sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Matemática e Telepatia

Feliz Natal a todos! E o presente que escolhi para dar aos professores de matemática é o dom da telepatia. Concebi uma adaptação da teoria das probabilidades em psicologia cognitiva que permite tornar professores de matemática bizarros leitores das mentes de seus alunos.


Propomos este presente na forma de um desafio a ser aplicado em sala de aula. Os alunos deverão decidir se acreditam que seu professor é um poderoso telepata (é capaz de quase infalivelmente ler os pensamentos de seus pupilos, sejam quais forem) ou se de fato a teoria de probabilidades encontra aplicações no mundo real. O objetivo é motivar o estudo de probabilidades como ferramenta no processo de tomada de decisões. Ou seja, dominar os conceitos básicos da teoria de probabilidades é um exercício de cidadania.


Devo avisar que já fiz essa atividade em sala de aula, em uma disciplina do curso de Licenciatura em Matemática da UFPR. Os resultados foram bastante animadores. Na aula anterior o professor deve pedir aos alunos que tragam, cada um, uma moeda em bom estado. No meu caso, eu mesmo levei moedas de um real.


Na aula da atividade o professor entrega a cada aluno de sua sala uma folha de papel com uma grade em forma de matriz de dez linhas por dez colunas e com todas as cem casas em branco. Em seguida ele apresenta as instruções. 


A atividade começa com uma brincadeira de faz-de-conta, na qual as moedas ainda não são usadas. Cada aluno fará um jogo de cara-ou-coroa, cem vezes, com uma moeda imaginária. Se a moeda mentalmente jogada pela primeira vez resultar em cara, o aluno deverá anotar na casa da primeira linha e primeira coluna as letras CA. Se resultar coroa, deverá anotar CO na mesma casa. Em seguida o aluno joga mentalmente a moeda pela segunda vez e anota o resultado (CA ou CO) na casa da primeira linha e segunda coluna. O processo é repetido, cobrindo as colunas em ordem, linha por linha, também em ordem. Após cem jogadas, a grade matricial estará completamente preenchida. O objetivo dos alunos, nessa primeira tarefa, é fazer de conta que estão realmente jogando cara-ou-coroa com uma moeda não-viciada. Para coordenar a atividade, os alunos jogam mentalmente a moeda imaginária somente ao sinal do professor, o qual pode ser algo como "Jogada 1, agora. Jogada 2, agora..." e assim por diante. O processo fica facilitado se o professor fizer os alunos acompanharem suas anotações pessoais em uma reprodução dessa grade matricial no quadro-negro, na qual o docente marca apenas algum símbolo qualquer que não remeta a Cara ou Coroa. O objetivo desta marcação no quadro é apenas coordenar a turma como um todo, fazendo-os preencher casa por casa na ordem estabelecida. 


Como são cem jogadas imaginárias, a atividade corre o risco de se tornar cansativa para os discentes. Isso pode ser resolvido se o mestre for persuasivo o bastante para manter a concentração dos pupilos. Diferentes técnicas podem ser empregadas para atingir esta meta, dependendo do perfil do professor e de sua turma. Mas seja como for, é fundamental que os alunos preencham as cem casas na ordem ditada.


Finalmente, os alunos escreverão seus nomes nas respectivas folhas preenchidas de cada um e farão um desenho no topo. Este desenho deverá ser na cor preferida do aluno, a qual não poderá ser revelada ao professor. Ao término do desenho, as folhas deverão ser guardadas fora do alcance de visão do docente.
O professor agora distribui novas folhas, idênticas às anteriores. Novas instruções são dadas para a próxima tarefa. Os alunos deverão jogar de fato cara-ou-coroa, com uma moeda comum (aquela que foi solicitada na aula anterior ou entregue pelo docente), e anotar os resultados dessas jogadas reais na mesma ordem em que o jogo imaginário foi realizado: cobrindo as colunas em ordem sequencial, linha por linha, também em ordem sequencial. Os mesmos caracteres CA e CO deverão ser usados para registrar os resultados das jogadas. Novamente o docente pode usar o quadro-negro para coordenar o jogo. 


Sempre há aqueles alunos que deixam moedas caírem ao chão. Isso pode provocar um certo tumulto. Mas um docente experiente deve saber lidar com essa situação de forma tranquila. Afinal, a grande motivação é mostrar aos alunos que o mestre é um telepata. E o desafio da mágica da telepatia pode ser um poderoso agente motivador para concentração.


Feito isso, cada aluno escreverá seu nome na segunda folha e fará um desenho na cor que menos gosta.


Em seguida o professor deve recolher cada par de folhas de cada aluno. O docente deve insistir que as folhas não sejam dobradas ou amassadas. Caso alguma folha de um aluno em especial tenha sido dobrada, a outra folha deste mesmo estudante deverá ser dobrada da mesma maneira, para dificultar a identificação que permita diferenciar a primeira da segunda folha por meios que não sejam através dos desenhos coloridos ou dos resultados dos jogos imaginários versus reais.


Como o professor não teve acesso à informação sobre a cor preferida de cada um, sua única forma de identificação das folhas é através da comparação entre jogos imaginários e jogos reais de cara-ou-coroa.


