quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Qual é o seu valor?



Ao ler Jorge E. Adoum descrevendo o Líbano do início do século 20, o autor parece estar se referindo metaforicamente ao Brasil de hoje em várias passagens. "Se afastássemos as cabras e o clero seria o paraíso", "Os libaneses combinaram estar sempre em desacordo", "Diante das cataratas do Niagara, o libanês pensaria como cantá-las em versos, enquanto o americano pensaria como explorá-las", "Apesar do libanês adorar sua liberdade, notamos sempre entre o povo a eterna escravidão: o pobre é escravo do rico; o poderoso está sujeito ao governante", "Cada um se sente capaz de tudo, embora não seja capaz de nada". 

Em outras passagens há discrepâncias evidentes. "No Líbano também não existe a mendicância, tendo desaparecido completamente do cenário da vida social esses atores da miséria", "A fome e o frio não perturbam a felicidade do país, e se vier um mendigo de fora, um homem de outras regiões, que viva da caridade, será tão bem recebido como qualquer pessoa libanesa", "Se o habitante do Líbano for ofendido, ou mesmo esbofeteado, pode olvidar a ofensa e perdoar a bofetada; porém, quando se trata de seu nome e sua honra, nem mesmo o rei escapará à sua ira". 

É claro que essa avaliação retrata tão somente um mero ponto de vista, tão subjetivo quanto as avaliações que você leitor possa fazer. Afinal, como bons brasileiros, você e eu provavelmente discordamos em inúmeros pontos sobre o perfil da sociedade deste país. 

No entanto, apesar de diferenças culturais profundas entre povos, vários comportamentos das sociedades parecem apontar para uma busca pelo imutável, pelo invariante, pela constante que permite suportar as variáveis humanas. Na poesia esse imutável é frequentemente retratado pelo eterno, pelo amor maternal, pela fidelidade do firmamento, entre outras visões. O eterno deve garantir a continuidade das gerações, apesar de a cada indivíduo ser emprestada uma vida com começo, meio e fim. O amor de um casal pode se dissolver com o passar do tempo. Mas o amor de uma mãe deve ser eterno, pois não se pode substituir uma mãe por outra. E as estrelas do céu noturno inspiram a confiança de que há uma ordem superior que aponta para a esperança de que algo deve continuar, mesmo quando nossos corpos não puderem mais suportar a vida.

Na mente de muitos outros o único imutável é Deus. Ainda que Deus seja percebido de diferentes maneiras pelos mutáveis humanos, todos os crentes parecem concordar que Ele deve ser eterno, invariante, sempre presente. 

As ciências, por irresponsável analogia minha, também se suportam sobre invariantes. Todas as variadas manifestações de ondas eletromagnéticas devem obedecer aos mesmos princípios das equações de Maxwell. Todas as modelagens de fenômenos físicos devem partir da invariância de momento angular, momento linear, energia total do sistema, ou alguma outra grandeza física que se mantenha constante com o passar do tempo. A topologia dos matemáticos se ocupa dos chamados invariantes topológicos. A dinâmica da vida deve seguir a padrões constantes da evolução das espécies. 

E na vida individual de cada um de nós? O que usamos como referência invariante para suportar a dinâmica de nossas vidas? Em outras palavras, quais são os nossos valores individuais? 

Posições profissionais podem ser conquistadas, mas também perdidas. Mesmo a estabilidade que tanto critico dos funcionários públicos brasileiros e, principalmente, dos professores de instituições federais de ensino superior, não reflete invariância alguma. Pois em algum momento esses profissionais serão aposentados, descartados. E as instituições de ensino que um dia os abrigaram rapidamente esquecerão deles. Há exceções, porém. Não vejo evidências de que tão cedo esqueceremos de Glaci Zancan. Isso porque ela deixou uma marca mais perene do que sua simples presença física neste mundo. Não vejo perspectivas de que um dia esqueceremos de Newton Freire Maia, pois além de obras seminais, ele deixou discípulos que formam hoje outros discípulos. Mas almas como as de Zancan e Maia conquistaram a eternidade não por conta da estabilidade que usufruíram durante suas vidas como funcionários públicos. Eles transcenderam essa ilusória invariância investindo em valores pessoais que genuinamente espelham uma sólida base: o conhecimento crítico e o exemplo pessoal. Se você não sabe quem foram Glaci Zancan e Newton Freire Maia, deve avaliar se essa ignorância ocorreu por mero descuido ou se espelha uma natureza fútil que precisa ser reavaliada.

