segunda-feira, 23 de março de 2015
Autoconhecimento e auto-ilusão
Desde a filosofia de René Descartes até estudos neurológicos sobre a formação de falsas memórias, passando pelos estudos pioneiros de Sigmund Freud, filósofos, psicólogos, psicanalistas, neurologistas e demais pesquisadores têm se dedicado a estudos sobre autoconhecimento e auto-ilusão. E o surpreendente é que pouco consenso existe sobre esses temas.
Nesta postagem quero colocar em discussão o que hoje se sabe sobre autoconhecimento e auto-ilusão. E quero aproveitar para discutir sobre relações naturais entre autoconhecimento e auto-ilusão e fenômenos sociais bem conhecidos: educação, ciência e até tecnologia.
A maioria dos filósofos faz uma distinção entre autoconhecimento e conhecimento a respeito do mundo externo a nós mesmos. Autoconhecimento usualmente se refere ao conhecimento que uma pessoa tem a respeito de seus próprios estados mentais, incluindo crenças, desejos, emoções e sensações em geral. No entanto, não parece haver acordo sobre como se adquire autoconhecimento. Alguns dos mais conhecidos modelos para explicar a aquisição de autoconhecimento são a observação não mediada de Descartes, o sentido interior de Locke, o modelo de transparência de Dretske, o modelo de racionalidade (em suas diferentes formas), bem como demais propostas. Para uma revisão dos principais modelos recomendo a leitura deste link.
Associada à definição de autoconhecimento existe inevitavelmente o conceito de auto-ilusão. Em linhas gerais, auto-ilusão (ou auto-engano) é a aquisição e manutenção de uma crença - mesmo diante de fortes evidências contrárias - motivada por desejos ou emoções. No entanto, filósofos não conseguem decidir de forma unânime se o processo de auto-ilusão é voluntário ou não, ou sequer se o indivíduo auto-iludido é moralmente responsável por suas crenças. Uma vez que auto-ilusão pode tornar uma pessoa estranha para ela mesma e cegá-la quanto às suas falhas morais, o tema é naturalmente de grande importância, não apenas filosófica, mas também psicológica e até mesmo social.
YouGov, por exemplo, é uma empresa de pesquisa de mercado que promove inúmeras avaliações de opinião pública, com escritórios espalhados em diferentes partes do mundo. Em uma pesquisa recentemente divulgada, YouGov apontou que 55% da população dos EUA se considera mais esperta do que a média. Como já foi dito por alguns, o norte-americano médio se considera mais inteligente do que o norte-americano médio. Esta é uma evidência muito forte de que a auto-ilusão é um fenômeno bastante comum.
E mais preocupante ainda é o fato de que existem estudos sistemáticos sobre auto-ilusão coletiva mas não sobre autoconhecimento coletivo. Uma vez que a auto-ilusão coletiva se refere a grupos de auto-iludidos semelhantes entre si ou até mesmo a coletividades que se auto-enganam, fica aqui a sugestão de que ilusões coletivas são mais prováveis de ocorrer do que o compartilhamento de um mesmo auto-conhecimento. E isso faz muito sentido. Por quê? Porque o processo de autoconhecimento é individual. Cada pessoa deve ter um conhecimento único a respeito de seus próprios processos mentais. No entanto, uma mentira (ou ilusão) certamente pode ser compartilhada por coletividades, como a crença dominante do povo norte-americano de que cada um (em média) é mais inteligente do que a média.
Neste contexto, quais são as relações entre autoconhecimento e o conhecimento a respeito do mundo externo a nós mesmos? Bem, se uma pessoa se considera mais inteligente do que outros, existe a tendência natural de ignorar opiniões ou até mesmo conhecimentos daqueles tidos como menos inteligentes.
Um exemplo interessante de auto-ilusão coletiva é relatado por Robert Trivers, neste artigo. O autor argumenta que a auto-ilusão de um indivíduo pode estimular a ilusão em outras pessoas. E coloca a própria NASA (Agência Espacial Americana) como vítima deste processo. Segundo Trivers, foi o auto-engano institucional da NASA que levou à falha de avaliar com precisão os riscos de uma peça de vedação responsável pela tragédia do ônibus espacial Challenger, em 1986.