Agora é a hora do show. O docente escolhe um par qualquer de folhas de um determinado aluno, examina-as e conclui: a cor preferida de Fulano é vermelho e a cor que ele menos gosta é azul. Surpreso, o aluno confirmará. O docente faz agora uma nova adivinhação, descobrindo a cor preferida de Beltrana. Em seguida ele descobre a cor preferida de Ciclana e assim por diante. Quase que infalivelmente (existe uma probabilidade muito alta de que o professor jamais erre em suas adivinhações), o mestre descobre a cor preferida de cada aluno e, consequentemente, a cor que este aluno menos gosta.


Portanto, o professor parece exibir poderes paranormais. Ele é um telepata!


Os alunos ficarão intrigados como pode o professor quase sempre (ou sempre!) saber a diferença entre a folha que representa o jogo real e aquela que corresponde ao jogo imaginário. Afinal, essa seria a única maneira do mestre determinar qual é a cor preferida de cada aluno. 


Outra possibilidade é usar, ao invés de cores, preferências por times de futebol, filmes, celebridades, programas de televisão etc. O professor consegue descobrir as preferências de cada aluno e de forma quase infalível.


O segredo do mestre, naturalmente, está no exame das folhas. Agora vamos à explicação. 


É aqui que entra a psicologia cognitiva. A vasta maioria das pessoas (principalmente aquelas que desconhecem probabilidades) está sujeita à falácia do apostador. Se, por exemplo, em um jogo de roleta, as quatro últimas rodadas resultaram na cor preta, o apostador que se submete a esta falácia acredita que na próxima rodada é mais provável que resulte vermelho. Mas o fato é que, se a roleta não for tendenciosa (viciada), não há momento algum que possa mudar a probabilidade de um determinado resultado. A probabilidade de se obter tanto preto quanto vermelho continua sendo de quase 50% (não podemos ignorar a pequena probabilidade de o jogo da roleta resultar em 00, que não é preto e nem vermelho). Raciocínio análogo vale para uma moeda não viciada. Uma jogada que resulte em cara não altera a probabilidade de 50% de se obter novamente cara. Esses eventos são independentes entre si.


Na tentativa de simular mentalmente um jogo de cara-e-coroa, a maioria das pessoas acha pouco provável que ocorra uma sequência de cinco caras seguidas. E, de fato, a probabilidade de uma moeda não viciada produzir cinco caras seguidas é de apenas uma a cada trinta e duas chances (1/32 = 1/2 vezes 1/2 vezes 1/2 vezes 1/2 vezes 1/2). Mas jogando a moeda cem vezes, o jogador terá noventa e seis chances de obter cinco caras seguidas. Ou seja, é muito mais provável que se consiga pelo menos cinco caras seguidas, ao se jogar uma moeda cem vezes, do que o contrário. O fato é que as pessoas que desconhecem probabilidades não percebem que a sequência de cinco caras seguidas (CA, CA, CA, CA, CA) é tão rara quanto a sequência CA, CO, CO, CA, CO. 


Quando o professor examinar as folhas preenchidas pelos pupilos, ele deve procurar por sequências de sete, seis, cinco ou quatro caras ou coroas seguidas. Se elas forem muito raras ou inexistentes, muito provavelmente trata-se de um jogo imaginário, não real. Nos jogos reais, tais sequências quase que invariavelmente existem. Espera-se, em média, diante de cem jogadas, uma sequência de seis caras seguidas, uma de seis coroas seguidas, três sequências de cinco caras seguidas, três de cinco coroas seguidas, seis sequências de quatro caras seguidas e assim por diante. Ou seja, psicologicamente falando, é muito difícil a mente humana simular processos aleatórios. A mente de nossa espécie tem a tendência de privilegiar padrões, mesmo quando tenta simular o acaso.


Uma vez que o professor revele aos alunos sua técnica de análise das folhas, para descobrir a cor preferida de cada um, temos um excelente ponto de partida para motivar a necessidade por uma educação em matemática. Até mesmo questões de ordem psicológica podem ser colocadas em pauta durante a aula: na tentativa de serem imparciais, a maioria das pessoas acaba sendo tendenciosa. Isso porque somente o acaso é genuinamente imparcial. E a mente humana naturalmente encontra enorme dificuldade para ser imparcial ou justa. É normal as pessoas serem tendenciosas, injustas.


Probabilidades podem ser usadas em sala de aula ou no dia-a-dia como ferramenta para processos de tomadas de decisões, principalmente quando se trata de lógica indutiva. Enquanto a lógica dedutiva opera com argumentos sem risco, a lógica indutiva trabalha com argumentos de risco. E tais argumentos arriscados eventualmente estão associados a probabilidades. Em teoria das decisões sabe-se que a melhor decisão não é aquela que produz o resultado mais favorável, mas a que tem bases racionais. 


Por exemplo, fazer uma aposta em um jogo de azar, como loteria, pode gerar um resultado muito favorável. Isso se o apostador conseguir resgatar o prêmio máximo do jogo. No entanto, ao se comparar a probabilidade de se obter qualquer prêmio com a proporção entre o dinheiro investido e o prêmio que se pretende ganhar, fica fácil perceber que a aposta em jogos de azar não é uma decisão com base racional. Aquele que banca um jogo de azar está em considerável vantagem racional sobre quem participa do jogo como mero apostador. Ou seja, jogos de azar promovidos pelos governos federal e estaduais são covardes e indecentes declarações de ignorância àqueles que efetivamente apostam. Este é mais um exemplo que ilustra o descaso de nossos governos com a educação.


