segunda-feira, 3 de setembro de 2012
Medição sem Interação
Esta postagem é para quem leva ciência a sério.
A luz tem um comportamento contraditório, pelo menos do ponto de vista da maneira como a percebemos em laboratório. Por um lado ela demonstra ter todas as características de uma onda, com frequência, comprimento de onda, fase e amplitude perfeitamente mensuráveis. Por outro lado, também demonstra ter uma natureza corpuscular. Há várias evidências disso, como a quantização da energia de qualquer tipo de radiação e a detecção de fótons (o nome que se dá ao quantum de luz) individuais em chapas fotográficas. A aparente contradição se dá pelo fato de que ondas se propagam pelo espaço ao redor da fonte, enquanto partículas deveriam ser incapazes de fazer isso. No entanto, a luz parece ser formada por partículas que de algum modo têm seu comportamento dependente de condições de contorno, mesmo que ela não tenha interação diretamente detectável com tais contornos. A este fenômeno se dá o nome de não-localidade.
Existe uma brincadeira simples que pode ser feita em casa para demonstrar o comportamento contraditório da luz. Se você ligar uma caneta laser e apontar o feixe de luz diretamente para uma parede, fica claro o comportamento corpuscular. Afinal, a luz é emitida pela fonte e atinge um ponto específico da parede, conforme a vontade do usuário. Isso sugere partículas (corpúsculos) emitidas por uma fonte, atingindo uma região muito limitada do espaço. Portanto, não há evidências detectáveis de que a luz do laser esteja se propagando por todo o espaço ao redor, a não ser por pequenos fenômenos de espalhamento devidos à interação dos fótons do laser com partículas de gases e pó entre a fonte e o alvo (parede). Em condições ideais de vácuo, esse espalhamento residual simplesmente não existiria.
Agora vamos para a próxima etapa da brincadeira, assumindo que seu laser é o mais comum e barato, ou seja, vermelho. Fixe a caneta laser ligada em posição horizontal, sobre uma mesa. Ela deve estar a uma distância de uns quatro metros da parede. No ponto médio, coloque um fio de cabelo no caminho do laser, de modo a dividir a trajetória daquele feixe de luz coerente em dois caminhos: à esquerda do fio de cabelo e à direita. Este é o célebre experimento das duas fendas. Os dois lados do fio de cabelo operam, na prática, como duas fendas ou dois caminhos pelos quais o feixe de laser deve passar simultaneamente.
Agora observe o padrão de luz detectado na parede, dois metros adiante do fio de cabelo. Você perceberá a formação de várias linhas espectrais de luz vermelha. Se a luz tivesse apenas comportamento corpuscular, não haveria mais do que dois pontos luminosos sobre a parede: um correspondente aos fótons que passaram pelo lado esquerdo do fio de cabelo e outro correspondente aos fótons que passaram pelo lado direito. No entanto, o que se observa é algo totalmente diferente: vários pontos de luz à esquerda e vários à direita. A explicação usual para este fenômeno é o comportamento ondulatório da luz. A luz emitida pela fonte do laser é coerente. Isso significa que cada fóton tem o mesmo comprimento de onda e a mesma fase. Quando os fótons passam pelo fio de cabelo, separando seus caminhos em dois, o comprimento de onda não muda, mas a fase se altera. Desta forma, fótons com diferente fases interferem entre si de forma construtiva e destrutiva. Quando ocorre interferência construtiva na parede, percebe-se luz vermelha. Quando ocorre interferência destrutiva, nenhuma luz é detectada. Ou seja, escuridão na parede não significa ausência de fótons. Significa apenas que os fótons que atingiram aquela região estão com uma diferença de fase destrutiva. É o caso em que luz somada à luz gera escuridão. Por isso temos regiões de escuridão alternadas com regiões de luz sobre a parede. Portanto, para explicar a existência de múltiplos pontos de luz, apela-se usualmente ao conceito de onda.
Tal brincadeira pode ser usada até mesmo como instrumento de medição do diâmetro do fio de cabelo. Conhecendo-se o comprimento de onda da radiação laser e as distâncias entre fonte, fio de cabelo e parede, basta medir as distâncias entre os pontos de luz projetados sobre o alvo e aplicar mecânica ondulatória elementar. Trata-se de um processo de medição muito mais preciso do que o emprego direto de réguas e mera inspeção visual direta.
