domingo, 7 de outubro de 2012
Pequeno Tratado da Tolice
Existem muitos tipos de tolos. Por isso, não tenho esperança de catalogar todos os possíveis casos. Mas espero, com este texto, apontar para algumas características que definem uma considerável quantidade dessas pessoas que nada de bom acrescentam ao seu meio social, a não ser por acidente.
Intelectualóides. O intelectualóide adora citar (sem qualificação) inúmeros autores consagrados em uma mesma fala ou em um mesmo parágrafo. Esta espécie se encontra em todas as áreas do conhecimento, mas é mais facilmente perceptível entre certos profissionais das ciências humanas, especialmente no Brasil. No caso de atividades de docentes de cursos superiores de letras, encontra-se rapidamente em suas notas de aula e artigos inúmeras citações a Tarski e Chomsky, sem que os autores conheçam de fato as significativas contribuições desses cientistas em semântica e sintática. Frequentemente a linguagem corporal do intelectualóide envolve um franzir de testa, um levantar de sobrancelhas, um cruzar de braços e um insistente sorriso de superioridade. Em mensagens informais espalhadas por redes sociais da internet, o intelectualóide adora concluir seus argumentos com expressões vulgares, como "tsk, tsk, tsk", "c'mon", "wtf" ou "BS", entre outras. Faz isso para sugerir que ainda mantém senso de humor, apesar de seu "vasto" conhecimento e "apurado" senso crítico. Gosta de discutir sobre artes em geral, sem jamais ter estudado seriamente sobre o tema. Tem opiniões políticas bem definidas a respeito do trabalho de governantes, sem jamais conhecer os bastidores do poder. Diz-se cético sem questionar o ceticismo. Diz-se ateu sem perceber que ateísmo é uma crença. Quando escreve artigos supostamente técnicos, geralmente publica apenas em veículos populares (como jornais e revistas) ou periódicos especializados de circulação local e obscura perante o resto do planeta. E ainda encontra argumentos para justificar esse tipo de postura. Raramente o intelectualóide brasileiro domina algum idioma cientificamente relevante. Já o intelectualóide que trabalha com ciências exatas é bem mais difícil de identificar. Mas está muito presente na sociedade. Ele se esconde mais facilmente por trás de linguagens normalmente consideradas como acessíveis apenas por pessoas extremamente inteligentes. Eventualmente até consegue publicar artigos científicos em ótimos periódicos especializados de circulação internacional (com um pouco de ajuda dos amigos), mas jamais domina de fato os conteúdos fundamentais de seu trabalho. Conheci um intelectualóide da área de física cuja lista de publicações inclui periódicos de elevada reputação, mas que afirma que antimatéria tem massa negativa. O intelectualóide sente-se honrado por ter um trabalho seu lido por reconhecida autoridade de sua área de atuação, mas não percebe que o que interessa são citações. É uma criatura ingênua, mas arrogante. Apesar de ser socialmente inútil, comumente consegue influenciar muitos jovens a ponto de transformá-los em futuras imagens caricatas dele próprio. Jamais avalia o contexto em quaisquer discussões, simplesmente porque não consegue fazê-lo.
Passivos. O passivo se vê como um ser inferior. Acredita que jamais conseguirá estudar o suficiente para discutir com profissionais sérios. Crê que não tem inteligência suficiente para argumentar. Prefere sentar no banco do passageiro do carro do que na posição do motorista. Fala baixo e senta nas últimas fileiras de qualquer sala de reuniões ou de aula. Quando sorri, denuncia um sorriso nervoso e permanente que implora: "Não me machuque. Nunca fiz mal algum a você." Em mensagens informais espalhadas por redes sociais da internet, o passivo adora concluir com expressões enigmáticas, como "rs", "rsrsrsrs", "huahauhaushuaahushua", "kkkkkk", entre outras. Muitas vezes essas expressões são suas únicas formas de comunicação usadas na maioria das situações. Se alguém posta um texto, foto ou link de cunho crítico social em sua linha de tempo no facebook, o passivo sempre curte. E apenas curte. O passivo não percebe que todas as pessoas cometem erros graves, não apenas em suas vidas pessoais, mas também em suas áreas de especialidade profissional. Não tem o menor cuidado na hora de escrever ou falar. Frequentemente apela para o argumento "Você sabe o que eu quis dizer." Se deixa intimidar por autoridades. E, diante de problemas sociais sérios, afirma: "Realmente é um absurdo." Mas nada faz para acabar com os absurdos. Lê a respeito da menina de treze anos que conseguiu mudar a realidade da escola pública onde estuda, mas se limita a dizer: "Essa menina é realmente especial." Frequentemente tenta apelar à compaixão dos amigos e conhecidos, com mensagens do seguinte tipo: "Amanhã passarei meu aniversário sozinho(a)", "Ninguém me ama", "Minha vida tem sido péssima." Essencialmente, o passivo é uma pessoa que apenas aguarda. Se um dia, porém, o passivo tiver algum poder, certamente cometerá abusos.