Tais ferramentas da teoria das decisões se aplicam a inúmeras outras situações envolvendo probabilidades. Se um empresário precisa decidir se abre ou não um ponto comercial em um determinado bairro, ele pode querer encomendar uma pesquisa de mercado para avaliar a probabilidade de sucesso do novo empreendimento que pretende iniciar. No entanto, tal pesquisa de mercado é realizada por empresas especializadas de consultoria e, portanto, custa dinheiro. Cabe ao empresário avaliar se a quantia cobrada pela pesquisa é justa. E como avaliar o preço de uma informação? É neste momento que entram os modelos da teoria das decisões, os quais utilizam lógica indutiva e probabilidades.


É claro que o emprego desses modelos probabilísticos não garante sucesso na vida real. Mas minimizam riscos, da mesma forma como o professor tem grande sucesso para "adivinhar" as cores preferidas de seus alunos.


Para detalhes sobre lógica indutiva e probabilidades, ver Lógica Indutiva e Probabilidade, de Newton da Costa (HUCITEC, 2008). Para exemplos fascinantes de aplicações de lógica indutiva em problemas do cotidiano, em uma exposição extraordinariamente didática, ver An Introduction to Probability and Inductive Logic, de Ian Hacking (Cambridge University Press, 2001). Para detalhes sobre elementos da teoria das decisões (incluindo a aplicação sobre o valor de informações), ver Análise Multivariada de Dados, de J. F. Hair, W. C. Black, B. J. Babin, R. E. Anderson e R. L. Tatham (Bookman, 2009).

sábado, 17 de dezembro de 2011

Por que não sou associado da APUFPR?

É ingenuidade achar que a matemática e a educação brasileira possam ser alavancadas significativamente com iniciativas dirigidas apenas aos que fazem matemática e àqueles que a ensinam. Uma mobilização nacional ampla e permanentemente atuante sobre inúmeros segmentos sociais se faz fundamentalmente estratégica. Se o câncer social está instalado, somente uma ação em rede pode curar a educação nacional. Para ilustrar minhas preocupações, discuto inicialmente sobre dois eventos que vivenciei. 

Em 2010 lecionei uma disciplina para o curso de Ciência da Computação da UFPR. O índice de reprovação, como usualmente acontece em disciplinas de matemática, foi elevado. Isso se deve à dominante combinação de pelo menos dois fatos: (i) a maioria de nossos alunos de hoje não tem a mais remota ideia do que é estudar e (ii) a maioria dos professores de matemática dos ensinos fudamental e médio tem feito um péssimo trabalho educacional. Quando o semestre letivo terminou, o Coordenador do Curso enviou uma reclamação por escrito ao Chefe do Departamento onde estou lotado. Ele demonstrava estar preocupado com o baixo índice de aprovação na disciplina que lecionei. Essa, por si só, foi uma atitude típica de um administrador que não demonstra saber o que é coordenar um curso de graduação. Ele deveria primeiramente conversar comigo e com todos os alunos. Mas decidiu ignorar as primeiras instâncias apropriadas e encaminhou a tal da reclamação diretamente ao Chefe do Departamento, sem jamais ter conversado pessoalmente comigo antes ou depois. Provavelmente foi medo, o que é compreensível. O assunto, claro, morreu muito rapidamente, como também é de se esperar em uma universidade como a UFPR.

A seguir o segundo evento, antes que eu apresente minhas conclusões.

No primeiro semestre de 2011 lecionei Cálculo Diferencial e Integral para uma turma do Curso de Ciências Biológicas. Aquilo sim foi uma experiência notável. A maioria dos alunos da turma era tão agitada quanto crianças de um jardim de infância que são obrigadas a permanecer sentadas contra a vontade. Estava patente que aquele comportamento infantil não tinha raízes em quaisquer más intenções dos alunos. Não encontrei evidências de que eles quisessem intencionalmente sabotar as aulas. Era simplesmente o jeito deles. Um jeito inocente, apesar de intelectualmente destruidor. Eram adolescentes que evidentemente vieram de famílias desestruturadas, ignorando a existência de procedimentos sensatos para uma convivência civilizada. Tentei inúmeros mecanismos para conquistar a atenção deles durante as aulas. Mas as conversas paralelas em uma turma com cerca de oitenta alunos pareciam ser inevitáveis para aqueles jovens desvairados. E tais conversas paralelas durante uma aula interferem de maneira muito negativa sobre os poucos que estavam genuinamente interessados em aprender Cálculo. Foi então que eu tive uma ideia absolutamente nova (pelo menos para mim). Era uma ideia arriscada (no escopo de meus valores pessoais), mas resolvi tentar.

Propus aos alunos o seguinte: "Já que vocês não conseguem ser civilizados, vou comprar essa civilidade. Todos os alunos que fizerem as três provas previstas, mesmo que as entreguem em branco, estão garantidamente aprovados com média final mínima de 50. A única condição que exijo em troca é que não ocorram mais conversas paralelas durante a aula e nem outras formas de tumulto. Não há também obrigação alguma para assistir às aulas, pois jamais faço chamada."