Esta brincadeira, em laboratório, comumente é modificada para um arranjo experimental diferente, mas equivalente. Trata-se do interferômetro de Mach-Zehnder, conforme a figura abaixo, retirada de artigo que fiz anos atrás em parceria com o filósofo Otávio Bueno.
Na figura, M1 e M2 são, respectivamente, Espelho 1 e Espelho 2. BS1 e BS2 são semi-espelhos (1 e 2), com eficiência de 50%. Isso significa que qualquer fóton que atinja um dos semi-espelhos terá 50% de chances de ser refletido e 50% de chances de seguir adiante. LD e DD são chapas fotográficas. A posição dos espelhos, dos semi-espelhos e das chapas fotográficas é feita de tal modo que LD receba apenas fótons com interferência construtiva e DD receba apenas fótons com interferência destrutiva. Na prática isso significa que qualquer fóton emitido pela fonte S deve ser detectado 100% das vezes na chapa LD e jamais na chapa DD. Ou seja, o primeiro semi-espelho opera como o fio da cabelo na brincadeira acima. Já os espelhos e o segundo semi-espelho têm a função de coordenar a separação entre interferências construtivas e destrutivas.
Pois bem. Agora vamos a um aspecto mais bizarro ainda do interferômetro de Mach-Zehnder. No início dos anos 1990 os físicos Avshalom Cyrus Elitzur e Lev Vaidman publicaram um resultado inesperado, apesar de aparentemente óbvio. Imagine que você coloque um objeto opaco no caminho entre BS1 e M2. Uma vez que o primeiro semi-espelho opera como um separador de caminhos (analogamente ao fio de cabelo do início deste texto), este objeto funciona simplesmente como uma obstrução de um dos caminhos. Com esta obstrução, qualquer fóton emitido pela fonte S de luz coerente está fadado a jamais encontrar interferência no caminho, seja destrutiva ou construtiva. Portanto ele terá comportamento exclusivamente corpuscular. Isso significa que as chances de ele ser detectado na chapa LD se reduzem a 50%. Analogamente, as chances de ser detectado na chapa DD sobem de zero para 50%.
O que se infere disso tudo?
Considere que o tal do objeto opaco é uma bomba sensível à luz: basta um fóton incidente para fazê-la explodir. Imagine agora que o físico experimental emita um fóton de luz coerente a partir de S. Existem três possibilidades:
(i) o fóton é refletido por BS1 e faz a bomba explodir;
(ii) o fóton passa direto por BS1 e é posteriormente detectado em LD;
(iii) o fóton passa direto por BS1 e é posteriormente detectado em DD.
Nas duas últimas possibilidades a bomba não explode. Mas é justamente a terceira possibilidade que desperta a atenção dos físicos. Isso porque qualquer fóton detectado em DD (a chapa na qual não se espera detecção de fóton algum, no caso do interferômetro estar com todos os caminhos desobstruídos) denuncia a existência de algum objeto opaco dentro do interferômetro. O fóton detectado em DD é o negativo de uma foto de um ponto específico da bomba. Isso significa que é possível fotografar uma bomba sensível à luz sem explodi-la. Temos, portanto, uma medição sem interação. Medição no sentido de detectarmos parte do contorno de um objeto opaco. Sem interação no sentido de que não incide um único fóton detectável sobre ele.
Vale observar que esta medição espacial tem sérias restrições métricas. Isso porque ela não permite dizer onde está o tal do objeto opaco. Ele pode estar entre BS1 e M2, entre BS1 e M1 ou entre M2 e BS2. Ou seja, temos aqui uma experiência que denuncia a estrutura topológica do toróide cortado definido pelo interior do interferômetro (quando o objeto opaco está lá dentro), mas não a sua estrutura métrica. Até onde sei, é a primeira vez que esta conclusão é publicada em algum lugar: neste blog.
A eficiência de medição do objeto opaco através de detecção de fótons na chapa DD é pequena. Apenas em 25% das vezes em que o experimento é executado podemos ter certeza de que há uma bomba fotossensível no interior do interferômetro sem explodi-la. No entanto, posteriormente este experimento foi aperfeiçoado usando o chamado efeito Zenão quântico. Até a época em que acompanhei a literatura especializada, havia registro de fotografias de objetos macroscópicos com esta técnica, atingindo uma eficiência acima de 80%. Teoricamente essa eficiência pode ser tão próxima de 100% quanto quisermos.
