sábado, 18 de outubro de 2014

Vale a pena fazer um doutorado?


Desde que iniciei este blog quase cinco anos atrás, uma das perguntas que mais ouço é a seguinte: Vale a pena estudar?

No excelente blog do jornalista José Galisi Filho há uma postagem sobre as carreiras dos desempregados. É uma discussão muito bem explorada na qual se mostra que, nos dias de hoje, alta qualificação tem se tornado sinônimo de desemprego. 

Um dos melhores alunos que tive, hoje com pós-doutorado pelo Instituto Max Planck (tendo sido bolsista da própria Sociedade Max Planck, Alemanha), não consegue emprego nem na Alemanha e nem no Brasil. 

Em reportagem publicada quatro dias atrás no site da revista Science, Carrie Arnold apresenta exemplos pontuais que ilustram o fato de que pesquisadores altamente qualificados não encontram mais emprego em universidades e procuram colocações em empresas que claramente alimentam preconceitos contra detentores do título de Ph.D. Isso porque um profissional com doutorado deve ser destreinado para ser, então, retreinado. E não há, entre profissionais de recursos humanos, a crença de que tal missão valha a pena ou seja sequer realizável. E este sinistro quadro define não apenas a realidade de mercado de trabalho dos Estados Unidos como também da Europa.

No Brasil, assim como no velho continente e nos Estados Unidos, há duas opções principais de emprego para doutores: universidades e indústria. 

Entre as universidades há as públicas (estaduais e federais) e as privadas. A contratação em universidades públicas depende de editais de concursos públicos, os quais ainda são poucos e com quantias de vagas muito limitadas. Além disso, dada a natureza dos concursos públicos, tem sido crescente o fenômeno de "carta marcada", onde ex-alunos de membros de bancas ou de colegas de membros de bancas encontram favoritismos. Universidades privadas em geral evitam a contratação de doutores, que são profissionais mais caros (na folha de pagamento) e que frequentemente demandam condições de pesquisa. Como na maioria das universidades privadas de nosso país administradores sequer sabem o que é pesquisa, esta é uma situação que gera muito desconforto dentro das instituições. 

Em reportagem assinada por Sabine Righetti para blog da Folha de São Paulo, há uma discussão sobre análise promovida por especialistas em políticas de ciência e tecnologia que afirmam não haver pesquisa aplicada em empresas no Brasil. A justificativa de empresários de multinacionais é que existe uma carência muito grande de doutores em nosso país. No entanto, na mesma reportagem é apontado o fato de haver considerável quantia de doutores em ciência e tecnologia que estão desempregados. Quatro anos atrás, por exemplo, o índice de desemprego entre doutores era de quase 30%, muito maior do que o índice de desemprego de 8% entre todas as categorias profissionais no mesmo ano. E mesmo entre os empregados, havia considerável quantia daqueles que tinham que assumir dois ou mais empregos simultaneamente, para garantir a simples sobrevivência. Ou seja, neste contexto pode-se apontar para o conceito de "qualificação exagerada". No Brasil não é uma boa ideia ter qualificação exagerada, se avaliarmos apenas a questão de oferta de empregos.

Portanto, agora temos elementos para responder à questão do título desta postagem. Vale a pena fazer um doutorado? A resposta depende de visão pessoal sobre os propósitos de um doutorado. Se a visão for restrita a mercado de trabalho, a resposta é não. Realmente não vale a pena fazer um doutorado, seja no Brasil ou no exterior. Mas se a visão for ideológica, certamente vale a pena! 

O que é uma visão ideológica sobre os propósitos de um doutorado? É aquela na qual um doutorado é encarado como uma séria preparação para a investigação científica e um passo fundamental para a formação de redes sociais que facilitem essa investigação científica. Ou seja, uma pessoa somente tem visão ideológica sobre os propósitos de um doutorado quando ela é apaixonada por pesquisa e honestamente sente que não poderia seguir outro caminho profissional sem se tornar uma pessoa extremamente frustrada.

