de forma arbitrária e sem transparência o pedido de apoio

Logo, escrevo esta postagem para solicitar a todos os interessados ampla divulgação desta postagem e desde link

Órgãos de suporte acadêmico como o CNPq têm demonstrado em várias ocasiões ranços políticos extremamente prejudiciais para o desenvolvimento de ciência e filosofia em nosso país. Não podemos mais permitir que o desenvolvimento científico e filosófico brasileiro seja dominado por burocratas sem sintonia com a realidade acadêmica mundial. Chega de isolamento!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Como seguir uma carreira de pesquisador


Este texto é destinado principalmente aos jovens que querem iniciar carreira científica.

Se minha memória não falha, certa vez alguém perguntou a Bertrand Russell o seguinte: "O que é necessário para uma pessoa se tornar um Bertrand Russell?". Este grande pensador do século 20 teria respondido que bastava nascer rico e lorde. 

De fato Russell veio de uma família aristocrática inglesa. Foi também um conde. Mas, mais importante, publicou obras perenes sobre política, filosofia, educação, matemática, religião e até lógica. Principia Mathematica, escrito em parceria com Alfred Whitehead, é provavelmente a mais impactante obra de popularização da lógica-matemática, com monumental impacto sobre a filosofia da matemática

Russell nasceu em uma família influente, tradicional, rica e nobre. E soube aproveitar muito bem essas oportunidades para produzir trabalhos de extraordinária originalidade e polêmicos até os dias de hoje. 

Mas e aqueles que nascem sem esses privilégios? Pessoas de origem humilde e até mesmo bastarda podem produzir conhecimentos científicos ou filosóficos de alto nível? É possível um Jon Snow ou um John Doe da vida se tornar um grande cientista?

Michael Faraday nasceu em uma família muito pobre e pode contar apenas com uma educação básica. Teve pouquíssimo acesso a educação formal, sendo obrigado a estudar como um autodidata. Mas acabou se tornando um dos mais influentes cientistas da história. Como? Em parte por conta de seu contato, desde muito cedo, com grandes expoentes da ciência e da filosofia da época, como Humphry Davy e John  Tatum. Ele fez isso aos vinte anos de idade.

Ou seja, isoladamente não há como alguém produzir conhecimentos científicos ou filosóficos relevantes. Mas dificuldades como escassez de recursos financeiros, educação ruim ou família sem tradição cultural alguma, não chegam a ser obstáculos intransponíveis. São apenas dificuldades, nada mais. 

Portanto, independente de onde você venha, existem caminhos que são praticamente mandatórios para iniciar uma prolífica carreira de produção científica. É importante ressaltar que o que define uma carreira de produção científica inevitavelmente se traduz em termos de produção de trabalhos originais e relevantes publicados em veículos especializados de alto nível notoriamente reconhecidos como tais. Mas, como conquistar isso? Segue abaixo uma lista de passos fundamentais.

1) Faça justiça à sua curiosidade. Leia, observe, dialogue e pense. Sem curiosidade natural e incessante, não há chances de se realizar produção científica ou filosófica relevante. Mas saiba o que ler. É preciso ler as fontes originais das grandes ideias. Quer conhecer a teoria da relatividade? Leia os textos de Einstein e de todos aqueles que contribuíram para o desenvolvimento posterior desta teoria. Observe os modos de pensar e agir daqueles que produzem conhecimentos. Dialogue com aqueles que produzem conhecimento. Pense criticamente sobre o que lê, observa, ouve e fala. Isso mesmo! Até aquilo que você fala ou escreve deve passar por uma análise promovida pelo seu pensamento crítico. 

2) Não permita a interferência de emoções. Uma das principais barreiras contra o desenvolvimento intelectual é o descontrole emocional. Se alguém criticar as suas ideias, pense racionalmente sobre as críticas e decida se há necessidade de resposta e como ela deve ser dada. Mas jamais leve para o lado pessoal, mesmo que a crítica atinja a sua pessoa. No meio acadêmico existe muita frustração. E frequentemente essa frustração se traduz com ataques pessoais. No entanto, não existe método infalível para distinguir críticas que se originam de frustrações daquelas que se originam de uma postura honesta e imparcial. Se o seu objeto de estudo é, por exemplo, filosofia das imagens, não há motivo algum para disputar com alguém se você tem capacidade ou não para filosofar sobre imagens. Concentre-se sempre no tema de seu objeto de estudos. Neste livro publicado pela Springer, por exemplo, Clifford Truesdell se refere a Patrick Suppes e colaboradores como idiotas e estúpidos (não estou exagerando). Isso impediu Suppes de fazer contribuições históricas em filosofia e teoria da cognição? Certamente não. Trabalhei com Suppes e sei que ele se esforçava para pensar meticulosamente sobre as críticas que recebia. 

3) Adapte-se ao sistema de ensino formal. Nossas escolas e universidades são templos da perdição, em termos de senso crítico e cultivo do conhecimento. A estupidez, a arrogância, a política rasteira e a mediocridade são elementos dominantes. Mas nossas escolas e universidades são também excelentes pontes de acesso aos grandes centros de pesquisa espalhados pelo mundo. Portanto, tenha paciência. Este item é uma extensão natural do item 2. Se o professor espera que você escreva bobagens nas provas, escreva bobagens nas provas. Você precisa do apoio institucional para seguir uma carreira séria e frutífera. E esta é uma questão muito delicada, pois pode facilmente conduzir a uma prostituição intelectual, como geralmente acontece. Por isso, tome cuidado! Jamais perca contato com as fontes do conhecimento que efetivamente transformam o mundo. E não tente mudar os medíocres. Jamais podemos mudar o diabo, mas o diabo pode nos transformar. Os medíocres detém poder para atrasar e até prejudicar a sua vida acadêmica. Por isso mesmo você precisa de uma vida paralela, na qual mantenha contato consistente com pesquisadores que efetivamente produzem conhecimento original e relevante.