Na última vez em que estive nos Estados Unidos, fiz uma generalização deste arranjo experimental para ondas materiais. O trabalho foi feito em parceria com o filósofo brasileiro Otávio Bueno.
Ondas materiais são formadas por partículas materiais como elétrons, nêutrons, átomos ou mesmo moléculas. Isso porque fótons não são as únicas partículas com comportamento ondulatório. Componentes de matéria também contam com a dualidade onda-partícula.
Mas a interferometria de ondas materiais é muito mais ardilosa. Isso porque ela não pode contar com instrumentos óticos para a sua observação. O instrumento que usamos em nosso experimento hipotético é o chamado interferômetro de Mach-Zehnder de três grades, conforme a Figura abaixo.
No lugar de espelhos ou semi-espelhos temos grades de cristal, membranas de difração nanofabricadas ou as conhecidas laser standing waves. Tais grades não dividem os possíveis caminhos em apenas dois, mas em várias ordens de divergência. Além disso, com a única exceção da interferometria de elétrons concebida por Akira Tonomura, partículas materiais não podem ser emitidas individualmente. Há limitações tecnológicas consideráveis. Por isso nossa proposta ainda deve aguardar um bom número de anos até ser realizável na prática. Mas o que Bueno e eu propomos em artigo publicado na americana Foundations of Physics Letters é uma técnica que permite, entre outras coisas, detectar campo elétrico sem perturbação alguma em qualquer carga-prova.
O que Bueno e eu fizemos foi estender a medição sem interação de Elitzur e Vaidman para objetos físicos que não sejam apenas objetos opacos. Ou seja, estendemos a proposta para a detecção de campos elétricos e magnéticos. Até mesmo para campos gravitacionais discutimos sobre um possível arranjo experimental.
Do ponto de vista filosófico a medição sem interação ainda precisa qualificar com maior precisão o que, afinal de contas, é interação. Renato Angelo, do Departamento de Física da Universidade Federal do Paraná, tem procurado responder a essa questão. Do ponto de vista matemático, a dissociação física da estrutura topológica do espaço é algo que também precisa ser melhor compreendida.
Isso significa que esta postagem oferece ao jovem brasileiro uma perspectiva real de pesquisa futura. Neste contexto apresento abaixo mais uma sugestão ao jovem pesquisador.
Definir de maneira matematicamente precisa o que é não-localidade em mecânica quântica. Vejo muitas definições absurdas para não localidade. A única visão sensata que consigo admitir é a seguinte: um sistema quântico de duas ou mais partículas é não-local se, e somente se, ele não puder ser dividido em subsistemas não triviais.
Para colocar em prática a tradução desta visão em termos matematicamente precisos vejo apenas uma única maneira: axiomatizar de forma sensata a mecânica quântica.
Por axiomatização sensata da mecânica quântica entende-se o seguinte: um predicado conjuntista que traduza da forma mais fiel possível tudo aquilo que se sabe de mais relevante sobre os fatos experimentais da mecânica quântica.
Sobre predicados conjuntistas devo escrever em breve neste blog.
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Olá professor Adonai. Excelente texto. Você levanta questões interessantes sobre como devemos pensar sobre montagens experimentais e gostaria de emitir uma opinião. Mas antes, uma pergunta: por que é tão difícil para um físico trabalhar com fundamentos? (E isso não é só no Brasil.) Meu primeiro comentário é sobre sua descrição do comportamento onda-partícula como contraditório. Por que as pessoas acham isso? Um feixe coerente de ondas sonoras em altas frequências se comporta da mesma maneira que seu laser. O comportamento corpuscular das entidades envolvidas é, em minha opinião, uma interpretação posterior de como a luz interage em pequenas escalas de energia (nas quais há restrição sobre a transição de estados). Se deslocarmos nosso foco para isso (o fato de que todas as coisas são ondas), então os fenômenos da mecânica quântica passam a ser intuitivos (pode bater - eu acho a MQ intuitiva). O conceito de localidade torna-se absurdo. "Onde está a onda" é uma questão que não faz muito sentido. Com relação à medição sem interação, talvez seja necessário, antes, dar uma boa definição de "medição". Isso porque, em minha opinião, medição é o processo no qual alguma informação migra do sistema medido para o sistema medidor. Na MQ estes sistemas não podem ser tratados independentemente e, ainda que não haja luz defletida ou absorvida, os estados destes subsistemas se alteraram. Tenho esta opinião porque informação pode ser encarada como uma forma de energia, muitas vezes negligenciada em cálculos de entropia. E a entropia é implacável, ainda que no âmbito quântico (adoraria, um dia desses, discutir sobre informação quântica). Com relação ao que você disse sobre a axiomatização da mecânica quântica, estou de pleno acordo. E a palavra chave é "sensata". Não sei por que raios as pessoas acham que MQ é insensata e a maioria das propostas que vejo é assim. Eu tenho uma proposta (veja bem, é um plano de trabalho, nada concreto) para uma axiomatização "intuicionista" da MQ. Mas é praticamente impossível fazer um físico parar para ouvir. Sou doutorando e preciso de uma pesquisa "concreta" para desenvolver. Aqui, álgebras de Heyting nunca serão um tópico da matemática aplicada (da física teórica então, esqueça).