Agressivos. Ao contrário do intelectualóide e do passivo, o tolo agressivo pode ser profissionalmente competente. O que o torna um tolo é apenas a forma gratuitamente arrogante e agressiva como trata ou avalia as pessoas que considera inferiores, no escopo de seus valores pessoais. Devemos tomar cuidado, porém, para não confundir o agressivo com o profissional honesto. Frequentemente pessoas tolas interpretam observações e julgamentos incisivos de profissionais honestos como sinais de arrogância ou agressividade gratuita. O agressivo não cumprimenta aqueles que julga inferiores, adota uma linguagem corporal que pretende distingui-lo dos demais e considera que leis e regras sociais comuns não se aplicam a ele. É um estado que poderíamos chamar de complexo de Nietzsche. Não existem dados suficientes a respeito de vícios vocabulares praticados pelos agressivos em redes sociais da internet. Isso porque essa casta de tolos geralmente considera absoluta falta de tempo o entrosamento social em facebook, orkut, myspace, YouTube e similares. O agressivo jamais admite a possibilidade de estar errado, sempre encontrando justificativas para as suas ações e ideias, ainda que tais justificativas sejam contraditórias entre si. O agressivo é perfeitamente capaz de tratar muito bem uma pessoa de quem possa tirar algum proveito, ainda que ela seja classificada por ele como inferior. Mas se suas necessidades forem saciadas, é uma questão de pouco tempo para ele revelar o que realmente pensa a respeito da pessoa anteriormente cobiçada. Isso porque o agressivo é absolutamente dominado por vaidade e, portanto, considera que seu tempo dispendido com qualquer ser inferior é uma dádiva entregue a este ser. No entanto, todas as suas dádivas contam com prazo muito curto de validade.
Combinados. Um combinado é aquele que admite tolices de diferentes categorias, dependendo do ambiente social em que se encontra. O combinado agressivo-passivo se comporta como agressivo, entre pessoas que considera inferiores, e passivo, entre indivíduos que julga superiores. O combinado intelectualóide-passivo é um caso particular daquilo que usualmente se conhece como a figura caricata do nerd. No entanto, nem todo nerd é um combinado ou tolo. E os combinados intelectualóide-agressivo e intelectualóide-agressivo-passivo comumente abraçam a carreira de professor universitário. Mas este curioso fenômeno é mais comum no Brasil.
Pontos em comum entre os tolos acima mencionados:
1) Todos eles se sentem socialmente mais a vontade com seus semelhantes, no contexto da tolice;
2) Raramente um tolo consegue identificar a tolice alheia, mas frequentemente entende por tolas as pessoas que não o são;
3) Todo tolo é um indivíduo irremediavelmente ingênuo. E ingenuidade é uma poderosa barreira contra a razão. Portanto, sempre que puder, evite discussões extensas com os tolos.
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Achei deveras arrogante o texto professor. De alguém que se coloca num patamar de "socialmente relevante" bastante alto... Alto a ponto de, eventualmente, perder a humildade. Certamente me identifiquei com vários tipos de tolos, e agora me considero uma combinação não-linear deles. Creio também que de tolo todos temos um pouco, e que vale a frase cujo autor não me recordo:"Ninguém está livre de dizer tolices, o imperdoável é dize-las solenemente".
ResponderExcluirLucas
ExcluirO texto foi escrito de forma que todos nós nos identifiquemos com ele. Não acho que alguém consiga evitar o estado da tolice.
Muito bom texto professor! Cheguei a me divertir vendo em que categoria de tolos meus colegas se enquadram. Eu mesma não sou desprovida de tolices, e reconheço que já fui mais ingênua e consequentemente mais tola. Mas então fica a minha dúvida: o senhor acha que a tolice pode ser curada ou uma vez tolo, sempre tolo?
ResponderExcluirAtenciosamente,
Roberta
Roberta
ExcluirTento crer que tolice é um estado e não uma propriedade intrínseca. Isso significa que certamente podemos mudar tal estado. Tolice tem tratamento sim. Mas não creio que exista cura. Nunca conheci uma pessoa que não tenha cometido tolices.
