Esta é uma postagem extraordinária feita a pedido de alunos meus da última turma que tive antes da minha aposentadoria na UFPR. José Silva, Nicolas Scholze, Mateus Madeira, Luís Nadalin, Igor Schemberg, João Almeida, Bruno Bonassoli, Juliano Rodrigues, Fernando Lima Filho, Tiago Galu, Yanko Soares e Cezar Glislere juntaram esforços e me deram um livro como presente de despedida: o romance Nada Mais Será Como Antes, de Miguel Nicolelis (segunda edição). Além do livro, minha esposa e eu ganhamos um fantástico jantar com a companhia de vários deles. Em troca, esses alunos pediram para eu escrever e publicar uma nova postagem neste blog, o qual encerrou as suas atividades há algum tempo. Pois bem, aqui está.
Escolhi como tema um assunto relacionado às aulas de fundamentos da matemática que tive a oportunidade de lecionar para esses alunos. A questão que proponho responder é a seguinte: como fazer matemática sem jamais usar equações?
Antes de responder a essa pergunta, alguns conceitos precisam ser qualificados.
1) O que é matemática? No contexto aqui proposto matemática se refere aos ramos do conhecimento que lidam com sistemas formais tipicamente encontrados em cursos e livros de graduação e pós-graduação em matemática, física, engenharias e estatística: cálculo diferencial e integral, análise matemática, equações diferenciais, álgebra, álgebra linear, análise funcional, teoria da medida, probabilidades, análise numérica, teoria de distribuições, teoria dos números, entre outros. Ou seja, se alguém escreve uma equação diferencial como dy/dx = 5y, isso é matemática, desde que os conceitos envolvidos sejam devidamente qualificados de uma forma usual.
2) O que é uma equação? Há várias maneiras não equivalentes entre si para conceituar equações. Mas, nesta postagem, adoto uma única delas, a qual é a mais comum. Uma equação é uma fórmula x = y, onde x e y são termos e = é a igualdade na teoria de conjuntos ZF. Ou seja, uma equação é um string `termo igual a termo'. Uma das grandes vantagens de adotar essa concepção é o fato de que ZF é expressiva o bastante para lidar com matemática no sentido do item 1 acima. Outra vantagem é o fato de ZF ser uma teoria de fundamentos muito conhecida no mundo todo. Na verdade, é a mais popular de todas as teorias formais de conjuntos. Detalhes podem ser encontrados em meu texto Matemática Pandêmica.
A combinação dos itens 1 e 2 acima nos garante uma visão clara a respeito do papel de equações na prática matemática. Intuitivamente falando, equações são certas afirmações feitas a respeito de termos. Cito um exemplo bem conhecido. Um dos axiomas de ZF garante a existência de pelo menos um conjunto vazio, ou seja, um certo termo x tal que nenhum termo y pertence a x. Este é o Axioma do Vazio! Observar que o Axioma do Vazio não usa o conceito de igualdade. Outro axioma de ZF estabelece o seguinte: se x e y são termos que compartilham os mesmos elementos (todos os termos z que pertencem a x, também pertencem a y; e todos os termos z que pertencem a y, também pertencem a x), então x = y. Este é o Axioma da Extensionalidade, o qual emprega a igualdade. A partir desses dois axiomas (Vazio e Extensionalidade), temos uma consequência: o conjunto vazio é único. Nenhum axioma de ZF afirma que o conjunto vazio é único. Não há necessidade dessa afirmação. Tal afirmação é um teorema, é uma consequência de axiomas. É um teorema cuja demonstração é feita a partir dos dois axiomas mencionados, Vazio e Extensionalidade. Este é o papel de axiomas em qualquer teoria formal: um ponto de partida para a demonstração de teoremas. Pois bem, foi a igualdade usada no Axioma da Extensionalidade que permitiu a demonstração da unicidade do conjunto vazio. A noção de unicidade, neste contexto, depende da noção de igualdade: ser um conjunto vazio único significa não existir outro conjunto vazio. Ser outro é equivalente à negação de ser igual. Ou seja, igualdade confere expressividade. Este é um dos papeis da igualdade em ZF e, consequentemente, em matemática.