Eu, por exemplo, me classifico como um profissional ideológico. Fiz um doutorado em filosofia vinte anos atrás, na Universidade de São Paulo. Durante quase toda a minha vida profissional trabalhei com fundamentos lógicos e matemáticos de teorias físicas. Por sorte, sou empregado. Mas se, por algum motivo, eu perdesse o emprego que tenho, encontraria enorme dificuldade para convencer alguém a me contratar por um salário decente.

Portanto, a pergunta mais fundamental a ser respondida não é aquela que está no título desta postagem. A pergunta que deve ser respondida é: "Quem é você?"

21 comentários:

  1. Excelente a percepção deste comentário. Tiro na mosca!
    Aliás penso que deveria ser exigido como pré-requisito a formação em "quem é você..." para acesso aos cursos de graduação em diante.

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  2. Prof, você considera que o problema do desequilíbrio entre número de doutores formados e vagas para docência nas universidades também afeta o Brasil?

    Pergunto isso porque nesses dias li um artigo (http://www.economist.com/node/17723223) que informava que a desproporção entre as categorias que citei é gritantes em vários países e, no entanto, Brasil e China são um dos únicos lugares em que a falta de PHDs é sentida (no caso do Brasil, só consigo pensar na academia, claro). Eu acho que isso faz sentido com a atual expansão das universidades federais. A minha universidade, por exemplo, encontra dificuldades pra preencher todas as vagas (mas, na realidade, muitas vezes não por falta de candidatos, e sim por falta de pessoas realmente qualificadas: muitas vezes todos são rejeitados. E olha que ser doutor é um pré-requisito de todos os concursos de docência da minha universidade.)

    Enfim, esse problema afeta as universidades brasileiras também:

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    1. André

      Eu precisava de mais informações para dar uma resposta mais responsável. Mas a impressão que tenho é que certas áreas estão sobrecarregadas de doutores no Brasil, enquanto outras estão carentes. Os números que vejo (alguns deles são citados nesta postagem) não discriminam áreas. E essa discriminação é necessária para uma visão mais realista sobre o que de fato acontece em nosso país. Vejo muitos doutores em física com enorme dificuldade para conseguir boas colocações no mercado. Mas não percebo o mesmo problema, por exemplo, entre doutores em estatística. Por outro lado, vejo muitos doutores em engenharia de produção, literatura e educação que são pessimamente qualificados.

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  3. "[...] E mesmo entre os empregados, havia considerável quantia daqueles que tinham que assumir dois ou mais empregos simultaneamente, para garantir a simples sobrevivência. [...]"

    Adonai

    existe algo de muito estranho nesta passagem, pois um doutor em qualquer área que seja não deve ganhar menos do que 3k, onde quer que seja........

    E 3k não é suficiente para sobreviver e levar uma vida digna?????

    Só se for em bairros elitizados de Curitiba, como é o caso do Batel, Jardim Social, Mossunguê, Lamenha Pequena e Santa Felicidade.......

    Em bairros medianos como Jardim das Américas, Cristo Rei, Jardim Botânico e Cabral é possível sim sobreviver e ter uma vida razoável com 3k, é claro, se a pessoa souber otimizar custos e lidar bem com o dinheiro........

    O problema é que, muitas vezes, a pessoa ganha, sei lá, 6k ou 7k, mas tem que pagar pensão pra meio mundo, ou então não se contenta em comprar um sorvete vagabundo de 2 reais e acha que o mínimo necessário é pagar, sei lá, 10 reais por um sorvete decente, por exemplo.........

    Mas se o caso for este último, daí é ostentação, e não sobrevivência........

    Não ter dinheiro para manter o mínimo de sobrevivência significaria não ter dinheiro sequer para comprar o sorvete vagabundo de 2 reais.......

    Entretanto, não ter dinheiro para comprar o sorvete de 10 reais, neste exemplo hipotético, seria sim não ter o mínimo necessário para a ostentação, e não para a sobrevivência........

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    1. Leandro

      Sua visão não é realista. Recomendo o seguinte link.

      http://exame.abril.com.br/economia/noticias/salario-minimo-precisaria-ser-de-r-2-824-92-diz-dieese

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    2. Ok, mas isso seria como um todo, não é????

      Porque, pontualmente, pode ser possível viver com menos.