Inicialmente os alunos não acreditaram que um professor da UFPR pudesse fazer uma proposta dessas e muito menos executá-la. Alguns deles ficaram com receio de que eu teria problemas com a Coordenação do Curso, diante de postura tão radical. Mas rapidamente convenci a todos de que eu falava seriamente. Meu principal argumento foi o fato de que a Coordenação do Curso de Ciências Biológicas não parece levar a sério o emprego de Cálculo Diferencial e Integral em Biologia. Afinal, aquele curso estuda apenas um semestre dessa disciplina, com uma incipiente carga semanal de quatro horas, e sem qualquer diálogo institucionalizado com professores de biologia. Mas a verdade é que eu sei exatamente o que pode provocar problemas reais para um docente da UFPR: praticamente nada. 

Finalmente conquistando a confiança dos alunos, apliquei um processo de seleção natural sobre os futuros biólogos. Apenas uma minoria comparecia às aulas regulares, após o pacto. E estes assíduos estudantes tinham um comportamento quase exemplar. Tive poucos problemas com eles. 

Nos dias de prova praticamente todos os matriculados compareciam. A maioria apenas assinava a folha de questões e a lista de presença, retirando-se em seguida. Mas aquela minoria que comparecia regularmente às aulas tentava efetivamente responder às questões em cada uma das três avaliações que apliquei.

O resultado foi a aprovação em massa na turma. Foram reprovados apenas aqueles que não compareceram às provas, incluindo as de segunda-chamada que eu disponibilizei para todos os que deixaram de fazer alguma das avaliações. Mesmo assim o índice de aprovação foi acima de 90%. 

Curiosamente não ouvi uma única palavra da Coordenação de Ciências Biológicas. Esperei durante meses por qualquer pronunciamento. Por isso não postei essas informações há mais tempo. Ofereci uma chance para que a universidade demonstrasse algum compromisso sério com ensino. E nada aconteceu. Ora, se a Coordenação de Ciência da Computação percebeu alguma irregularidade em um elevado índice de reprovação, por que a Coordenação de Ciências Biológicas não consegue perceber irregularidade alguma em um índice de aprovação que está em completo desacordo com a realidade do ensino de matemática? Não considero honestamente possível um índice de aprovação de 90% em Cálculo Diferencial e Integral para calouros da UFPR nos cursos de Ciências Biológicas, Ciência da Computação, Estatística, Física e Matemática (os cursos que conheci de perto).

Levando em conta estes e inúmeros outros exemplos que presenciei durante mais de vinte anos como docente da UFPR, o que percebo acontecer é o seguinte:

1) Coordenações de cursos de graduação não querem represar alunos reprovados, pois isso demanda o pedido de novas turmas em departamentos que contam com poucos professores.

2) O pornográfico REUNI do Governo Federal ofereceu dinheiro fácil para universidades públicas, desde que elas assumissem o compromisso de elevar seus índices de conclusão de curso para 90%.

3) Os alunos (que universidades como a UFPR têm absorvido em seus quadros) percebem a farsa acadêmica vivida nos dias de hoje. Soma-se a isso o fato de que muitos deles (talvez a maioria) é inadequada para um ambiente universitário sério, e temos então a combinação perfeita para a futura falência total do ensino superior brasileiro.

Não é por acaso que inúmeros países desenvolvidos não reconhecem nossos diplomas de graduação. Isso porque praticamente não há cursos de graduação no Brasil.

O que realmente desejo salientar é que não há conspiração alguma contra a educação em nosso país, pois conspirações são organizadas. Não vivemos mais uma ditadura militar da qual uns poucos se rebelaram décadas atrás. Mas vivemos uma ditadura do comodismo e da absoluta falta de empatia para com a realidade do mundo. O que se desenvolve no seio da vida acadêmica de nosso Brasil é o resultado de ingenuidade perene, pura inocência, tanto de alunos quanto de professores e dirigentes. Nossa vida acadêmica parece dirigida por crianças de um jardim de infância. Não existe massa crítica articulada na vida universitária do país que perceba a farsa que hoje vivemos e que efetivamente faça algo a respeito. Sobre isso remeto à postagem Newton é brasileiro. E daí?

Para concluir minhas evidências anedóticas, encerro com um exemplo mais marcante, vindo de uma bizarra coletividade de professores da UFPR. 

Verba volant, scripta manent, vamos a uma evidência impressa. 


A edição de novembro de 2011 do Jornal Mural da APUFPR-SSIND (Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná/Seção Sindical do Andes-Sindicato Nacional) ilustra claramente a farsa acadêmica hoje vivida. 

Em uma folha grande, impressa em apenas um lado (afinal é um cartaz, pois podemos continuar desperdiçando papel!), esse jornal defende na forma de quadrinhos (sim, quadrinhos! QUADRINHOS!) a importância sobre o limite de 12 horas/aulas por semana para professores com contrato de 40 horas e de Dedicação Exclusiva. O fato de redator e revisor do jornal não saberem conjugar o verbo "orientar" não incomoda tanto. O fato de redator e revisor não saberem que 2:30 PM é um horário do período da tarde e não da madrugada (como dramaticamente sugerem!) também não incomoda tanto. Mas a planilha de Plano Individual de Trabalho para docentes que essa publicação exibe para fins ilustrativos é algo que realmente desanima. Consta lá o seguinte (se o leitor não entender o segundo item, não se assuste; eu também não entendi):

- Aulas - graduação e pós      20 horas
- Preparação/correção de aulas/provas/trabalhos  20 horas
...
- Pesquisa     4 horas
...