4) Não perca tempo. A juventude é a melhor época para aprender. Quanto mais cedo você iniciar seus estudos, maior proveito terá da sua criatividade. Muitas contribuições de alto impacto em ciência foram feitas por jovens. Mas não perca de vista o item 2. Caso você não consiga produzir algo relevante antes dos trinta anos de idade, mantenha a persistência na busca pelo conhecimento. Mas também considere a possibilidade de mudar suas estratégias de investigação. É sabido que em física teórica a maioria das contribuições que resultaram no Prêmio Nobel foram feitas antes dos trinta anos. Já em áreas de pesquisa como medicina e história o fator idade tem um peso consideravelmente menor. Mesmo assim tem sido constatado, ao longo de décadas, um gradual aumento na idade limite para contribuições científicas máximas em áreas mais abstratas como física e matemática. 

5) Seja estratégico. No Brasil a escolha de área de conhecimento tem um peso grande. Física e matemática são áreas que conquistaram certo respeito no cenário internacional. Filosofia, história e educação, porém, são exemplos de áreas do conhecimento muito imaturas ainda em nosso país, com incipiente repercussão internacional. Se você decidir por uma área forte no Brasil, há várias boas opções de instituições (como o IMPA, o CBPF, o IME-USP, entre outras) que naturalmente o colocarão em contato com os grandes centros mundiais, dependendo da qualidade de seu trabalho. Mas se você optar por áreas de pouca repercussão internacional, empenhe-se para avançar seus estudos a ponto de colocá-lo em contato com boas instituições estrangeiras. Isso pode ser feito até mesmo durante um eventual pós-doutorado. Mas se puder fazer isso via bolsas sanduíche ou o Programa Ciência Sem Fronteiras, melhor ainda. Quanto mais cedo ocorrer o contato com os grandes centros, melhores serão os resultados de seu trabalho.

6) Procure bons professores orientadores. Procure a orientação de pesquisadores com produção consistente em bons veículos de circulação internacional. E faça isso com o objetivo explícito de publicar em bons periódicos especializados. Se não for possível, peça a orientação do professor mais experiente e de mente aberta que você puder encontrar. E use a instituição na qual estuda como trampolim para mergulhá-lo em uma realidade melhor, mais produtiva e competitiva. Essa orientação pode ser até mesmo uma iniciação científica informal ou um trabalho de conclusão de curso.

7) Aprenda a viver. Em uma conversa pessoal, o grande matemático pernambucano Leopoldo Nachbin disse o seguinte: "Para fazer matemática é preciso estar no lugar certo, com as pessoas certas, no momento certo e ainda ter sorte." Creio que esta visão pode ser estendida para qualquer área do conhecimento. Ou seja, sempre existem incertezas em qualquer investimento audacioso. Quando finalmente se aprende a publicar em periódicos de alto nível, descobre-se que esta não é uma tarefa tão complicada assim. Complicado é publicar algo realmente relevante, que faça a diferença no conhecimento científico mundial. E este é um desafio encarado por praticamente todos os pesquisadores do mundo. O próprio Nachbin, que abriu um ramo da matemática hoje conhecido como espaços de Hewitt-Nachbin, disse na mesma conversa: "Eu gostaria de ter feito mais." O bom pesquisador é uma pessoa permanentemente insatisfeita. Mas é uma insatisfação que não a consome, não a tormenta. É apenas uma insatisfação que a faz desejar fazer mais, muito mais. Assim como escolas ruins devem ser usadas como trampolim para mergulhar em instituições de alto nível, essas últimas devem ser usadas como trampolim para mergulhar na ciência, na tecnologia, na filosofia, na história e nas artes.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Blog Matemática e Sociedade no CBPF


Caros leitores do blog Matemática e Sociedade. É com grande satisfação que anuncio aqui o mais recente resultado das atividades promovidas neste fórum. Em função de discussões aqui promovidas, fui convidado pelo professor Renato Doria para ministrar palestra e participar de debate no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no contexto do I Verão Professor Global - 2015. Este evento, aberto ao público, ocorrerá no próximo dia 24, no Auditório Ministro Lins de Barros, do CBPF. Segue a abaixo a programação que acaba de ser confirmada:

Manhã: 10:00 - 12:00h


  • Semeadura Dialética do Conhecimento - Doris Faria (UnB)
  • Dialética do Conhecimento e a Política - Renato Doria (AprendaNet)
  • Dialética do Conhecimento e os Oprimidos - José Helayël (CBPF)
Tarde: 13:00 - 17:30h

  • Dialética do Conhecimento e a Universidade Brasileira - Adonai Sant'Anna (UFPR)
  • Dialética do Conhecimento e a Educação - Ronaldo Mota (Estácio de Sá)
  • Dialética do Conhecimento e a Física - Luiz Pinguelli (COPPE)
  • Dialética do Conhecimento na Política Pública  - Rex Nazaré (FAPERJ)
"Se não houver a Dialética do Conhecimento, o Brasil será uma sociedade de serviços e revendas com uma ciência sem viver a dúvida."