O problema é que não é fácil de identificar as pessoas. Além disso temos o descuido de geralmente rotular. As pessoas têm seus bons e maus momentos na vida. Acredito que podemos mudar (por vontade própria e não por ser empurrado por alguém). Muitas vezes alguém que é "doce e meigo" com inferiores é muito grosseiro com os íntimos. Enfim, se relações humanas fossem fáceis, teríamos muitos mais parceiros (de trabalho, de amizade e de amor) felizes. Creio que todos somos tolos em muitos momentos, assim como muito perspicazes em outros. Ninguém é perfeito. Mas saber admitir quando se erra e pedir desculpas; ou rir de suas maluquices corriqueiras, eu acho fundamental. Sei que a sua intenção, Adonai, não foi fazer um "manual", pois você mesmo já citou aqui no blog que não existem receitas. Mas temos que cuidar com certos termos. Por exemplo: não creio que o ingênuo é barreira para a razão. As pessoas podem deixar de ser ingênuas com relação a muitas coisas e pessoas, basta a experiência de vida que nos mostra certas "realidades". Prefiro "conversar" (não discutir, nunca, com ninguém) com um ingênuo do que com um arrogante. Mas são apenas ideias soltas minhas!
ResponderExcluirSusan
ExcluirÉ divertido perceber como certas ideias perturbam a gente. Observe que a própria imagem da postagem é uma caricatura. Minha esperança é justamente a de que textos como este perturbem a tolice nossa de cada dia.
É... imaginei isso. Algo que aprendi na faculdade de psicologia e que vc mesmo várias vezes falou para mim: nosso olhar crítico sobre o outro é um espelho de quem muitas vezes somos. Só não o chamei de tolo porque vc mesmo já me disse várias vezes cometer tolices. Como eu, ao escrever o comentário acima.
ExcluirCaro Adonai,
ResponderExcluirum comentário a respeito de sua tipologia da tolice: se admitirmos que a ingenuidade é filha da falta de senso crítico e da ignorância (todo ignorantes em certa proporção), particularmente da ignorância que se ignora, então podemos supôr que todos participamos em algum grau da tolice (em alguns a tolice é leve em outros é mais severa - em grau avançado - talvez sem cura ou tratamento), ou pelo menos temos momentos de tolice na vida (como um resfriado temporário). Especialmente quando alguém se mete a discursar sobre aquilo que não tem conhecimento. O problema me parece a constância neste estado de eclipse da razão. Não é isso?
É isso mesmo, Gilson. De vez em quando precisamos refletir pelo menos um pouco sobre nossas tolices.
ExcluirJaques Frick, no facebook, recomendou outro título para esta postagem: "Pequeno Tratado da Tolice na Visão do Próprio Tolo". Lamento que eu não tenha pensado nisso antes. Não mudarei o título simplesmente por tolice minha. Espero que compreendam.
ResponderExcluirEscreva uma postagem sobre a inteligência humana, teorias que definem o q é inteligência, múltiplas inteligencias etc. Creio que o tema da inteligência tem tudo a ver com as questões abordadas neste blog, porém não lembro de ter lido aqui uma postagem sobre o assunto.
ExcluirFica a dica e o desafio!
Anônimo
ExcluirEu mesmo não tenho condições de escrever algo relevante sobre múltiplas inteligências. Tentarei encontrar alguém que possa fazer isso. Grato pela excelente sugestão.
Acho que sou um tolo "combinado", mas estou num processo contínuo de me libertar dessa condição. Não creio que consiga a cura contra minha tolice, mas acho que ainda conseguirei reduzir os sintomas a níveis aceitáveis.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAtravés de qual material eu posso conhecer as reais contribuições de Chomsky? O senhor teria alguma indicação?
ResponderExcluirObrigada!
Camila
ExcluirUm referência que considero excelente é o capítulo 8 do livro Representation and Invariance of Scientific Structures, de Patrick Suppes. Detalhes em
http://www.press.uchicago.edu/ucp/books/book/distributed/R/bo3617201.html
Se você me disser um pouco a respeito de sua formação, talvez eu possa ajudar melhor.
Estou no segundo semestre do curso de Letras-Português.
ExcluirCamila
ExcluirUm pré-requisito básico para compreender gramáticas gerativas de Chomsky é teoria de conjuntos. Meu e-mail está no topo desta página. Basta mandar mensagem para mim e envio material pertinente sobre o tema.