Foi o item Pesquisa que me despertou atenção. Como levar a sério um professor universitário que afirma dedicar quatro horas semanais para pesquisa? Que espécie de pesquisa é essa? Se o professor não faz pesquisa alguma, que escreva "eu não faço pesquisa, pô!". Mas se este docente tem a intenção de que alguém civilizado e sensato acredite que ele faça pesquisa, quatro horas semanais é uma piada de muito mal gosto. Não se escreve esse tipo de coisa, professores! Isso demonstra para toda a comunidade acadêmica que nem mesmo a APUFPR (representante da UFPR nos ridículos movimentos de greve!) tem a mais remota ideia do que é uma universidade, pois a APUFPR simplesmente não sabe o que é pesquisa. E se não sabem o que é pesquisa, 12 horas/aula por semana é pouco. Órgãos como a APUFPR parecem implorar ao Brasil para não serem levados a sério por quem efetivamente deveria.

Ou seja, finalmente respondo à questão do título da postagem: porque eu teria vergonha de dizer que a APUFPR me representa, assim como começo a sentir vergonha de dizer que sou professor da UFPR.
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Nota de 26/12/2014: Para conhecer uma das consequências desta postagem, clique aqui. Para uma discussão mais detalhada sobre a APUFPR clique aqui.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Aulas de Matemática Como Histórias


Matemática é uma ciência abstrata. Suas aplicações em situações concretas no dia-a-dia nem sempre ajudam no processo de ensino-aprendizagem, como muitos pedagogos e educadores que abdicaram da razão cegamente creem. Isso porque conceitos como os de conjunto, função, equação, triângulo, matriz, entre outros, não podem ser irresponsavelmente interpretados como objetos físicos, palpáveis. Conjuntos não têm forma. E os demais conceitos matemáticos citados são usualmente definidos a partir de conjuntos. Como conjuntos são meras abstrações que não existem de fato no mundo real - pelo menos nas acepções usuais - então não podemos limitar o ensino de matemática a essa única estratégia. Caso contrário, estaremos castrando aspectos fundamentais desta bela ciência.

Propomos então uma abordagem complementar, com apelo didático e respeito à matemática.

Qualquer ideia nova nesta ciência abstrata esbarra com os seguintes questionamentos:

(i) o que podemos fazer com isso?

(ii) Por que isso deve ser estudado?

E para responder a essas questões propomos o ensino de matemática como o contar de uma história. Mas primeiro precisamos saber o que é uma história.

A maioria das tramas que vemos no teatro, cinema, televisão e literatura conta com uma estrutura dividida em três atos. No primeiro ato a personagem principal é apresentada ao público. No segundo, esta personagem se defronta com uma situação que exerce pressão dramática sobre ela, seja física, moral, psicológica, ética, entre outras possibilidades. A personagem deve reagir, denunciando seu caráter relativamente àquela pressão. E no terceiro ato temos a conclusão de tal reação, a qual deve ser definitiva e irreversível, obedecendo a princípios de causalidade, consistência e cronologia. É claro que há histórias que são exceções a essas regras, mas raramente elas se tornam populares. Tal estrutura foi desvendada pela primeira vez há mais de dois mil anos, pelo grande pensador grego Aristóteles, um matemático.

Cito um exemplo bem conhecido na cultura popular. 

Primeiro ato: um rapaz é filho de um italiano, o qual é chefe de uma família que vive nos Estados Unidos; essa família ganha muito dinheiro com negócios ilegais de jogo, prostituição, proteção e corrupção; no entanto, o rapaz não se envolve diretamente com os negócios da família. 
Segundo ato: em determinado momento outras famílias italianas propõem ao pai do rapaz que os negócios sejam estendidos para drogas; o pai nega e sofre violentas represálias. O filho do italiano decide se envolver nos negócios ilegais, com o aparente propósito de proteger o pai e a família, mas sem ceder aos inimigos. 
Terceiro ato: o filho do italiano mata todos os chefes das famílias inimigas e torna sua família ainda mais poderosa. 

Esta é a história de O Poderoso Chefão, filme de grande sucesso dos anos 1970.

Em matemática podemos ter uma situação parecida, no que se refere à sua apresentação em sala de aula. Um corpo de conhecimento é apresentado aos alunos, em um primeiro ato. No segundo ato, problemas são propostos pelo docente. Mas tais problemas não devem ser um desafio aos alunos, como usualmente se pensa. Os problemas devem ser percebidos como um teste do caráter daquele corpo de conhecimentos! Cabe ao docente dar aos seus pupilos apenas as ferramentas necessárias para que eles mesmos, sob devida orientação, avaliem como esse corpo de conhecimento reage diante daqueles problemas. Ou seja, estamos propondo a visão de que a personagem principal da história contada em sala de aula é a teoria matemática e não o aluno. É como um RPG, no qual os jogadores estabelecem ações e reações de personagens fictícios, de acordo com os atributos de tais personagens e não em consonância com as características do jogador. Finalmente, no terceiro ato, podemos estabelecer se o problema foi resolvido ou não, obedecendo a princípios de consistência e causalidade.