Comprometo-me a publicar postagem neste blog que apresente um relatório sobre os resultados e promessas deste evento. Um dos objetivos principais é a articulação de discussões sérias e ações construtivas em favor de um Brasil melhor.

Peço que sejam convidados para este evento todos os possíveis interessados. Sem articulação, não há esperanças de mudança.

Preciso de um psicólogo


Preciso honestamente da ajuda de um experiente e bem qualificado psicólogo ou psiquiatra. Li muitos artigos e livros sobre psicologia. Mas isso certamente não me qualifica para tratar do meu problema. Apresento nesta postagem sintomas de uma pessoa específica, mas muito comuns entre outras. E espero que esses sintomas sejam suficientes para um diagnóstico. A partir deste diagnóstico, preciso saber se o mal apontado tem cura ou, pelo menos, tratamento.

Ontem publiquei neste blog uma postagem que denuncia algo muito grave: o fato de um notório jornalista brasileiro opinar com incisividade sobre temas que evidentemente não conhece. Quando fiz isso, lembrei de uma postagem mais antiga, na qual mostrei uma lista de pesquisadores do CNPq cujas obras são ignoradas pela comunidade acadêmica internacional. Entre esses pesquisadores está Marilena Chauí, considerada por muitos como um dos mais importantes filósofos de nosso país. 

O livro mais conhecido de Chauí é Convite à Filosofia, com milhares de citações. Anos atrás tive contato com esta obra e confesso que fiquei assustado. Mas diante dos últimos eventos neste blog, creio que seja oportuno discutir sobre alguns tópicos tratados no livro.

A responsabilidade de um autor é algo que deveria ser muito grande. E se uma obra faz sucesso, como o livro acima citado, esta responsabilidade pode atingir níveis estratosféricos. No entanto, não percebo responsabilidade nem em Chauí e nem em outros autores muito conhecidos de nosso país (como Olavo de Carvalho). Pelo contrário, Chauí se comporta como se sofresse de alguma compulsão, algo como mitomania (em minha visão de leigo em psicologia). E mais estranho ainda é o fato de que essas mentiras injustificadas parecem ser absorvidas com enaltecimento por muitos dos ditos "intelectuais" de nosso país. É claro que o problema pode estar comigo e não com Chauí. Mas os argumentos que aponto abaixo contestam essa possibilidade.

Esclareço. 

Nas páginas 72 e 73 de seu livro, Chauí afirma o seguinte: "O princípio da identidade é a condição do pensamento e sem ele não podemos pensar. [...] é a condição para que definamos as coisas e possamos conhecê-las a partir de suas definições.". Em primeiro lugar, ela enuncia este suposto princípio da identidade de uma única forma e de maneira extremamente vaga. Existem muitas publicações importantes que tratam do problema da identidade em matemática, física e filosofia, o qual pode assumir múltiplas formas. Além disso, a questão da identidade de partículas elementares em mecânica quântica é tema de importantes pesquisas até os dias de hoje. Ora, é usual que seja admitido que partículas elementares em regime de baixas energias careçam de identidade. No entanto, físicos conseguem pensar sobre elas! Portanto, de duas uma: ou Chauí jamais pensou com seriedade sobre o problema da identidade em filosofia ou os físicos apenas pensam que pensam. Para detalhes, recomendo este livro

Na página 75 a autora afirma que a teoria da relatividade "mostrou que as leis da Natureza dependem da posição ocupada pelo observador" e que aquilo que é espaço e tempo para nós pode não ser para outros seres da galáxia. Essas estão entre as afirmações mais estapafúrdias que já li em toda a minha vida. Não existe uma única versão de qualquer uma das teorias da relatividade que sustente qualquer uma dessas afirmações! As equações de Einstein estabelecem uma lei física que independe da posição de um eventual observador. Além disso, não existe qualquer consideração sobre modos de percepção extraterrestres em qualquer uma das teorias da relatividade. 

Na página 81 Chauí afirma que dedução consiste em partir de uma verdade já conhecida e que "funciona como um princípio geral ao qual se subordinam todos os casos que serão demonstrados a partir dela." A sala de Chauí, na Universidade de São Paulo, ficava ao lado da sala de Newton da Costa, um dos mais importantes lógicos da atualidade. Bastava ela perguntar para ele o que é uma dedução! Certamente da Costa responderia sem hesitar. Mas ela preferiu inventar uma visão fantasiosa sobre este importante conceito. As noções atuais sobre dedução em lógica independem de qualquer conceito sobre verdade. Além disso, o que seriam os tais princípios gerais que ela menciona? Ela simplesmente não esclarece. Além disso, Chauí afirma que deduções partem de verdades; mas não diz aonde essas verdades chegam. É uma partida sem chegada. Para uma visão elementar sobre deduções, indico esta postagem.

Na mesma página 81 ela sugere que é possível definir um triângulo como uma "figura geométrica cujos lados somados são iguais à soma de dois ângulos retos." O que é uma figura geométrica? Como é possível somar lados de um triângulo? Como é possível somar ângulos? Ela está confundindo lado e ângulo com medida de lado e medida de ângulo? Se ela não sabe matemática elementar de ensino fundamental, por que não estuda sobre o assunto? E se não quer estudar, por que falar sobre isso?