Um dos possíveis ingredientes para o fomento de auto-ilusão coletiva é lealdade. É justamente a lealdade de um grupo de indivíduos, perante seu líder, que pode desenvolver uma mesma postura coletiva de auto-engano. E indivíduos desprovidos de autoconhecimento estão naturalmente mais sujeitos à auto-ilusão.
Em outras palavras, apesar de filósofos estabelecerem que autoconhecimento e o conhecimento sobre o mundo externo a nós mesmos sejam de natureza distinta, isso não impede relações íntimas entre ambas as formas de conhecimento. Afinal, por que uma pessoa acredita em uma teoria científica? Existe justificativa independente de seus estados mentais? Questões semelhantes podem ser feitas sobre crenças religiosas ou até mesmo políticas. Por que uma pessoa confia (ou não confia) no governo federal? Essa confiança (ou desconfiança) é decorrente de justificativas independentes de seus estados mentais? Aquele que crê em algo conhece seus estados mentais, bem como aquilo que os estimula?
Em diferentes partes do mundo tem surgido a crescente preocupação com o papel da universidade perante a sociedade. Há aqueles que defendem que universidades estão ensinando jovens no que pensar e não como pensar. Até mesmo nos Estados Unidos já se percebe a formação de ativistas em universidades, no lugar de acadêmicos. Como distanciar o ativismo político do auto-engano coletivo?
No Brasil jovens estão sendo tratados cada vez mais como criaturas frágeis, delicadas, incapazes de qualquer forma de autonomia. Exemplo marcante são as faculdades particulares que promovem reuniões de pais e mestres. Essa fragilidade pode ser assimilada por gerações inteiras de maneira muito rápida. É um auto-engano coletivo sustentado por comodidade garantida pelos pais desses jovens, os quais também demonstram sinais de auto-ilusão.
Como evitar o auto-engano coletivo? A verdade é que ninguém sabe. Mas não pensar sobre essas questões e não discuti-las abertamente, sem dúvida, é uma péssima ideia.
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ResponderExcluirRealmente um tema de importância capital para o futuro da humanidade. A auto-ilusão coletiva me parece ter atingido um patamar alarmante e muito perigoso. Penso que autoconhecimento se opõe ao auto-engano.
ResponderExcluirComo evitar este e estimular aquele? Gostaria imensamente de visualizar uma solução. Apenas posso dizer que tudo inicia nos primeiros momentos de família e escola. Pais e professores deveriam conseguir identificar e exercitar o autoconhecimento para então estimula-lo nos filhos e alunos, entretanto penso que este processo foi negligenciado ao longo dos anos. Desta forma apenas uma solução de longo prazo seria possível. Seria um processo cultural muito demorado, mas urgente. Uma mudança pequena de paradigma na visão e objetivos escolares já se torna algo quase impossível, imagina uma mudança profunda. Penso que pessoas que não praticam nem entendam sobre autoconhecimento, não possuirão capacidade de estimular tal capacidade nos estudantes. Portanto apenas aqueles que possuam intimidade com o autoconhecimento podem estimular tal prática. Você pode quantificar quantos você realmente conhece que possuam esta característica?
João Luiz
ExcluirO curioso é que esta se encontra, por enquanto, entre as postagens menos comentadas. Eu gostaria muito de saber o motivo.
Talvez tenha ficado mal colocado. O motivo poderia ser autoconhecimento?
ExcluirFaço um questionamento: poderia ser autoconhecimento?
ResponderExcluirVocê acredita que um boçal pode praticar o autoconhecimento? Em tom de brincadeira ok?
ResponderExcluirNão sei exatamente onde se pode atrelar o autoconhecimento. Tentarei explicar melhor: em que momento de nossa existência o autoconhecimento desperta em um indivíduo? Talvez seja uma função natural do ser humano desenvolver tal característica. Neste caso, nós como sociedade em geral, passando por todos os seus segmentos, vamos direcionando os indivíduos de forma a que possuam um comportamento e visão de mundo uniformes. Se diferirmos seremos rebeldes, portanto, marginais na curva da normalidade. Somos então pressionados pela sociedade a seguir em direção ao brete social. Poucos não se sujeitam, mas estes são marginais e minorias. Dependendo da vida alguns acabam exercendo influência e provocam mudanças no mundo. Outros, talvez a maioria desta minoria, passem despercebidos. Matematicamente ou estatisticamente falando, este é o nosso mundo. Como derrotar a matemática? Podes contribuir?