Neste contexto é fundamental que o docente proponha também problemas que não podem ser resolvidos com aquela teoria. Essa não é uma tarefa complicada. No caso da trigonometria, quando se define o seno de um ângulo agudo de um triângulo retângulo como a razão entre a medida do cateto oposto ao ângulo e a medida da hipotenusa, podemos facilmente calcular o seno de ângulos notáveis, usando quadrados e triângulos equiláteros. Mas não conseguimos calcular o seno de ângulos como um radiano, usando a mesma noção. Esse tipo de postura coloca os alunos como avaliadores críticos do conhecimento e não como zumbis que devem simplesmente aceitar tudo o que lhes é ensinado.

Todas as tramas que seguem a aristotélica estrutura em três atos acima apresentada, contam com uma estrutura fina fundamental, a saber, as tramas paralelas. 

Prosseguindo com o mesmo exemplo do filme O Poderoso Chefão: o filho do italiano (Michael Corleone) se envolve emocionalmente com duas mulheres; seus irmãos passam por diversas situações de conflito com familiares e outros mafiosos; protegidos do chefe da família pedem favores etc. Essas tramas paralelas têm a função de se cruzarem com a trama principal e a enriquecerem.

O mesmo pode e deve ser feito no ensino de matemática. Como matemática encontra aplicações em física, biologia, economia e na própria matemática, entre outras áreas, tais aplicações devem ser usadas como atividades paralelas que enriquecem essa ciência abstrata.

Seguir essas ideias corresponde a responder às perguntas apresentadas anteriormente:

(i) o que podemos fazer com isso?

(ii) Por que isso deve ser estudado?

Discutimos abaixo um exemplo de como nossa proposta pode ajudar no ensino de matemática.

No ensino médio brasileiro estuda-se teoria de conjuntos. Os alunos aprendem sobre relações entre conjuntos, como igualdade, pertinência, subconjunto e subconjunto próprio. Estudam também operações, como união, interseção, produto cartesiano e potência. Aprendem a definir funções a partir de conjuntos e até as classificam como sobrejetoras, injetoras, bijetoras e as demais. No entanto, a maioria dos textos didáticos de matemática em nosso país perdem de vista o propósito do estudo de conjuntos. O objetivo da teoria pioneiramente proposta pelo matemático russo Georg Cantor, no final do século 19, era qualificar o conceito de infinito. Cantor percebeu que muitos resultados da matemática poderiam ser esclarecidos se o conceito de infinito fosse devidamente qualificado.

Ou seja, se um professor ou autor de livro mostra noções elementares sobre conjuntos, mas não define (no contexto dessa teoria) o que é um conjunto infinito, está cometendo os seguintes erros didáticos:

1. Ignora o propósito dessa teoria;

2. Não propõe o mais relevante problema que permite testar a teoria (seu caráter);

3. Interrompe a "história" dos conjuntos no primeiro ato.

Após a apresentação das relações e operações elementares entre conjuntos, cabe ao docente provocar os alunos com o seguinte problema: "o que é um conjunto infinito?" Já ouvi as seguintes respostas em sala de aula:

(i) "É um conjunto tal que não é possível contar seus elementos." 

Pois bem, não é possível contar o número de gotas de chuva que precipitaram do céu no ano passado em Curitiba, Paraná. No entanto, esse conjunto não é infinito.

(ii) "É um conjunto que não tem fim." 

Ora, o que é o "fim" de um conjunto? No ensino usual, jamais se menciona qualquer conceito como o "fim de um conjunto". O objetivo do problema é resolvê-lo somente com os ingredientes da teoria. Se usarmos algum conceito não definido, estamos sendo ilícitos. Conjuntos são definidos apenas por seus elementos, sem quaisquer outras informações, como algum alegado "fim". Devemos lembrar que queremos testar a teoria e não os alunos. Ou seja, será que a teoria consegue esclarecer o que é um conjunto infinito, sem que precisemos apelar a conceitos novos?

(iii) "É um conjunto tal que, nunca é possível parar de contar seus elementos." 

Bem, se não conseguimos parar de contar os elementos de um conjunto, isso pode acontecer por incompetência nossa ou por pura falta de tempo. Afinal, um conjunto pode ter 101000 elementos. Se este for o caso, por mais rápido que contemos, todas as gerações da humanidade não terão condições de concluir a tarefa. E ainda assim o conjunto é finito.

(iv) "É um conjunto do qual sempre é possível tirar um de seus elementos, sem que ele jamais fique vazio." 

A crítica a essa resposta é a mesma do item (iii). Como saber se sempre conseguiremos tirar um elemento qualquer?

Após essas discussões, cabe ao docente mostrar e exemplificar o conceito de conjunto infinito. Há muitas soluções a esse problema. Mencionamos apenas uma, por sua elegância. Um conjunto x é infinito se houver subconjunto próprio y de x tal que existe função bijetora entre x e y.