Consideremos agora um exemplo mais sofisticado: a equação diferencial já mencionada, dy/dx = 5y (termo dy/dx é igual ao termo 5y). Se y for uma função real tal que, para cada x do domínio de y, existe um único número real y(x) (a imagem de x por y), então dy/dx usualmente corresponde à derivada de y em relação a x. O problema, no entanto, é que nem toda função real y admite derivada. Pior, mesmo que y admita derivada em relação a x, nem sempre essa derivada é igual a 5 vezes a função y, como indica a equação. Na prática isso significa que cabe ao matemático identificar todas as possíveis funções reais y tais que dy/dx = 5y. Essa identificação de funções se chama "resolver a equação diferencial dada". Ou seja, resolver a equação diferencial exemplificada é equivalente a exibir todas as funções reais y tais que a equação em tela seja teorema. Em outras palavras, quando o matemático afirma dy/dx = 5y, ele bem sabe que nem todas as funções y garantem tal equação como um teorema. Resolver a equação é simplesmente identificar quais funções y garantem que, de fato, suas derivadas são iguais a 5 vezes elas mesmas. Mas o que isso tem a ver com a teoria de conjuntos ZF?
Números reais, em ZF, são casos particulares de conjuntos. Funções, em ZF, são casos particulares de conjuntos. Derivada de uma função, se existir, é um caso particular de conjunto. O número real 5 é um caso particular de conjunto. A multiplicação entre 5 e y, no lado direito da igualdade acima, é um caso particular de conjunto. E conjuntos, por sua vez, são os termos de ZF. Logo, resolver a equação diferencial dada é equivalente a exibir o conjunto y (uma função real) tal que a igualdade acima seja um teorema. Novamente, todos esses conceitos são detalhados neste material aqui.
Em outras palavras, resolver um problema de cálculo diferencial e integral ou de equações diferenciais é equivalente a resolver um problema em ZF, pelo menos no contexto aqui adotado. Situação análoga ocorre em outros ramos da matemática: medidas são casos particulares de conjuntos, espaços vetoriais são casos particulares de conjuntos, matrizes são casos particulares de conjuntos, logaritmos são casos particulares de conjuntos, e assim por diante. E nos estudos de álgebra, álgebra linear, probabilidades e outros ramos, a solução de equações é um problema praticamente onipresente. Em geral, brincar com matemática é brincar com ZF.
No entanto, apesar do enorme poder de expressividade de ZF para fazer matemática, a teoria em si ainda deixa muitas questões em aberto. Por exemplo, como provar que todo espaço vetorial admite base? ZF não permite provar isso! Como provar que todo conjunto de números reais admite medida, no sentido de Lebesgue? ZF não permite provar isso! Por que isso ocorre? Porque, em ZF, é possível escrever certas fórmulas que não são teoremas e nem mesmo as suas negações são teoremas. São fórmulas independentes dos axiomas de ZF. Como os matemáticos sabem disso? A resposta reside num estudo metamatemático conhecido como teoria de modelos.
Uma interpretação de ZF é uma tripla ordenada (M,r,s) escrita em uma linguagem diferente da linguagem de ZF. O tal do M acima é um possível universo de conjuntos, ou seja, uma possível maneira de interpretarmos a totalidade de termos de ZF. Já o r é a tradução do conceito de pertinência de ZF no contexto da interpretação (M,r,s). Por fim, o s é a tradução do conceito de igualdade de ZF no contexto da interpretação (M,r,s). Se as traduções de todos os axiomas de ZF forem satisfeitas na interpretação (M,r,s), dizemos que essa interpretação é um modelo de ZF.
Acontece que matemáticos conhecem modelos surpreendentes de ZF. Há aqueles nos quais todo espaço vetorial admite base. O universo construtível de Gödel é um caso bem conhecido. Mas há também modelos de ZF, obtidos por uma técnica chamada forcing, nos quais certos espaços vetoriais não têm base alguma. Há modelos de ZF nos quais todo conjunto de números reais admite medida. Mas há modelos de ZF nos quais certos conjuntos de números reais não têm medida alguma.
Os fatos acima conferem grande liberdade ao matemático. Uma das consequências disso tudo é que temos agora a oportunidade de fundamentar vastos ramos da matemática não apenas em ZF, mas também em qualquer modelo de ZF, de acordo com as demandas de investigação e potenciais aplicações. Isso é muito importante para respondermos à questão colocada no título desta postagem.
Pois bem, assim como a existência de base para qualquer espaço vetorial é uma afirmação independente dos axiomas de ZF, os próprios axiomas em si apresentam essa característica. Por exemplo, existem interpretações de ZF nas quais todos os axiomas de ZF são satisfeitos, exceto o Axioma da Extensionalidade. Isso prova metamatematicamente que o Axioma da Extensionalidade não pode ser provado a partir dos demais axiomas de ZF, em um sentido muito preciso. Em quais interpretações de ZF ocorre essa aberração? Isso acontece nas interpretações não transitivas.
Uma interpretação (M,r,s) de ZF é transitiva se, para quaisquer termos x e y, tivermos o seguinte: a conjunção xrM e yrx deve implicar em yrM. Intuitivamente isso diz o seguinte: se x pertence ao universo M de conjuntos e y pertence a x, então o próprio y deve pertencer ao universo M de conjuntos. Em outras palavras, elementos de conjuntos também devem ser conjuntos, no contexto da interpretação de ZF.