      É claro que a pessoa vive perto da m......, mas sobrevive, certo????

      Digo isto porque aqui em casa vivemos razoavelmente bem com pouco mais de 2k.

      E moramos num bairro mediano: Cristo Rei.

      Como explicar isto então????

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    3. Ah, e também não somos do tipo de contrai dívidas ou compra a prazo e a crédito indiscriminadamente, como fazem muitos.......

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    4. Leandro

      De fato, pessoas podem viver ganhando menos, como já o fazem por aqui. Basta ver moradores de rua, como exemplo. No entanto, considere o seguinte. Se você deseja comprar livros, viajar para conhecer outras culturas espalhadas pelo mundo, comprar softwares ou computadores que viabilizem um trabalho de qualidade competitiva, impulsionar um blog (como recentemente fiz), ajudar um amigo ou familiar que está passando por dificuldades, colocar seu filho na melhor escola que existe (podendo esta escola ser fora do Brasil), bastam dois ou três mil reais por mês? Observe que esta foi uma pergunta retórica.

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    5. Definitivamente não dá para fazer tudo isto com 2k ou 3k.

      Entretanto, parece-me que tudo isto que vc coloca vão além da mera sobrevivência.

      Afinal de contas, para sobreviver, não é necessário comprar livros, viajar para conhecer outras culturas espalhadas pelo mundo, comprar softwares ou computadores que viabilizem um trabalho de qualidade competitiva, colocar o filho na melhor escola que existe, etc.

      Quando falo de sobrevivência, quero dizer o mínimo de dignidade: ter o que comer, onde dormir e se proteger das intempéries, poder pagar as contas e ter algum troquinho para um mínimo de lazer aos fins de semana.

      E ainda assim, acho que estou exagerando na ideia de sobrevivência, porque tecnicamente falando, seria o mínimo suficiente para não morrer de fome e/ou sede, independente de ter ou não um teto para se abrigar.

      Particularmente, eu diria que o valor apontado pelo Dieese corresponde ao mínimo necessário para uma vida mais abrangente em todos os sentidos (desde a simples e mera sobrevivência até o estímulo intelectual e cultural como um todo) permitindo cobrir um pouco de cada necessidade humana, tangível e intangível.

      Já a situação que menciono (inferior ao valor apontado pelo Dieese) não permitiria uma vida minimamente abrangente, pois não daria conta de cobrir o mínimo de todo o universo das necessidades humanas, dispensando a parte cultural e privilegiando apenas as necessidades básicas.

      Por fim, a situação mais problemática (de grande parcela dos brasileiros) é aquela que mencionei por último (esta sim no limite verdadeiro da sobrevivência), que é o vergonhoso salário mínimo pago, inferior a 1k.

      Nesta última situação sim que, além de não ter a menor chance de cobrir necessidades intelectuais, o indivíduo mal possui para manter-se minimamente vivo, ameaçando inclusive sua integridade biológica e social.

      Por sobrevivência, entendo justamente esta última situação.

      Quanto ao acesso à cultura, é possível fazê-lo por meio do sistema público de ensino, mesmo para aqueles que estão no limite mínimo da sobrevivência.

      De fato, está muitíssimo longe de ser a situação ideal, mas uma pessoa super motivada pode superar tais obstáculos para crescer.

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    6. Desculpe-me pelos eventuais erros de concordância ou ortografia.

      É o efeito da Venlafaxina.......

      :(

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    7. Bem colocado, Leandro. O problema é que muitos querem bem mais do que mera sobrevivência. Querem sim é viver.

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Gustavo

      Agradeço pela importante participação neste fórum. Mas peço que tome especial cuidado com o vocabulário, em futuros comentários. Espero que entenda a minha preocupação.

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  5. "A gente não quer só comida
    A gente quer comida
    Diversão e arte
    A gente não quer só comida
    A gente quer saída
    Para qualquer parte..."

    "A gente não quer só comida
    A gente quer bebida
    Diversão, balé
    A gente não quer só comida
    A gente quer a vida
    Como a vida quer...

    A gente não quer só comer
    A gente quer comer
    E quer fazer amor
    A gente não quer só comer
    A gente quer prazer
    Prá aliviar a dor..."