Por exemplo, o conjunto dos números naturais N = {0, 1, 2, 3, ...} é infinito! Isso porque há pelo menos um subconjunto próprio de N, a saber, o conjunto dos números naturais pares p = {0, 2, 4, 6, ...} tal que existe uma bijeção entre N e p. A bijeção é a função f(n) = 2n. Em seguida o professor prova que a função f(n) é bijetora.

No caso de conjuntos finitos (aqueles que não são infinitos) tal função não pode ser obtida. Para convencer didaticamente os alunos, basta que o docente exiba um conjunto finito qualquer, como z = {0, 1, 2} e mostre que todas as funções entre z e qualquer subconjunto próprio de z necessariamente violam sobrejetividade ou injetividade; ou seja, nenhuma delas será bijetora.

A ideia por trás dessa noção de conjunto infinito é o mesmo princípio de contagem usado pelo homem primitivo nos primórdios da história. Para o pastor ter um controle sobre o número de ovelhas em seu rebanho, basta que ele associe cada ovelha a uma pedra em um saquinho. Como o bom pastor sabe diferenciar uma ovelha das demais e uma pedra das outras, tal correspondência bijetora entre ovelhas e pedrinhas se torna uma forma segura de contagem, sem que se saiba contar.

No caso de conjuntos infinitos, não há como contá-los. Portanto, apelamos à noção de bijeção, uma correspondência biunívoca. E esta é mais uma trama paralela que ajuda a compreender a teoria de conjuntos: os métodos antigos de contagem entre analfabetos.

O ideal seria que o professor mostrasse aos alunos que há uma infinidade de "infinitos" na teoria de conjuntos. Essa classificação de diferentes infinitos (alguns são "maiores" do que outros) novamente apela aos conceitos de sobrejeção, injeção e bijeção. É neste ponto que reside parte da elegância da teoria de conjuntos. Um conceito que antes era meramente poético ou teológico (o infinito), é agora também matemático. E aí já apresentamos outra trama paralela.

Para uma visão não técnica sobre um pouco do estado-de-arte das teorias de conjuntos, ver artigo meu publicado em março de 2006 na revista de divulgação científica Scientific American Brasil (páginas 66-72). Para uma visão técnica mas extremamente didática sobre teoria intuitiva de conjuntos recomendo o formidável livro Basic Set Theory, de A. Shen e N. K. Vereshchagin, publicado em 2002 pela American Mathematical Society.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Confissões Eróticas de um Professor de Matemática

Ela é linda. E de boa família. Foi criada pela nata da sociedade. E quando uso o termo "nata" sempre me refiro ao atributo que melhor nos diferencia de outras espécies. Se o leitor não sabe do que estou falando, que interrompa agora mesmo a leitura.

Eu a vi pela primeira vez quando ainda era garoto. Se eu lhe pedisse alguma coisa, ela até fazia, desde que fosse algo simples. Se eu tentasse avançar mais, mostrava-se difícil, resistente. Aprofundar-me nela? Sem chances. Não era antipática. Era apenas intocável, misteriosa. E essa reação natural me atraía cada vez mais.

Cresci sem entendê-la direito. Mas eu sempre a olhava, a admirava, a desejava. Durante a adolescência cheguei ao ponto de ver a sua face nos lugares mais inesperados. De coloridas flores a cinzentas rochas, praticamente tudo me fazia lembrar dela. Eu contemplava as curvas, as sinuosidades, os movimentos parametrizados. E foi quando conquistei coragem o suficiente para cortejá-la.

Eu não sabia exatamente como fazer para deixar claro que a amava. Procurei dialogar, na forma como um adolescente perdido consegue. Inicialmente vivenciei mais frustrações do que prazeres, mais desencontros do que autêntico diálogo. Mas uns poucos segundos de satisfação valiam mais do que meses de angústia por não poder compreendê-la, tocá-la, experimentá-la.

Tornei-me adulto quando entendi que ela não era apenas minha. Outros a tinham. Mas ninguém a possuía por completo. Pois cada um podia contar somente com uma pequena faceta de sua inspiradora existência. Ela não era propriamente poliândrica, apesar de ter se comportado dessa forma discriminatória durante eras, muito antes de eu ter nascido.

Isso mesmo. Ela é mais velha do que eu. Mas a idade apenas lhe fez bem. Seu corpo tornou-se mais belo, mais firme e mais flexível. Seu espírito se liberou com o passar dos anos, abrindo mão de antigos preconceitos. Coisas que antes jamais permitiria, como cardinalidades transfinitas e poéticas mônadas, passaram a fazer parte de seu cotidiano secretamente compartilhado entre uns poucos amantes. E aprendi muito sobre ela através desses amantes.

Entre os apaixonados, descobri que muitos eram ciumentos, alegando que a conheciam melhor do que eu. Outros verdadeiramente se mostraram mais eficazes para conquistá-la e apreciá-la, provocando ciúmes em mim. Mas tratava-se de um ciúme que apenas estimulava a me aproximar cada vez mais dela. Se algum homem ou mulher conseguia vislumbrar uma intimidade por mim desconhecida, lá ia eu em busca daquela visão privilegiada, daquele toque sedutor, daquele odor. E quando eu conseguia sentir o que antes me era oculto, uma onda de prazer me inundava. Mas ainda estava muito longe de ser um orgasmo.