Ainda nesta mesma página rica em descalabros Chauí fala sobre a dedução de figuras geométricas. Deduções são operações lógicas aplicáveis sobre fórmulas (afirmações, em um sentido intuitivo). Triângulos não são fórmulas (ou afirmações) nas formulações usuais de geometria! 

Na página 239 Chauí fala sobre um tal de silogismo científico, afirmando que este não admite premissas contraditórias. Além disso, ela também afirma que as premissas do tal silogismo científico são universais e que sua conclusão não admite discussão ou refutação. Não tenho ideia do que seria este silogismo científico, pois o texto de Chauí mais parece um cansativo e confuso sermão da montanha, uma vez que ela se recusa a qualificar o que afirma e sequer apresenta referências no meio do texto. Mas silogismos são regras de inferência que envolvem três ou mais ocorrências de fórmulas (ou afirmações). No contexto do que hoje se entende por lógica, não há problema algum em assumir premissas contraditórias. E afirmar que alguma forma de inferência em ciência ou matemática não admite discussão ou refutação, é o mesmo que estabelecer um dogma. Ciência não se faz a partir de dogmas. Para piorar a situação, a autora afirma que premissas devem ser indemonstráveis. Pura loucura! Para um estudo muito bem feito sobre inferências dedutivas, recomendo este clássico da literatura. Para uma comparação muito didática sobre as diferenças entre deduções e induções, recomendo este livro

Na página 240 a autora assume explicitamente que a única forma de definições em ciência é a por gênero e diferença. Neste texto há uma discussão bastante resumida sobre alguns dos múltiplos tipos de definição que se usa em ciências reais e formais. Ou seja, Chauí ignora definições ostensivas, operacionais, contextuais, explícitas, entre muitas outras. 

Na página 326 a autora se refere a uma tal de geometria topológica, explicando, entre parênteses, que se trata do estudo do espaço tridimensional. Além do termo "geometria topológica" ser não usual, os poucos livros existentes com títulos que remetam a geometria topológica tratam de assuntos extraordinariamente mais complexos do que meros espaços tridimensionais, como álgebras de Clifford e variedades suaves, entre outros. 

A partir da página 331, então, Chauí concentra todas as suas forças para mentir descaradamente sobre matemática, com uma incessante e perversa rajada de loucuras. Uma das piores afirmações é aquela na qual ela explica o que é um axioma. Chauí diz que "um axioma é um princípio cuja verdade é indubitável, necessária e evidente por si mesma, não precisando de demonstração e servindo de fundamento às demonstrações." Novamente preciso insistir no livro de Mendelson. Não há necessidade alguma de que um axioma seja verdadeiro ou evidente. E, além disso, todo axioma é demonstrável, resultado este muito conhecido em lógica-matemática. Para colocar a cereja vencida sobre o bolo mofado, Chauí ainda julga que axioma e postulado não são sinônimos em matemática. 

Há muito mais trechos no livro que contam com erros grotescos, como os já apontados. Mas acho que já consegui apresentar o meu ponto. Minha pergunta é a seguinte: será que essa compulsão para escrever incessantes mentiras, a partir de opiniões irresponsáveis sobre assuntos não dominados, não se caracteriza como um quadro clínico de alguma forma de distúrbio? É uma pergunta honesta! Eu realmente quero saber! Vejo esse tipo de atitude com expressiva frequência, principalmente entre profissionais das ciências humanas que se julgam capazes de escrever sobre ciências exatas. Além de Chauí, já discuti por aqui sobre o caso muito semelhante de Olavo de Carvalho. E sei que há muitos outros ainda. Por que essa necessidade? O que falta nas vidas desse tipo de gente para agirem desta forma? 

Se alguém puder me esclarecer, ficarei profundamente grato.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Olavo de Carvalho

Clique na imagem

Recebi hoje e-mail de um leitor deste blog perguntando por que citei Olavo de Carvalho em uma postagem recentemente veiculada. Essa pergunta foi motivada por questionamentos a respeito de certas afirmações deste jornalista comumente conhecido por alguns como um filósofo. 

Uma vez que Olavo de Carvalho consegue combinar discursos brilhantes com outros escandalosamente absurdos, creio que a indagação feita por este leitor merece ser respondida aqui. 

Citei uma entrevista com Olavo de Carvalho simplesmente porque ela continha uma discussão extremamente pertinente. E jamais deixarei de aproveitar boas ideias baseado em quem as defende. A correlação entre pessoas e ideias é assunto altamente não trivial.

No entanto, preciso também esclarecer alguns pontos sobre os quais devemos ser extremamente cuidadosos quando Olavo de Carvalho decide falar ou escrever. E ele fala e escreve muito!

Começarei com alguns exemplos. O primeiro se refere à mecânica newtoniana.

Neste texto publicado no Jornal do Brasil em 2006, Olavo de Carvalho contesta a Primeira Lei de Newton, afirmando que: 

"se o movimento é eterno, não faz sentido falar em 'estado presente' a não ser por referência a um observador vivo dotado do sentido da temporalidade. No movimento eterno, tudo é fluxo e impermanência. Não há 'estados' - seja de repouso ou de movimento. 'Estado' é apenas uma impressão subjetiva que o observador, ele próprio envolvido no movimento geral, obtém ao medir os movimentos físicos pelo seu tempo interior. A tentativa de montar um universo puramente matemático independente da percepção humana acabava fazendo tudo depender da própria percepção humana. A física materialista fundava-se numa metafísica idealista."