Bens materiais podem ser facilmente perdidos, mas o conhecimento crítico é algo mais resistente. 

De meu frágil ponto de vista, não vejo como possamos usar Deus como referência para guiar nossas vidas. Sou adepto parcial da visão do grande matemático e crítico cristão Blaise Pascal, que defendia que a condição humana é de miserabilidade. Afinal, se Deus existir, quem somos nós para poder reconhecer ou negar Sua existência? Deus, segundo Pascal, é como o horizonte. Por mais que tentemos alcançá-lo, sempre estará distante demais de uma percepção mais íntima. 

Prefiro abraçar algo que está mais próximo de minha limitada compreensão, ainda que eu não consiga perceber de forma muito clara: a ciência. A ciência sobrevive, mesmo que mude de forma na maneira como pessoas a percebem ao longo dos séculos. Mas, pelo menos, permite que seja tocada e que beneficie ao investigador e às pessoas que o cercam. O que existe em comum entre a ciência do passado e a ciência de hoje é justamente a crítica. Mas não falo da crítica que tenta destruir gratuitamente o que já está aparentemente estabelecido. Falo da crítica que revisa as crenças contemporâneas e que, portanto, avalia até a si mesma. Um exemplo muito bonito é o de Max Planck, quando este introduziu o conceito de quantização de energia eletromagnética. Planck resolveu o problema da catástrofe do ultravioleta, mas não estava contente com sua solução. Acreditava ele que uma ideia melhor era exigida. Isso é crítica. 

O Professor Newton Freire Maia teve momentos, em sua vida, nos quais procurava fervorosamente por Deus. Mas também teve momentos em que questionava o suposto Criador. No entanto, jamais abandonou a ciência ou a educação. Fazia parte de seu íntimo o cultivo do conhecimento científico e a constante crítica. Em meu primeiro encontro com o Professor Maia, tentei iniciar um diálogo para conversar sobre o seu livro intitulado A Ciência Por Dentro (já na quarta edição, naquela época). Ele imediatamente interrompeu e, brincando, afirmou que tudo naquele livro estava errado. Ou seja, o Professor Newton Freire Maia não teve dúvidas apenas a respeito de Deus. Ele teve dúvidas a respeito de si mesmo, como cientista e como pensador. Este é o verdadeiro crítico!

Pode parecer contraditório usar como base de vida a eterna dúvida. Afinal, a incerteza pode parecer aos olhos dos precipitados um terreno pouco seguro. Mas é este terreno que tem garantido nossa evolução e consequente sobrevivência como espécie.

Existem umas poucas evidências de que o Brasil possa despontar em algum futuro distante como uma relevante sociedade no cenário mundial. Sabemos claramente que as melhores universidades do mundo são as norte-americanas. Sabemos também que nosso sistema educacional é um dos piores do mundo. Mas os Estados Unidos contam com certas características que parecem refletir uma sociedade extremamente frágil. Afinal, como pode durar uma nação que conta com várias prisões federais, mas nenhuma universidade federal? No Brasil, pelo menos, existem universidades federais. Nos Estados Unidos não existe saúde universal. É a única nação desenvolvida do planeta que não conta com saúde universal. No Brasil essa realidade é totalmente diferente. Nossas universidades federais são obviamente péssimas, diante do cenário internacional. Nossa saúde pública talvez seja pior ainda. Mas, pelo menos, parece que percebemos a necessidade de educação pública de qualidade e a necessidade de saúde universal, disponível para todos. Tudo o que precisamos fazer agora é avaliar criticamente nosso Estado e revisar o que já temos. Precisamos mudar sim. E precisamos mudar radicalmente. Mas o espírito deve se manter o mesmo: a busca por uma sociedade justa e feliz.