Entre homens e mulheres, a maioria tenta simplesmente tirar proveito dela. Atuam como verdadeiros cafetões e cafetinas, ganhando dinheiro às custas de sua beleza. São profissionais que se limitam a usá-la, sem ponderar sobre o tesouro que têm em mãos. Entre homens e mulheres, não são poucos aqueles que apenas se masturbam, pensando nela. São seres humanos que se contentam com simples representações pictóricas e enganosas de gráficos, diagramas e equações no quadro negro, numa folha de papel ou na fria tela de um computador. Baixam da internet muitas imagens e até vídeos que tentam expor um pouco de sua intimidade. Entre homens e mulheres fico pasmado com outra maioria que a considera fria, calculista, exata, inexpugnável, sem brilho. Estão entre eles incontáveis profissionais das ciências humanas e que perderam a noção do que é ser humano. Entre homens e mulheres percebi também que a maioria faz de tudo para violá-la, corrompê-la, estuprá-la. São aqueles que acham que cinco dividido por zero é infinito, entre inúmeros e deploráveis abusos. Mas a verdade é que, diante dos verdadeiros amantes, ela se mostra cristalina e imprevisível, viva e excitante, linda e misteriosa, rebelde e inexplicavelmente sábia. E sua sabedoria radica não apenas no que ela sabe de si mesma, mas de praticamente todas as demais áreas do conhecimento. E o mais surpreendente é quando ela se mostra conhecedora de nós mesmos.

Experimentei meus primeiros orgasmos com essa deusa de ascendência grega (entre outras origens remotas) quando eu mesmo descobri alguns de seus segredos até então ocultos do mundo inteiro. Gritei aos amantes, cafetões, voyeurs e estupradores, na forma de livros, artigos científicos, palestras, aulas e conversas pessoais. Dessa forma pude compartilhar com uns poucos o prazer vivenciado. Poder desvendar pequenos segredos desconhecidos do resto da humanidade foi uma experiência única, da qual jamais esquecerei. E cada descoberta era como se fosse a primeira vez. É claro que não descobri o inesquecível seio das geometrias não-euclidianas. Mas consegui desvendar microscópicos detalhes da sutil e deslumbrante anatomia de seu corpo. Revelei o contato entre critérios analíticos e topológicos para as cópias falsas de calibre. Atribuí rótulos para indiscerníveis em coleções desprovidas de igualdade. Tratei modos de campos do estado de vácuo como partículas virtuais. Axiomatizei porções da mecânica clássica para desmentir intuições descabidas mas defendidas por muitos precipitados. Tornei modelos da história de amor entre Terra e Lua compatíveis com o primeiro encontro entre os dois astros. Foi muito menos do que sonhei quando a vi pela primeira vez, mas pelo menos posso levar essa pequena felicidade comigo para o túmulo.

Hoje estou cansado. Minhas pretensões diminuiram. Afinal, ela tem uma energia e uma virilidade que não consigo mais acompanhar. Coisas da idade. Meu problema não é a idade cronológica, mas a profissional. Cansei daqueles que me cercam no ambiente de trabalho. Tenho me dedicado prioritariamente aos corruptores que não sabem como amá-la. Cafetões e cafetinas não me preocupam. Dos voyeurs sinto pena pelo tempo desperdiçado e pelo frágil caráter. E daqueles que são desprovidos de empatia por ela, pouco tenho a reclamar. São meros mutantes que se perderam na cadeia evolutiva. Mas nos violadores vejo algo que se estende na forma de um sabor amargo na boca.

Quero simplesmente dizer aos estupradores que eles podem fazer um pequeno esforço para se acalmarem e perceberem que a violência não é contra ela, mas contra eles mesmos. Além disso, o retrato falado que fazem dela apenas esconde dos mais jovens e inexperientes a autêntica beleza que se encerra em seu corpo e alma. E como a maioria dos estupradores é formada por travestis de professores e de autores de livros e apostilas, a influência dessas lamentáveis criaturas se evidencia como uma ameaça à própria civilidade. Isso porque ela sempre responde melhor diante de cavalheirismo. Ela adora ser bem tratada, com carinho e respeito. E carinho e respeito são atributos humanos cada vez mais raros nesta época embrutecida da história do mundo, na qual diálogos íntimos foram substituídos por mensagens eletrônicas em linguagens corrompidas.

Caros violadores. Número complexo não é um número real somado a uma unidade imaginária que multiplica outro número real; isso é apenas a roupa dela; não é ela. Número racional não é uma razão entre inteiros, sendo o denominador diferente de zero; isso é apenas maquiagem; não é ela. Número natural não é um ente que serve para contagem, pois entes estão no domínio da fantasia e da paranormalidade. Seno não se define por uma razão entre um cateto e uma hipotenusa; isso é puro delírio ou mera irresponsabilidade. Matriz não é uma tabela de números encerrados entre colchetes ou parênteses; esta é uma imagem corrompida de sua natureza. Conjunto não é uma coleção de objetos, pois ela não é tão fútil quanto um colecionador de lixo.

Se querem saber quem ela realmente é, que tal procurarem contato diretamente com ela? Garanto que terão uma agradável surpresa, principalmente se abrirem suas mentes e jogarem fora o lixo intelectual que permeia seus corações.

Ela é realmente linda. E precisamos tanto dela quanto ela de nós.