Antes de discutir sobre o parágrafo acima, preciso esclarecer o seguinte. Promovo esta discussão principalmente por conta da grande influência que Olavo de Carvalho exerce sobre muitos jovens. Se fosse um autor qualquer, certamente eu não daria atenção a este pobre texto. 

Pois bem. O que Carvalho faz acima é uma pretensa exegese sobre um tratado (Principia), o qual estimulou a concepção de inúmeras formulações não equivalentes entre si para a mecânica clássica (como as de Arnol'd, McKinsey-Sugar-Suppes, Noll, entre muitas outras). E o grande problema de exegeses (perturbadoramente comuns entre "filósofos" brasileiros) é que elas comumente refletem meras percepções pessoais daqueles que as escrevem, revelando apenas suas próprias limitações intelectuais. Existem sim muitas críticas extremamente pertinentes à obra de Newton. E Carvalho demonstra clara ignorância ao citar Goethe como um dos três principais críticos da mecânica newtoniana, enquanto sequer menciona Mach. 

Em sua pobre e distorcida exegese, Carvalho afirma categoricamente que não há estados. Ou seja, ele impõe uma percepção própria, desqualificada e única sobre o que entende por estado em mecânica. A obra Principia, de Isaac Newton, é um marco que deu origem a inúmeras formulações para o que hoje se entende por mecânica newtoniana. Em cada uma delas há uma visão própria sobre o que se entende por estado de um sistema físico. Essa multiplicidade de visões sobre as ideias originais de Newton decorre justamente por conta do pioneirismo deste grande físico britânico. Obras pioneiras são frequentemente escritas de forma a admitir múltiplas interpretações, mesmo na área de ciências exatas. Georg Cantor que o diga! Criou uma teoria de conjuntos (hoje chamada de ingênua) que deu origem a inúmeras formulações extraordinariamente qualificadas, porém não equivalentes entre si (como ZF, NBG, T e T*, entre muitas outras). Além disso, até hoje não está suficientemente claro se o texto original de Newton faz uso ou não do cálculo diferencial e integral criado por ele mesmo. Portanto, qualquer avaliação responsável sobre o livro Principia demanda uma análise muito mais profunda do que aquela promovida em um texto de uma página, desprovido de referências e que se limita a uma visão única e vaga. Carvalho afirma, por exemplo, que no movimento eterno tudo é fluxo e impermanência. Além de não qualificar seu texto (usando a expressão "tudo" que, sob exegese minha, pode contemplar até mesmo unicórnios e lobisomens), ainda impõe uma alegada impermanência que jamais é justificada. Afinal, existe pelo menos um fator em comum entre todas as formulações hoje existentes para a mecânica newtoniana, a saber, os princípios de invariância. Tais princípios de invariância, matematicamente descritos via teoria de grupos, espelham justamente as leis físicas, as quais são invariantes (ou seja, permanecem as mesmas) sob transformações de coordenadas de um observador para outro, dadas certas condições especificadas em cada formulação. 

Carvalho ainda acusa Isaac Newton de montar um universo puramente matemático independente da percepção humana. Bem, do ponto de vista da prática usual do físico, foi exatamente o oposto que ocorreu. Isso porque, como bom físico que era, Newton estava fortemente comprometido com a testabilidade de suas ideias. E tais testes parecem refletir modos de percepção humana. Já do ponto filosófico, Newton mesmo percebia que suas ideias apenas salvavam as aparências daquilo que experimentos pareciam demonstrar. Isso porque a ideia de uma ação-a-distância (na gravitação newtoniana, por exemplo) conta com um caráter metafísico bem conhecido na literatura. Críticos como Helmholtz e Hertz chegavam a se referir a este caráter metafísico como antropomórfico, remetendo a uma exagerada preocupação de Newton com os modos de percepção humanos. Já de um ponto de vista filosófico bem mais profundo, as relações entre modelos matemáticos e experimentos realizados em laboratório são até hoje um mistério. Ninguém sabe ao certo por que a matemática consegue salvar as aparências percebidas em processos de medição realizadas por físicos experimentais. Ou seja, falta a Carvalho a percepção da dúvida e da pluralidade de ideias, quando o assunto é mecânica newtoniana. 

Há muitos outros trechos no artigo em questão que são igualmente assustadores. Mas prefiro agora caminhar para o segundo exemplo: teoria da relatividade de Einstein.

Nesta palestra, Olavo de Carvalho afirma que a teoria da relatividade de Einstein foi criada para salvar as aparências do heliocentrismo. Ele chega a dizer que Einstein julgou que "era preferível modificar a física inteira só para não admitir que não havia provas do heliocentrismo". Para sustentar seu argumento, ele usa como referência a famosa experiência feita por Michelson e Morley, que indica que a velocidade da luz no vácuo é independente do observador. Para uma visão intuitiva e extremamente didática deste experimento, recomendo ao leitor este link

Carvalho sugere ainda que a constância da velocidade da luz detectada por Michelson e Morley evidencia que a Terra é um referencial privilegiado, o que daria suporte ao modelo geocêntrico. 