6 comentários:

  1. Muitas pessoas acham que o mais importante na vida é o amor. Na época em que saíram as famosas "camisetas" paz, amor, respeito, etc... cada um vestia aquilo em que acreditava ser o mais importante. Sempre dizia a meus alunos que acima de tudo é o respeito que deve imperar. Respeito pelo pensamento do outro, respeito pelo sentimento do outro, etc. Quantas vezes vemos pessoas que dizem amar e que matam "por amor"? começo este texto dessa forma porque você afirma que são meros pontos de vista subjetivos. Com certeza. Sobre o amor de mãe e amor de companheiros, com certeza podem mudar e até acabar (principalmente quando não se alimenta isso). Mas o que nunca deve acabar é o respeito. Vejo você Adonai, por exemplo, com seu enorme amor e respeito pela ciência e pela educação! Você cuida disso com carinho e duvido que algum dia acabe. Comparando com a maioria das suas postagens, esta me pareceu mais otimista. EU acredito na possibilidade de uma sociedade mais justa e feliz. CLARO que na forma subjetiva que minha limitada mente entende. Mas é para isso que luto todos os dias. Não para a MINHA felicidade, ou melhor, para a minha felicidade sim. Pois vendo que as outras pessoas estão melhores, me sinto mais feliz. Idealismo? pode ser... mas prefiro morrer idealista e tentando. Do que simplesmente desistir e sumir. Agradeço por este post. Sempre repasso aos meus alunos seu blog e este será um estímulo para aqueles poucos que querem mudar. Que querem avaliar criticamente!

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  2. Caro Adonai,
    A busca por invariantes (o que permanece, o imutável) parece ser uma constante na espécie humana, pelo fato de não estarmos simplesmente "no mundo", mas por procurarmos transcende-lo. Nossa existência, para usar um jargão existencialista, não é dada, mas construída como "projeto" (um projeto existencial). O interessante é que para Sartre, por exemplo, no final das contas toda existência (humana) é absolutamente absurda e inútil, consequentemente também toda construção humana, seja ela a religião, a ciência ou a arte. Citando este autor: "todo Ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso".
    Gilson.

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    1. Gilson

      Não consigo rebater as ideias citadas de Sartre. Mas o principal fator que justifica minha continuidade neste mundo é a curiosidade. Tenho curiosidade para saber aonde isso tudo vai chegar. Apenas lamento que não viverei tanto quanto eu gostaria, para ver para onde este mundo caminha. Cito um exemplo: dobra espacial.

      Já há alguns anos se admite a dobra espacial como uma possível forma de deslocamento no espaço. Eu realmente gostaria de ver isso acontecer na prática. Mas tal tecnologia só terá chances de se transformar em realidade quando eu já estiver morto há muito tempo. Uma pena.

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    2. Bem, acho que nossa necessidade de viver é meramente instintiva, o resto é racionalização. De qualquer modo, também acredito que o melhor da vida são a filosofia e a ciência. A primeira por que nos faz suportar nossa finitude, contra as esperanças patéticas da religião; a segunda, por que nos dá a esperança de um dia nossa espécie poder prolongar nossa vida quase que indefinidamente. É pena que não estaremos aqui para ver o sucesso ou o fracasso humano.

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  3. Esse é o 'post' mais otimista que já vi nesse blog! :)

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  4. "Mas o amor de uma mãe deve ser eterno, pois não se pode substituir uma mãe por outra"

    O amor de pai também deve ser eterno, pois não se pode substituir um pai por outro.

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