segunda-feira, 30 de junho de 2014

Educação é Mercadoria?


Ouve-se muito expressões como "educação não é mercadoria", "educação não é produto a ser comercializado", entre outras semelhantes. A própria União Nacional dos Estudantes (UNE) lançou recentemente uma cartilha intitulada Educação Não É Mercadoria, na qual são denunciados supostos abusos de empresários da educação. Além disso, na tal cartilha se defende uma legislação que regulamente a automática fusão e transferência de instituições de ensino descredenciadas pelo Ministério da Educação (MEC). É claro que a lógica por trás desse tipo de movimento é a de que os cofres públicos são inesgotáveis. Mas não quero discutir sobre isso nesta postagem. Afinal, é preciso avaliar uma visão ingênua por vez.

O objetivo aqui é levantar apenas uma questão: educação é mercadoria?

Como não tenho competência jurídica ou econômica para responder a esta questão, apelarei para uma visão usual (apesar de nem sempre praticável, por conta das inconsistentes arbitrariedades de autoridades econômicas e jurídicas) sobre o conceito de mercadoria. Mercadoria é "todo o bem sujeito a mercancia, ou ainda, toda coisa móvel, apropriável, que possa ser objeto de comércio".

Assim como existem o comércio formal (tributado) e o comércio informal (que sonega impostos), também existem a educação formal e a educação informal. A educação formal é aquela educação institucionalizada e legalmente regulamentada, na qual o processo educacional é reconhecido pela emissão de históricos escolares, certificados e diplomas, nos termos de leis. Já a educação informal é um processo social inevitável, por consequência de interações sociais de indivíduos com a unidade familiar, círculos sociais e ambiente. É a velha máxima que diz "O que não se aprende em casa, se aprende na rua." Neste contexto, autodidatismo também é uma manifestação de educação informal.

No processo social de educação formal há a oferta de conhecimentos gerais e específicos, sejam científicos, tecnológicos, culturais, morais, históricos ou artísticos. E esta oferta de conhecimentos jamais é gratuita, em termos econômicos. Ela é paga, no caso de instituições privadas, e paga através de impostos, no caso de instituições públicas que não cobram mensalidades ou anuidades. 

O bem adquirido por aquele que foi beneficiado com educação formal é conhecimento. Este mesmo conhecimento é um bem apropriado pelo beneficiado e que pode ser vendido. Com efeito, é por conta deste conhecimento que o beneficiado pode criar e desenvolver uma carreira profissional, que permita a sua inserção no complexo mercado de trabalho. E, assim como dinheiro investido pode produzir mais dinheiro, conhecimento investido também pode produzir mais conhecimento e, portanto, dinheiro. É o que ocorre nos processos de inovação, seja científica ou tecnológica.

Portanto, a educação formal oferta conhecimentos que são, de fato, objetos de comércio. Conhecimento é objeto de compra e venda.

O profissional que evidencia de forma mais clara o fato de educação ser mercadoria, é justamente o professor. É um indivíduo que sistematicamente professa conhecimentos em troca de um salário.

No entanto, vale uma ressalva extremamente importante. No comércio de bens e serviços existe a frequente preocupação sobre a qualidade daquilo que é vendido e comprado. Avaliar a qualidade de uma fruta ou de um automóvel é uma tarefa muito menos complexa do que avaliar a qualidade da educação ofertada por uma instituição de ensino e, consequentemente, pelos seus professores.

Vários questionamentos sobre a qualidade da educação em nosso país já foram apresentados, discutindo-se desde a grave crise na USP (que muitos ingenuamente atrelam a aspectos meramente financeiros), até a qualidade de cursos de direito, passando pela desvalorização de jovens talentosos e pelo paradoxal não reconhecimento de professores premiados, apenas para citar alguns exemplos.

Portanto, o discurso de que educação não é mercadoria precisa ser revisado de forma menos ideológica (como se percebe em movimentos estudantis e movimentos de greve de professores) e mais pragmática. 

O que define o sucesso de vendas de uma mercadoria é o mérito conquistado por quem produziu e quem distribuiu e comercializou tal mercadoria. Como o Brasil é um país sem tradição alguma na produção de conhecimentos, a função principal de suas instituições de ensino tem sido a mera distribuição e comercialização de tais conhecimentos. Talvez por isso mesmo se insiste tanto nos impensados jargões "educação não é mercadoria" e "educação não é produto a ser comercializado". Isso porque falta aos educadores deste país a visão sobre o que, afinal, é educação e até mesmo sobre o que é comércio. 

O fato de existirem exemplos de brasileiros que produziram conhecimentos não se reflete ainda em qualquer tradição de produção de conhecimentos. Falta massa crítica para exercer influência definitiva na cultura brasileira como um todo. 

E como a educação brasileira não está concatenada com qualquer tradição de produção de conhecimentos, isso acaba comprometendo a distribuição de conhecimentos. Tanto é verdade que professores em nosso país apenas repetem palavras escritas em livros ou apostilas, sem permitir espaço para questionamentos. Quem distribui e comercializa sem conhecer o seu produto, está inevitavelmente fadado ao fracasso. 