ResponderExcluirMuito bom seu texto.
Luiz Henrique
ExcluirTentarei responder às suas questões da maneira mais clara possível. No entanto, devo observar que suas questões têm demandado discussões incrivelmente extensas, gerando livros, artigos e palestras ao longo de décadas no mundo todo. Se alguma resposta minha ainda permanecer obscura, não hesite em insistir no questionamento.
1) Não posso responder pelos físicos em geral. Posso apenas oferecer uma opinião pessoal. Estudar fundamentos da física não é fácil. Exige uma postura interdisciplinar que implica em colaboração entre áreas com caráter epistemológico muito distintos. Filósofos têm uma maneira de pensar e agir muito diferente de físicos. Matemáticos também. Trabalhar como um físico teórico no sentido estrito do termo (o sujeito que modela matematicamente fenômenos físicos) já é uma tarefa hercúlea. Agora fundamentos... Em suma, acho que a grande dificuldade é estabelecer uma linguagem, uma metodologia e uma epistemologia em comum entre física, filosofia e matemática.
2) Ondas sonoras têm um caráter físico muito diferente do comportamento ondulatório da luz. Para início de conversa, ondas sonoras dependem de um meio material para propagação. Luz não depende disso. Em segundo lugar usualmente ondas sonoras não são tratadas quanticamente. Em terceiro lugar, o formalismo da mecânica quântica dá margem a muitas dúvidas sobre interpretação. Como pode um único fóton interferir consigo mesmo, ao passar pelas duas fendas? E este é um fenômeno registrado experimentalmente como um fato. Não existe análogo na física clássica, incluindo mecânica ondulatória clássica. Em 1995 o norte-americano Patrick Suppes, o brasileiro Acácio de Barros e eu tentamos fazer um análogo quântico para ondas descritas classicamente. Mas a coisa não funcionou bem. Um exemplo análogo bem conhecido é a interpretação Bohmiana para a mecânica quântica. Em tal teoria cada fóton é uma partícula com posição e velocidade bem definidas. No entanto há uma onda que acompanha essa partícula. Tal onda, porém, necessariamente tem comportamento bizarro. Por exemplo, ela não diminui a intensidade conforme a distância propagada.
Continuo abaixo...
Continuando...
Excluir3) Você tem razão quanto à necessidade de qualificar o conceito de medição. Medida é fácil. Mas medição...
4) Não entendo exatamente em qual contexto você ouviu as pessoas dizerem que mecânica quântica é insensata, mas, em certo sentido, eu também penso assim. Dou dois exemplos. Mecânica quântica é a única teoria física que emprega probabilidades sem necessariamente apelar à interpretação frequencial. É claro que todos os experimentos em mecânica quântica dependem de repetições de experimentos, por conta do caráter probabilístico. Mas ainda existem as interpretações livres de variáveis ocultas, as quais sugerem interpretações não frequenciais para a mecânica quântica. No entanto, jamais vi qualquer menção clara sobre a álgebra de eventos (a sigma-álgebra) destes supostos espaços probabilísticos. Como podem os físicos saber se realmente lidam com probabilidades se jamais explicitaram a álgebra de eventos? Não é assim que se aplica probabilidades! Este é um exemplo de diferença epistemológica entre física e matemática. Meu segundo exemplo é sobre a relação spin-estatística, fundamental para compreender certos fenômenos de baixa energia. No entanto, todas as demonstrações desta relação (sem uma única exceção!) são feitas no regime relativístico (altas energias). Afinal, a relação spin-estatística é teorema ou não no regime não relativístico? É neste regime que ocorrem as aplicações!