Em primeiro lugar, a teoria da relatividade restrita de Einstein não se justifica a partir de um único experimento. Qualquer experiência (e são muitas!) realizada em aceleradores de partículas precisa levar em conta efeitos relativísticos de dilatação do tempo. Além disso, Einstein não modificou a física inteira (conforme afirma Carvalho) e jamais teve essa pretensão. Pelo contrário, há motivações filosóficas em seu trabalho que claramente sustentam o seu compromisso com o conhecimento então vigente de física teórica. O fato é que as leis da mecânica newtoniana são invariantes sob transformações de Galileu. Já as leis da eletrodinâmica clássica não são! As leis da eletrodinâmica clássica de Maxwell são invariantes sob transformações de Poincaré (inconsistentes com Galileu). O que Einstein fez foi um processo de unificação entre mecânica e eletrodinâmica, criando a teoria da relatividade restrita, cujas leis são invariantes sob transformações de Poincaré e que, sob regime de baixas velocidades, apresenta uma equivalência (em escalas experimentais, sob margens de erro toleráveis) a certos aspectos da mecânica newtoniana. Ou seja, Einstein manteve a eletrodinâmica clássica intocável. Olavo de Carvalho deveria saber que a física não se resume à mecânica.

Na mesma palestra Carvalho admite não entender a noção de curvatura do espaço-tempo (presente na teoria da relatividade geral). No entanto, não hesita em criticar essa ideia também. O fato de ele não compreender uma ideia, parece ser justificativa suficiente para rejeitá-la. Isso por si só revela uma perigosíssima presunção. 

Apesar de Carvalho não mencionar explicitamente sobre a teoria da relatividade geral, discursa sobre curvatura do espaço-tempo, negando-a. Isso também revela uma grave desordem mental. 

Não sei se Olavo de Carvalho usa o sistema GPS, para chegar de um ponto A a um ponto B. Mas se o fizer, estará caindo em uma armadilha criada por ele mesmo. Isso porque o sistema GPS aplica tanto a teoria da relatividade restrita quanto a geral para fazer correções de sincronia entre relógios na Terra e relógios em satélites artificiais que orbitam nosso planeta. Ou seja, maldizendo ou não Einstein, ele depende da obra deste físico alemão para saber onde está e para onde deseja ir.

Há muitas outras questões controversas sobre Carvalho, incluindo sua proposta de incluir a astrologia como um ramo da ciência. Mas discutir sobre astrologia como ciência já chega a um absurdo que temo desrespeitar o leitor. Por isso prefiro não discutir sobre este tema aqui.

Mesmo físicos extremamente experientes conseguem fazer afirmações absurdas sobre física. E Olavo de Carvalho demonstra claramente não ter a mais remota familiaridade com física a não ser, talvez, a partir de textos de divulgação científica destinados a leigos. No entanto, ainda assim insiste em opinar sobre temas da física moderna. Isso me faz questionar se há algum sentido em suas afirmações sobre outros temas, como história da religião e política. 

Portanto, o leitor deve ter muito cuidado com o que Carvalho afirma. Suas declarações nesta entrevista são incisivas, mas pertinentes. No entanto, são pertinentes sob o meu ponto de vista. Não sei dizer se eu compartilharia com as justificativas que ele teria para apresentar às suas declarações sobre a educação brasileira. 

É óbvio que o leitor deve aprender a filtrar qualquer informação que receba, seja de onde for. Isso não se aplica somente a Olavo de Carvalho, mas a qualquer pessoa. No entanto, Carvalho demonstra o persistente hábito de opinar sobre o que não demonstra conhecer. Ele faz isso quando discute sobre o aquecimento global, o darwinismo e a história da ciência. 

Como filtrar ideias? Bem, não há procedimento efetivo para isso. Mas pensar e discutir com uma variedade grande de pessoas compromissadas com o conhecimento já ajuda.
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Nota: Em virtude de grande volume de comentários nesta postagem, decidi complementar este texto. Para detalhes, clique aqui.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Crianças filósofas


Crianças são capazes de filosofar? 

Há algum tempo tenho dedicado parte do espaço deste blog para tratar de aspectos cognitivos em crianças. Um exemplo foi a postagem sobre como ensinar teoria da relatividade para um público infantil. Outro foi uma discussão sobre o efeito de elogios. E, finalmente, há também um exemplo de experiência pessoal que tive quando discuti sobre realismo com uma turma de quarta série.

Desta vez, no entanto, a meta é a discussão sobre o papel da filosofia na vida de crianças de quatro a doze anos de idade. 

A teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget sugere que crianças com menos de onze anos são incapazes de pensar filosoficamente. Isso porque, segundo o conhecido epistemólogo suíço, crianças não conseguem pensar sobre o pensar. Porém, o mundo mudou bastante desde o pioneirismo de Piaget, apesar de nosso país evidentemente não ter percebido isso. Neste conhecido site, por exemplo, afirma-se que a teoria de Piaget comprova "que os seres humanos passam por uma série de mudanças previsíveis e ordenadas". Porém, filósofos como Matthew Lipman e Gareth Matthews, entre muitos outros, apresentam evidências contundentes de que Piaget ignorou importantes manifestações das próprias crianças que ele mesmo estudou. 

Piaget falhar em seu senso crítico é algo evidentemente muito ruim. Mas a persistência na realização de repetitivas experiências (como se faz em nossas terras) com o único objetivo de validar as ideias deste importante pensador já é um erro grotesco, do ponto de vista filosófico. Está mais do que na hora de pedagogos e educadores brasileiros se atualizarem em termos do que crianças podem ou não podem fazer. Assim como a física não parou com Galileu, a psicologia cognitiva já avançou para muito além de Piaget.