João Luiz
ExcluirNão sei se entendi o que coloca. Mas tentarei responder. A espécie humana sempre dependeu de convívio social. É através de convívio social que aprendemos a confiar implicitamente em outros, para nossa própria sobrevivência. Dependemos de segurança, saúde, educação, produção de alimentos, entre outros fatores. As pessoas comem sem questionar o que comem. Chamam a polícia, quando precisam dela. Confiam em professores.
O lado ruim dessa confiança implícita é que podemos facilmente nos iludir por conta dela. Ou seja, se isso tudo for verdade, é possível que aí se encontre um fator limitante de nossa evolução enquanto espécie. Somos mais suscetíveis ao auto-engano do que ao conhecimento.
Prof. Adonai,
ResponderExcluirQuero atrapalhar um pouco a discussão (rs).
O templo de Apolo em Delfos tinha no pórtico a famosa inscrição "Conhece-te a ti mesmo".
Para mim, é uma das sentenças mais profundas que alguém pode refletir a respeito.
Saudações a todos,
Rodrigo
Rodrigo
ExcluirMuito bem lembrado. E veja o quanto mudou desde então.
Talvez nos falte perceber isto que dissestes, em ser mais suscetível ao auto-engano. Não julgo a sociedade, apenas relato observações para que aos poucos tenhamos muitos dados para formar uma ideia. Desta forma vamos construindo o autoconhecimento, aprendendo a lidar com nosso principal laboratório, a mente humana. Entender o ser humano e a sociedade como um todo é o que nos levará ao autoconhecimento. Mas para isto acontecer é necessário que individualmente decidamos nos dedicar. Entender a importância disto em nossa vida. É ai que a coisa complica. Inúmeros fatores sociais colaboram para que isto não aconteça.
ResponderExcluirA melhor tática para evitar ilusões não seria aprender a separar as pessoas em 2 grupos: as que dizem o que você quer ouvir e as que dizem o que você precisa ouvir?
ResponderExcluirSebastião
Sebastião
ExcluirSem método suportado por teoria, fica difícil fazer esse tipo de distinção.
Acredito que seja o tipo de coisa que se aprende na prática. Até onde sei, nem tudo o que aprendemos segue uma metodologia.
ExcluirSebastião.
Talvez o grupo mais legal seja o das pessoas que dizem o que pensam de forma livre. Aquelas que entenderam o que significa liberdade. É claro que a auto-ilusão pode prosperar. Neste caso não existe método que resolva. É preciso a natureza agir, e isto leva tempo!
Excluiro texto é sensacional! de um assunto muito pertinente, que ficou bem evidenciado nesse recinto recentemente...
ResponderExcluiruma leitura breve, interessante e que pode ser util para começar a pensar a questão é: Auto engano (Cia. das Letras, 1997) do Eduardo Giannetti.
Caro Professor
ResponderExcluirNão seria impossível ao ser descobrir o seu auto-engano? Uma vez que, imerso em tal estado, sua única maneira de desprender-se dessa condição seria se auto-condicionar para fora da mesma a partir do conhecimento adquirido sobre si mesmo. O problema é que este conhecimento simplesmente não existiria estando o indivíduo em estado de auto-engano.(a não ser que exista a possibilidade de auto-engano ou auto-conhecimento parcial). Não estaríamos então fadados a ignorância sobre nós mesmos e o que nos cerca? Ou a simples tentativa de se debater sobre nossas ideias e expô-las a avaliações, sem o temor de estarmos errados ou sermos inconsistentes em nossas afirmações, seria suficiente para vencer tal problema ?
Grato.
Lucas
ExcluirSuas questões são extremamente pertinentes. Mas não tenho condições de responder. Além disso, levando em conta a multiplicidade de visões inconsistentes entre si sobre autoconhecimento e auto-engano, creio que ainda estamos muito longe de uma resposta convincente.