5) Se você quer real atenção dos físicos sobre um trabalho de fundamentos, precisa mostrar pelo menos uma aplicação inédita importante. Ou seja, você precisa explicar aquilo que as teorias existentes ainda não conseguiram. Se deseja criar uma axiomatização intuicionista para a mecânica quântica, tente usar isso para fazer o que as formulações usuais ainda não conseguiram, como, por exemplo, provar que a relação spin-estatística é teorema (ou não) no regime não relativístico. Ou seja, se você quer trabalhar em uma formulação nova para alguma teoria física, deve ter em mente pelo menos um problema específico para resolver. Publicar em periódicos científicos bons é difícil. Mas publicar material relevante, isso sim é desafio. O mesmo vale para as álgebras de Heyting.
Espero ter estimulado.
O Brasil fora convidado a participar do ESO e do CERN por um valor simbólico... Na sua opinião essas parcerias fariam um bem pra Ciência brasileira? E em que pé estão essas negociações?
ResponderExcluirAnônimo
ExcluirNão estou acompanhando essas negociações. Apenas conheço brasileiros que trabalharam no CERN. Dependendo do pesquisador, esse tipo de experiência pode ser muito interessante para ele. Mas comumente não é o caso. A disputa nesses lugares é muito intensa.
O que seria mais vantajoso para um país como o nosso, tão isolado da comunidade científica internacional, seria um maior investimento em áreas do conhecimento para as quais os grandes centros de pesquisa ainda não deram muita atenção. É a mesma estratégia usada pela Polônia, décadas atrás, tornando aquele país uma referência mundial em lógica e topologia.
Investimento não se faz apenas com dinheiro, mas principalmente com estratégia.
Olá Professor Adonai. Estou com duas dúvidas, nos últimos meses estou estudado (de forma superficial) a Mecânica Bohmiana e a principio me pareceu no mínimo mais coerente do que a Mecânica Quântica usual. Percebi que os físicos não gostam muito dessa interpretação da MQ, qual seria o motivo deste “preconceito” com formulação de Bohm da MQ? Sobre a definição matemática da não-localidade, será que teria vantagens em tentar fazer no ponto de vista da Mecânica Bohmiana? pois essa formulação já é não não-local.
ResponderExcluirRodrigo
ExcluirExistem pelo menos duas críticas pertinentes à mecânica bohmiana:
1) Trata-se de uma teoria metafísica, uma vez que a onda-guia da partícula não é diretamente detectável.
2) É, até onde sei, uma teoria que não pode passar pelo processo de segunda quantização (para explicar fenômenos de alta energia).
Além disso, já vi muitas explicações ad hoc em mecânica bohmiana para explicar fenômenos como EPR (apelando aos famosos wormholes). E esse tipo de atitude cria resistência a credibilidade.
Olá Adonai. Permita-me comentar alguns pontos.
ResponderExcluirConcordo com o que disse em (1). Só acho que nos afastamos sistematicamente desta tarefa na medida em que esta maneira reducionista que permeia a ciência se faz presente. As linguagens empregadas por físicos, matemáticos e filósofos estão tão distintas que me pergunto até quando será possível efetuar traduções. Sonho em um dia poder aproximar estas maneiras de pensar. Por exemplo, físicos nunca deveriam tirar o pé da filosofia (principalmente teóricos).