Neste livro, por exemplo, Gareth Matthews motiva suas teses com exemplos reais de crianças com idades entre quatro e seis anos que espontaneamente levantaram as seguintes questões:

1) "Como podemos ter certeza de que tudo na vida não passa de um sonho?"

2) "Se eu vou para a cama às oito horas e levanto às sete da manhã, como posso ter certeza de que o ponteiro das horas do relógio girou só uma vez? Eu tenho que ficar acordado a noite inteira para saber? Mesmo que eu desvie o olhar por um breve instante, talvez o ponteiro das horas gire duas vezes."

3) Em diversas ocasiões um garoto de quatro anos viu aviões decolarem e sumirem à distância em aeroportos. Um dia ele finalmente pega o seu primeiro voo. Após a decolagem e logo depois de receberem o aviso de que os cintos de segurança podem ser soltos, o garoto afirma aliviado para o seu pai: "As coisas realmente não ficam menores aqui em cima."

Apesar destes exemplos ilustrarem claramente questionamentos de caráter filosófico, eles ainda não permitem defender a tese de que crianças sejam capazes de sustentar discussões de caráter filosófico. Mas Matthews motiva suas discussões com outros exemplos muito mais sofisticados, como este:

4) Ian (de seis anos de idade) foi impedido de acompanhar seu programa de TV preferido porque três crianças - filhos de amigos de seus pais - monopolizaram o aparelho de televisão, ao chegarem. E então Ian perguntou à sua mãe: "Por que é melhor três crianças serem egoístas no lugar de apenas uma?" Essa indagação desencadeou uma extensa discussão entre todos os envolvidos, incluindo a falta de consideração das crianças visitantes, o desejo de encontrar uma solução satisfatória para todas as quatro crianças, a importância do respeito aos direitos dos outros e até mesmo como uma outra pessoa se sentiria se estivesse no lugar de Ian. 

Crianças são capazes de filosofar? Há inúmeras evidências de que a resposta seja positiva. E, claro, esta perspectiva inevitavelmente conduz a um novo questionamento: devemos estimular o estudo de filosofia no ensino básico?

Existem pelo menos dois problemas na proposta de implementação da disciplina de filosofia em escolas, tendo como público-alvo crianças entre quatro e doze anos:

I) A grade curricular de nossas escolas de ensino básico já está bastante comprometida com outras matérias.

II) O estudo de filosofia no ensino básico pode ser um fator de distração, que pode transformar os alunos em meros céticos, resistentes ao aprendizado de outros assuntos, como matemática, ciências, história e línguas.

A resposta de Lipman a esses problemas é estimulante. Sua proposta é usar uma disciplina de filosofia com o propósito de promover uma discussão que explorasse as relações existentes entre diferentes áreas do saber. Um exemplo que já foi discutido neste blog, no presente contexto, reside nas relações entre matemática e o simples contar de histórias. Outro exemplo, está na visão social de histórias infantis da literatura clássica. Desta maneira o ensino de diferentes matérias teria um caráter muito menos fragmentado, uma vez que sempre se buscaria por uma visão interdisciplinar de mundo e até mesmo uma percepção do processo educacional como um todo. 

Toda esta proposta de filosofia nas escolas teria como principal meta o estímulo ao senso crítico, algo que tem feito muita falta no Brasil. O que é senso crítico? Segundo Robert Ennis, senso crítico é o "pensamento reflexivo racional focado na decisão sobre o que acreditar ou fazer". Neste contexto, a prática do senso crítico demanda incisividade, informações qualificadas, confiabilidade de raciocínio, mente aberta, flexibilidade, avaliação justa, honestidade para encarar tendências pessoais, capacidade de reconsideração, clareza, capacidade de ordenação de assuntos complexos, diligência na busca de informações relevantes, foco e persistência. 

Já existem muitos estudos que apontam para correlações negativas entre inteligência e religiosidade, inteligência e conservadorismo político e inteligência e radicalismo político. Onde existe resistência irracional a ideias novas, inevitavelmente há um tendencioso caminho que afasta as pessoas de decisões inteligentes. E o estímulo à arte de filosofar desde cedo é um caminho de flexibilidade e contemplação. A capacidade de filosofar é inerente sim às crianças! Se em algum momento esta capacidade se perde, isso se deve a pressões sociais que ocorrem principalmente nas escolas e na unidade familiar. Castrar a capacidade de filosofar de uma criança é um ato de covarde violência, um estupro mental.

Quando se fala em filosofia no Brasil, quase que invariavelmente professores e demais educadores confundem este tema com o estudo de história da filosofia. Filosofar não é concordar com Platão, Descartes ou Russell. Filosofar é a capacidade de apontar onde os grandes pensadores erraram. Afinal, eles foram apenas pensadores e não deuses cuja ira devemos temer. 

Enquanto os expoentes da filosofia brasileira persistirem em sua mediocridade intelectual, jamais haverá exemplos sólidos a serem seguidos por profissionais do ensino de filosofia. Portanto, mudanças precisam ser feitas em todas as direções, do básico ao avançado, da criança ao pesquisador, da escola à família. No momento, nosso país está intelectualmente podre. E todos somos culpados por essa podridão. Sejamos flexíveis o bastante para reconhecer nossa responsabilidade. E sejamos incisivos o bastante para agirmos o mais rapidamente possível.