    É pedir muito???

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  6. Foge do assunto da postagem, mas achei tão legal que decidi compartilhar aqui:

    http://educacao.uol.com.br/noticias/2015/07/26/professor-publica-tese-de-doutorado-em-forma-de-quadrinhos-nos-eua.htm

    Sebastião

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  7. Adonai, o que te motiva ?

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    1. São muitas as coisas que me motivam. Algumas delas são mais marcantes, dependendo da época de minha vida. Ouvir El Greco, de Vangelis, me motiva. O crescimento de meu filho me motiva. 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, é um filme extraordinariamente motivador, mostrando que houve pessoas capazes de pensar e sentir muito além do banal. O cinema, a música e a ciência de hoje desmotivam profundamente, denunciando a morte da magia do ato de criação. Bárbara Guerreira me motiva, impulsionando minha vida para uma inesperada nova direção. Este blog foi um poderoso agente motivador e ainda é, apesar do encerramento de novas postagens minhas. A maioria de meus alunos me confunde: não consigo entender se eles são fatalmente desmotivados ou apenas ignorantes sobre o que realmente os motiva. Às vezes tenho a impressão de que há um parafuso solto em minha cabeça. É muito fácil me motivar e igualmente fácil me desmotivar. Os momentos de desânimo são muito marcantes, principalmente quando lido com gente. Mas acabo encontrando alguma outra fonte de motivação, seja em projetos científicos, filmes, músicas ou até mesmo gente.

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  8. Grato, resposta magnífica Não sabe de como isso me ajuda.

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  9. Antes pensava como o senhor Professor Adonai, mas com o passar do tempo e depois de muito dialogar e até atormentar diversos docentes da área, percebi que doutorado é o "algo além" de um ciclo vital, e isto está diretamente associado ao gosto em lecionar, pois nesse país para quem é entretido em humanas mesmo com bacharel acaba licenciando, fazer um doutorado é tão complexo quanto a decisão, quando se toma fatores como a distância da família, a limitação de informações já que está focado no pleno objetivo, o tempo de ler outros horizontes, em assistir filmes, esbravejar com política, enfim muitas coisas se vão em prol de uma maior ,que no fim, já não tem toda aquela grandeza principiante! Abraço de um momentâneo aprendiz da vivencialidade e filosofia eterna!

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  10. Anônimo M.

    Olá, professor.

    Esto com algumas dúvidas quanto a escolha da profissão. Primeiramente, gostaria que lesse esta publicação:

    https://posgraduacaosite.wordpress.com/2016/02/20/um-exercito-de-doutores-desempregados/

    Meu sonho é fazer ciência pelo humanidade. No entanto, após ler essas e outras postagens fico desnorteado e não paro de me perguntar o que devo seguir: tentar a concretização do meu sonho ou seguir um caminho que me dê mais possibilidade de estabilidade financeira?
    Li uma outra postagem tua, que fala sobre ter amor ao que quer fazer. É muito motivador e concordo plenamente com a tua ideia. No entanto, sabemos que a realidade nem sempre nos permite buscar aquilo que amamos e, consequentemente, podemos nos frustar nas tentativas. A área que pretendo seguir é física (assim como o teu ex-aluno desempregado).
    Será que haverá oportunidades de eu me tornar um docente assim como você? Ou será que terei que viver de bolsas até concluir o meu PhD... mas e depois? Essas são as perguntas tem me perturbado.
    Gostaria de saber tua sincera opinião e orientação de quem está na mesma situação que me encontro.
    Uma das orientações que li, foi de sempre ampliar os horizontes no mercado de trabalho e seguir a carreira de pesquisador ao mesmo tempo. O que você acha disso?

    Grato.
    Anônimo M.

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    1. Anônimo

      Posso responder o que fiz comigo mesmo. Ao completar dez anos de idade, percebi que eu estava ficando velho. Afinal, eu tinha completado um décimo de século. Isso impactou muito em mim. Foi então que decidi: quando meu último dia nesta Terra chegar, quero olhar para trás e não me arrepender do que fiz. Este é um de meus critérios de vida.

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