Ponto (2): sim, é claro que ondas sonoras têm comportamento físico distinto de eletromagnéticas, mas as diferenças não são tão grandes assim. Em primeiro lugar, o comportamento corpuscular da luz se deve basicamente a dois fatos: à maneira como interage com a matéria (esta é uma das grandes diferenças entre luz e som, em conjunto com a necessidade de um meio de propagação) e ao princípio de superposição (graças à linearidade das equações de Maxwell). Muito do tratamento da MQ é simplificado ao lembrarmos que a interação entre luz e matéria é ainda uma interferência entre ondas, sujeitas a vínculos de confinamento. Assim, a interação entre um fóton e um elétron pode ser vista como uma colisão de partículas, mas isto não é necessário (nem, creio eu, filosoficamente correto). Em segundo lugar, não é verdade que som não receba um tratamento quântico. Em cristalografia é frequente a necessidade de se lidar com "fônons". E estes interagem consigo mesmos ao passar por defeitos na rede. É um problema de escala. Sobre a mecânica Bohmiana, esta é uma das teorias que classifico como bizarra. Mas veja, é minha opinião e tão somente isso. Justifico com o seguinte argumento. Ao recebermos um sinal (qualquer sinal ondulatório), para determinar quais frequências estão presentes e quais estão ausentes, devemos analisar tal sinal durante um certo tempo. A resolução deste sinal será tão melhor quanto mais tempo despendermos a tal tarefa. Quanto menor for este tempo, menos informação teremos sobre o sinal. Esta relação tempo-frequência admite um análogo espaço-número de onda, ou seja, posição-velocidade. É nossa maneira de medir as coisas. Qualquer teoria na qual se admita posição e velocidade bem definidas (e outros pares conjugados) é filosoficamente incompatível com a teoria da informação em sistemas físicos.
Continua.
Luiz Henrique
ExcluirDevemos tomar cuidado. Uma coisa é onda eletromagnética no formalismo de Maxwell. Outra é o comportamento ondulatório de fótons na mecânica quântica. Para perceber bem a distinção, proponho então um desafio realmente interessante para você: consegue violar as desigualdades de Bell usando ondas eletromagnéticas clássicas (formalismo via equações de Maxwell)?
Entendo o que quer dizer. É por isso que mencionei que era um problema de escala. O comportamento de fônons também é distinto do de uma onda clássica. Também não me surpreenderia se facilmente a desigualdade de Bell fosse violada para ondas eletromagnéticas clássicas. O eletromagnetismo de Maxwell é uma teoria de campos. Não existe uma teoria de campos para o caso quântico (sei que agora muita gente vai me bater, mas o que chamam teoria quântica de campos é especulativa demais para merecer a alcunha de teoria, na minha opinião, é claro). Meu argumento é que uma reinterpretação para pequenas escalas de fenômenos ondulatórios é suficiente para explicar comportamentos quânticos (mas note que uma reinterpretação se faz necessária). Como exemplo, a mecânica bohmiana adota justamente uma postura oposta a esta e foi por esta postura que fiz a crítica. Vou abraçar sua sugestão de exercício assim que possível.
ExcluirObrigado.
Luiz Henrique
ExcluirSe entendi suas colocações, permita-me sugerir dois artigos:
P. Suppes, J. Acacio de Barros, and Adonai S. Sant'Anna, "Violation of Bell's Inequalities with Local Photons," Foundations of Physics Letters, 9, 551 (1996).
P. Suppes, Adonai S. Sant'Anna, J. Acacio de Barros, "A Pure Particle Theory of the Casimir Effect," Foundations of Physics Letter, 9, 213 (1996).
Ops, perdão. Estava com um pouco de sono quando escrevi o comentário. Na verdade a intenção era dizer que não me surpreenderia se o eletromagnetismo clássico não reproduzisse o comportamento quântico do fóton (devendo portanto obedecer a desigualdade de Bell). Passando a vista nos artigos, pude perceber que a postura é justamente esta, de que o raciocínio clássico não é adequado ao tratamento da MQ. Assim que possível vou ler com calma os artigos. Tenho certeza de que será uma leitura agradável, obrigado. Neste mesmo espírito, acho que também deve haver uma reinterpretação do que significa uma informação transitar por um sistema, daí a necessidade de se reinterpretar medição. A pergunta que me persegue neste ramo é a seguinte. Supondo que o raciocínio adequado para a MQ seja em termos ondulatórios, qual o sentido em considerarmos pontos em um espaço? Isto é utilizado na(s) teoria(s) da MQ em todo lugar, indiscriminadamente. Acho as propostas geralmente apresentadas da MQ fundamentalmente contraditórias.
ExcluirExatamente, Luiz Henrique. É o que se espera de uma teoria local como o eletromagnetismo clássico. Agora dá uma olhada em
Excluirhttp://xxx.lanl.gov/abs/quant-ph/9606020
Fortemente acredito que existe um erro grave neste preprint que jamais foi publicado, apesar de eu não ser capaz de dizer onde está. Houve até mesmo um certo atrito entre Suppes e eu por conta deste trabalho.