Lucas, teu último questionamento do comentário faz muito sentido. Se funciona não posso afirmar pois cada indivíduo reage de maneira peculiar diante da liberdade de debater suas ideias e expô-las a avaliações. Vencer o medo de estar errado talvez pudesse ser sanado com um debate sobre a não existência de certo e errado em uma visão holística de si mesmo. Posso dizer que o simples exercício do debate livre e sem vencedor, produz efeitos magníficos no desenvolvimento do ser humano. Se esses debates fossem corriqueiros em uma Universidade, tenho certeza de que não estaríamos tão decepcionados com esta instituição.
ExcluirProfessor Adonai
ExcluirEntendo perfeitamente sua resposta em ralação aos meus questionamentos. Mas se não for incomodá-lo , gostaria que o senhor me explicasse de maneira um pouco mais clara o que devo entender quando o professor quer dizer ao usar o termo "inconsistente" ou "consistente".
Apesar de parecer algo trivial, é possível notar adjetivações similares sobre posturas, pensamentos de caráter pragmático e questionamentos de teor mais abstrato, em outras postagens suas no blog ( muitas delas tratando de temas distintos entre si ).
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ExcluirCaro Joao Luiz Faria
ExcluirCompartilho com a visão de que é possível aprender muito ao se debater livremente (apesar de ser pessoalmente muito limitado sobre questões de caráter mais existencialista ) , como Sócrates tanto defendia em sua época, mas vejo como uma grande dificuldade para essa mesma postura o fato de estarmos sempre tão inclinados a aceitar nossas próprias visões como mais corretas, inteligentes ou mesmo altivas em relação as demais.
Quanto a promoção de debates sobre tais visões holísticas acerca do indivíduo em Universidades, não posso tecer nenhuma crítica ou mesmo emitir alguma opinião, uma vez que sou ainda um estudante de ensino médio.
Grato.
Lucas
ExcluirNo contexto de minha resposta anterior ("levando em conta a multiplicidade de visões inconsistentes entre si sobre autoconhecimento e auto-engano"), o uso do termo "inconsistente" se refere ao fato de que diferentes visões sobre autoconhecimento são fundamentadas em princípios que se contradizem entre si. Por exemplo, para Descartes, o autoconhecimento consiste na observação que uma pessoa faz de seus próprios pensamentos, sem qualquer tipo de intermediação, seja epistêmica ou metafísica. Outros, no entanto, defendem que os modos de percepção de uma pessoa a respeito de seus próprios pensamentos não são tão diferentes assim de outras formas de percepção, podendo sofrer interferências de contingências.
Boa noite professor.
ResponderExcluirPensando sobre o texto penso na frase de Lorde Acton:
"Nada é mais necessário ao investigador do que saber alguma coisa acerca da história (de uma disciplina) e acerca da lógica da pesquisa: ... a maneira de descobrir o erro, o uso de hipóteses, o uso da imaginação, o modo de efetuar teste."
Uma pena que hoje muitas vezes os investigadores são doutrinados! Posso ser um pessimista, ou até mesmo ignorante quanto ao estudo de física no Brasil, porém a priori a física feita no Brasil está morrendo ou se aposentando. Nossos grandes pensadores (filósofos ou investigadores) estão se aposentando. Os mais novos profissionais não fazem nada de novo ou melhor só fazem um apanhado da física feita fora do país. Cadê nossa autonomia? Ou eu que estou sendo raso e ignorante??
Fernando
ExcluirCompartilho com o seu pessimismo. Recentemente visitei o CBPF, uma das principais referências em estudos de física em nosso país. A impressão que ficou foi muito ruim. Há uma espécie de envelhecimento no ar.
Não sei se a questão é doutrinação ou simples indiferença. Mas vivemos em uma época estranha.
Eu não conhecia essa citação de Lord Acton. Belíssima, mas incompreensível para a maioria das pessoas de hoje, sejam pesquisadores ou não.
Professor Adonai,
Excluirisso realmente é triste. Não sei como agir perante tal situação.
Bem, a solução que encontro são os meus projetos de pesquisa e extensão. Acho que o único negócio a fazer é ser teimoso.
ExcluirRealmente isso faz bastante sentido. Ainda mais se queremos mudar essa realidade.
ResponderExcluirMuito obrigado professor. :)