Toda interpretação transitiva de ZF obrigatoriamente satisfaz o Axioma da Extensionalidade. E, além disso, se uma interpretação de ZF satisfaz o Axioma da Extensionalidade, ela é obrigatoriamente transitiva.
Uma interpretação não transitiva de ZF sempre admite a existência de pelo menos um conjunto no qual um de seus elementos não é conjunto algum.
Criemos, agora, uma nova teoria de conjuntos chamada ZF', da seguinte maneira: ZF' tem apenas a pertinência como conceito primitivo da teoria, ou seja, ZF' é uma teoria sem igualdade. Além disso, ZF' tem os mesmos axiomas de ZF, exceto o Axioma da Extensionalidade.
Uma vez que em ZF' não há o conceito de igualdade, ao invés de escrevermos x = y, basta escrevermos que x e y compartilham os mesmos elementos. Formalmente isso equivale a afirmar que, para todo t, se t pertence a x, então t pertence a y e, além disso, se t pertence a y, então t pertence a x.
Logo, no lugar da equação diferencial dy/dx = 5y, escreveríamos apenas que dy/dx e 5y compartilham os mesmos elementos. Dessa forma podemos brincar com cálculo diferencial e integral sem usarmos equação alguma. No lugar de equações teríamos fórmulas envolvendo única e exclusivamente o conceito de pertinência.
Essa solução apresentada no parágrafo acima resolve a questão proposta na postagem? Não! Por quê? Porque ZF' é uma teoria de conjuntos cujos modelos podem ser transitivos ou não. Lembrar que todos os modelos de ZF são transitivos, graças ao Axioma da Extensionalidade. Mas em ZF' não há o Axioma da Extensionalidade. Em um modelo não transitivo de ZF' teríamos situações altamente inconvenientes. Uma delas é a não unicidade do conjunto vazio. Em um modelo não transitivo de ZF' haveria certos conjuntos cujos elementos não são conjuntos. Por exemplo, se (M,r) (lembrar que modelos de ZF' não contam com traduções s da igualdade) é um modelo não transitivo de ZF', então existe um conjunto {k} pertencente a M tal que k não pertence a M. Isso faz de {k} um conjunto vazio no modelo (M,r). O fato de haver mais de um conjunto vazio em um dado modelo de ZF' implica, entre outras coisas, que existem muitos números naturais 0, muitos números naturais 1, muitos números naturais 2 e assim por diante. Isso cria grande dificuldade para lidar com outros conceitos como, por exemplo, os números reais, tão essenciais em cálculo diferencial e integral.
Logo, ZF' não é uma solução prática para fazer matemática sem equações. Mas... há uma alternativa para contornar essa dificuldade. Basta fundamentarmos diferentes ramos da matemática em qualquer modelo transitivo de ZF'. Este é um caminho completamente diferente da fundamentação de ramos da matemática em ZF' ou ZF. Ao invés de admitirmos que, por exemplo, funções são conjuntos de ZF', basta assumirmos que funções são conjuntos de um dado modelo transitivo (M,r) de ZF'. Essa solução é elegante, uma vez que o conceito de transitividade de modelo não exige qualquer noção de igualdade. (M,r) é transitivo se, para quaisquer x e y, tivermos o seguinte: a conjunção xrM e yrx implica em yrM. Ou seja, os elementos de conjuntos são sempre conjuntos.
Em qualquer modelo transitivo (M,r) de ZF' podemos definir uma relação de equivalência ~ do seguinte modo: x~y se, e somente se, x e y compartilham os mesmos elementos. Isso implica que (M,r,~) é necessariamente modelo de ZF. Logo, tudo que escrevemos em ZF pode ser traduzido em (M,r,~). Mas, a partir do momento que ~ é tão somente uma definição, podemos dispensá-la a qualquer momento. O string x~y em (M,r,~) é equivalente a uma equação x=y em ZF. Mas em (M,r,~) podemos simplesmente afirmar que x e y compartilham os mesmos elementos. Logo, todas as equações de ZF podem ser substituídas por afirmações envolvendo apenas pertinência em qualquer modelo transitivo de ZF'. Em outras palavras, matemática sem equações!
Tudo que foi colocado aqui pode parecer um exercício de futilidade. Mas o fato é que raramente matemáticos profissionais percebem o que estão fazendo quando escrevem equações. Devo admitir que a minha motivação pessoal para esse problema é algo que não estou mencionando neste texto. Mas, isso é assunto para outra postagem. Sabe Deus se isso acontecerá.
Excelente publicação professor!
ResponderExcluirFoi uma honra ter participado da sua última turma na UFPR.