Para uma rica e abrangente discussão sobre filosofia para crianças, recomendo este excelente link na Enciclopédia de Filosofia de Stanford.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O futuro profissional e pessoal de superdotados


Segundo o jornalista Olavo de Carvalho, no Brasil se confunde conhecimento com pedantismo e busca de poder. Aliás, fortemente recomendo ao leitor que clique neste link, para acompanhar uma belíssima entrevista de quinze minutos que sumariza de maneira muito clara (e escandalosa) a situação da educação em nosso país. 

Como compartilho com praticamente todas as ideias apresentadas na entrevista acima citada, retomo uma velha questão: por que investir em educação em um país tão passivamente resistente ao conhecimento de alto nível? 

Essa resistência é marcante até mesmo na vida acadêmica brasileira, com a elevada tolerância ao plágio, a persistente expectativa de que todos sejam iguais entre si, ou as usuais manobras para mostrar uma produção intelectual que não é real, entre muitos outros exemplos já discutidos neste blog.

Em meio à ignorância brasileira que repousa sobre berço esplêndido, existe uma crescente avalanche de discursos contra preconceitos. Fala-se de maneira comumente dogmática e não qualificada sobre preconceito racial, religioso, sexual, cultural, social, entre outros. Mas jamais se fala do preconceito contra o conhecimento e contra aqueles que dominam conhecimentos e habilidades de alto nível (ver, por exemplo, este depoimento de um superdotado). Isso porque a própria noção de preconceito, enquanto tema de estudos sistemáticos em psicologia e sociologia, nasceu oficialmente em 1954, nos Estados Unidos, um país com tradição na produção e cultivo de múltiplas formas de conhecimento (e de preconceitos, claro!). [Para uma excelente revisão histórica dos primeiros estudos sobre preconceitos, recomendo este artigo.] Portanto, o Brasil é um país que, além de culturalmente desprezar o conhecimento, é completamente cego diante de manifestações de preconceito intelectual. Somos uma nação desconhecedora de nossos próprios preconceitos. E mesmo quando tratamos de preconceitos usualmente discutidos, atropelamos o mais elementar senso crítico.

Mas a melhor maneira para lutar contra o preconceito ao conhecimento é - trágica e ironicamente - através do próprio conhecimento.

Em dezembro do ano passado foi publicado um artigo que reporta quarenta anos de análises sobre uma população de 1650 pessoas que, no início dos anos 1970, foram diagnosticadas como superdotadas. Eram crianças de treze anos que hoje são homens e mulheres com cerca de 53 anos de idade. E eram crianças com excepcional raciocínio matemático, listadas entre os 1% dos estudantes mais talentosos daquela faixa etária. Hoje são adultos profissionalmente muito bem sucedidos e com elevados níveis de satisfação pessoal. Este artigo foi veiculado no periódico Psychological Science

Segundo os autores, talento matemático precoce permite antecipar contribuições criativas na vida adulta, bem como liderança profissional. Neste universo de 1037 homens e 613 mulheres, os níveis de satisfação pessoal são invariavelmente elevados. No entanto, as prioridades pessoais e profissionais dependem de gênero sexual. Os homens têm a tendência de se tornarem CEOs ou trabalharem com tecnologia da informação ou áreas ligadas à ciência, engenharia e/ou matemática. Já as mulheres apresentam uma maior tendência a assumirem negócios em geral, ou trabalharem com educação básica e saúde. Homens procuram priorizar carreiras de alto impacto, enquanto mulheres preferem atividades mais voltadas à família e à comunidade. Há também diferenças salariais. Homens, neste universo de estudos, têm uma renda consideravelmente superior à das mulheres. No entanto, ambos os gêneros consideram que família é o mais importante fator para definir sucesso profissional no futuro. 

Esse grupo de 1650 pessoas publicou 85 livros e registrou 681 patentes. E, além disso, publicou 7572 artigos em periódicos especializados de alto nível. Isso nos dá uma média de 0,46 artigos por pessoa por ano (considerando os últimos quarenta anos). Importante observar, para efeitos de contas, que apenas 25% dos homens e mulheres deste grupo são responsáveis por esta produção de artigos. 

Ou seja, a mensagem desta pesquisa é clara. Cabe à família o estímulo de talentos naturais. Cabe à sociedade o aproveitamento desses talentos naturais. Cabe a cada um de nós o fim da mentalidade compartimentalizada em um invólucro que insiste em impor artificialmente que somos todos iguais. O talento matemático de um jovem é um fenômeno raro. Mas é um fenômeno que, se devidamente estimulado, apresenta consequências relevantes e construtivas para vastos segmentos sociais. Precisamos estimular os nossos 1% de supertalentos. Sem eles, os 99% restantes permanecerão à deriva, como hoje já se encontram. 

Sem dúvida, o conhecimento é para poucos. O próprio Google, tão enaltecido por muitos como se fosse a nova e imbatível enciclopédia, consegue indexar apenas 0,004% de todo o conteúdo da internet. E quem realmente sabe o que existe na internet? Ninguém, absolutamente ninguém! E quem disse que este oceano de informações disponível na internet cobre alguma fração significativa do conhecimento relevante disponível no mundo todo? Garantidamente este não é o caso

Preconceitos geralmente são impostos sobre minorias. E o domínio do conhecimento é algo acessível somente a uma minoria, muito pequena. No entanto, aqueles que não fazem parte desta minoria precisam abrir espaço para os novos talentos. Esta não é uma questão de tolerância ou magnânima compreensão. Esta é uma questão de sobrevivência de nossa própria sociedade.