Com relação à sua pergunta, acredito que as confusões existentes sobre não-localidade se fundamentam justamente no emprego do espaço clássico no formalismo.
Continuando.
ResponderExcluirEu meio que não concordo com o ponto (4). Um sistema quântico pode ser definido pela sua álgebra de observáveis, completada para uma C*-álgebra (tudo bem, não concordo com esta técnica por não tratar de forma adequada operadores não limitados, mas é assim que as coisas são feitas...) e esta álgebra possui uma representação irredutível com um vetor cíclico. Isto define um espaço de medida (Borel, regular) que pode ser normalizado de modo a obtermos um espaço de probabilidades. Assim a sigma-álgebra do sistema é bem conhecida, ainda que, admito, de maneira canhestra. Com relação à última parte deste ponto, não fico surpreso. Spin é um objeto relativístico e não quântico. Spin tem sua origem nas propriedades das transformações de Lorentz, então acho difícil que saia deste escopo. Antes que reclame, a relação spin-estatística é um fenômeno quântico, mas spin não. Não faz muito sentido um tratamento axiomático da mecânica não relativística que leve em conta o spin.
Sobre o ponto (5), obrigado pelo conselho. Sei o que quer dizer, mas deve concordar que só é possível resolver uma questão inédita quando a pesquisa fornece algum resultado. Só é possível fornecer algum resultado se há algo parcialmente pronto. Usar isto como critério para iniciar uma investigação é contraditório. Esta é minha crítica à posição dos físicos a respeito. Isto confere à comunidade uma inércia intelectual difícil de vencer. Há portanto, uma resistência inerente ao pensamento inovador. Mas, concordo, isso preserva a comunidade de lidar com inúmeros casos de pessoas que se dizem gênios incompreendidos, quando na verdade são idiotas bem compreendidos.
Quero deixar claro que minha posição discordante aqui reflete o respeito e a profunda admiração que tenho por seu trabalho como pesquisador. Há pouquíssimas pessoas capazes de um trabalho realmente sério que una filosofia, matemática e física (sem abrir a "torneirinha de asneiras"). Considero você uma destas pessoas. Discordar neste espaço me estimula e me faz crescer. Obrigado.
Luiz Henrique
ExcluirExemplo muito bem lembrado. No entanto, há um porém. Quando mencionei sobre a falta de uma visão explícita para a álgebra de eventos na mecânica quântica eu estava me referindo à formulação canônica via espaços de Hilbert. É claro que eu deveria ter sido mais claro sobre este ponto. Mas esta é uma questão fundamental. Afinal, se examinarmos certas formulações algébricas para a mecânica quântica, encontraremos várias discordâncias básicas em comparação com a formulação canônica. Por exemplo, na teoria algébrica desenvolvida por Rudolf Haag a mecânica quântica é uma teoria local, o que contradiz a visão usual. Ou seja, o que, afinal de contas, é mecânica quântica? Existem várias formulações não equivalentes entre si.
Perfeito comentário. Do que vi até hoje, todas as versões propostas para mecânica quântica continham problemas sérios de fundamentos. A versão que citou de Rudolf Haag não é exceção. Na verdade, acho que são todas equivalentes. Nelas, qualquer afirmação é teorema. A postura que defendo nos meus círculos de pesquisa (participo de um grupo de pesquisa em física-matemática) é que está na hora de juntarmos toda a informação que temos sobre as experiências feitas e recomeçar a teoria do zero. Não adianta insistir em remendar uma teoria quântica que possui uma filosofia de pensamento clássica em sua elaboração. A MQ exige uma mudança de postura filosófica. O que temos foi um passo importante, mas deve ser deixado para trás. (Mas minhas ideias não são exatamente populares em meu grupo.)
ExcluirLuiz Henrique
ExcluirAlgo parecido com essa proposta foi realizado pelo físico alemão Ludwig. Tratam-se de dois volumes publicados pela Springer Verlag (décadas atrás), na qual Ludwig desenvolve uma axiomatização para a mecânica quântica usando fatos experimentais como ponto de partida. Uma pena, porém, que a formulação dele seja tão indigesta.
Não sabia disso! Muito obrigado, é justamente esta postura que defendo. Vou procurar os textos.
Excluir