Apenas uma última mensagem ao leitor, no que se refere ao tema desta postagem: sempre desconfie da opinião da maioria.

Quem produz conhecimento sabe que todo conhecimento é questionável. Se alguém discursa algo como "educação não é mercadoria" sem justificar, provavelmente não tem a mais remota ideia sobre o que está falando. Portanto, desconfie. Avalie. Questione. Esta é uma forma de colaborar com a inversão cultural de nosso país e, talvez, desenvolver alguma tradição na produção de ideias. Assim, quem sabe, um dia teremos um Brasil genuinamente dedicado à educação, sem discursos demagógicos e precipitados.

10 comentários:

  1. Sempre entendi a afirmação "educação não é mercadoria" como significando "não é apenas uma mercadoria" ou, pelo menos, "não é uma mercadoria qualquer". E, nesse sentido, é a mais pura verdade.

    Um exemplo mais extremo: crianças. Elas também podem "ser objeto de comércio", e por vezes o são, mas ainda assim se justificaria insistir que "criança não é mercadoria". Não para negar a realidade, mas para enfatizar que elas têm um grande valor intrínseco - do mesmo modo que a educação - que é justamente o que se quer expressar com um 'bordão' do tipo "não é mercadoria".

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    1. Stafusa

      Ótimo questionamento.

      Macarrão também não é apenas mercadoria. É comida. No entanto, se procurar no google o termo "macarrão não é mercadoria" (incluir as aspas na busca), simplesmente não encontra ocorrência alguma. Ainda que se procure um termo mais amplo, como comida, há apenas 341 resultados para "comida não é mercadoria", contra 135.000 resultados para "educação não é mercadoria". O curioso é que "criança não é mercadoria" tem apenas 16.100 resultados.

      Ou seja, há uma motivação a mais no discurso sobre educação que não surge em discursos semelhantes para comida ou criança. E, se acompanhar os sites que discursam sobre educação, perceberá que não existe neles a mesma racionalidade que você emprega. Trata-se sim de um problema de ideologias querendo se impor à razão.

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    2. Existe um debate em andamento, por isso a maior presença online: há formadores de opinião defendendo a cobrança em universidades públicas, e pessoas se manifestando contra essa ideia - daí o grande número de resultados no google. Quando começarem a propor a legalização do comércio de crianças, o número de resultados de uma busca a respeito no google também aumentará.

      Mas a pergunta é: o que que se espera ganhar com as mensalidades? Nos EUA, um aluno gasta com universidade em média 8% da renda per capita do país. Esse número, aplicado à Unicamp, representaria 30 milhões de reais por ano, ou apenas 1,5% do orçamento de 2 bilhões dela. Não resolveria nada, mas a cobrança seria mais um empecilho à entrada na universidade.

      Me parece que aqueles que defendem a cobrança são incapazes de apresentar justificativas sólidas, que justifiquem os custos sociais. Se, por um lado, alguns dos que se opõe à cobrança estão contaminados ideologicamente, por outro, muitos dos que a defendem demonstram ingenuidade e falta de informação.

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    3. Stafusa

      Não foi intenção minha colocar em discussão aqui a proposta de cobrança de mensalidades em universidades públicas. Mas, observando a postagem anterior sobre a crise na USP, fica clara a má administração naquela instituição. Portanto, cobrar mensalidades enquanto se mantém as atuais políticas administrativas é, de fato, insano.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Eu acho que deveria existir mais liberdade pro cidadão decidir por si próprio o que é educação, e se ele deve pagar por isso ou não, ao invés de termos um estado decidindo o que cada pessoa deve aprender, quando, e como. E citando um texto do site mises.org.br:

    "Ter a educação como mercadoria significaria apenas e tão somente que um determinado conteúdo ou uma determinada competência poderia ter seu ensino livremente ofertado por aquele que se julgasse em condições para tanto, em troca de um preço por ele estipulado, ao passo que o interessado em adquirir aquele conteúdo ou competência poderia livremente aceitar a oferta se desejasse pagar o preço estipulado. Que mal há nisso? Acaso é a educação alguma espécie de bem sagrado que não poderia receber um preço? O educador teria que educar por uma espécie de sacerdócio, sem receber para tanto? Por quê?"

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  4. Esse discurso de que educação não é mercadoria é bem demagógico

    Talvez seja para justificar a incompetência daqueles que deveriam propiciar um ambiente de aprendizagem de qualidade e não o fazem.

    Sinceramente professor Adonai, não é possível adquirir conhecimento de verdade nas nossas universidades com estes "varejões do ensino" que só emitem diplomas, mas que não capacitam ninguém. Incluo neste seleto rol a universidades públicas, as quais seus professores são, em sua imensa maioria, máquinas de fazerem e corrigirem provas e trabalhos que nada avaliam, e que não têm o menor sentido. Para mim, obter conhecimento de verdade, infelizmente, somente por conta própria, É triste mais é verdade.

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  5. Acho que poderia haver uma distinção entre "educação como trabalho" (do professor, e de outros "profissionais da educação") e a educação como reconhecimento público da capacidade intelectual em relação a determinado assunto (a "avaliação", o "diploma"). No caso da educação como trabalho, ela equivale a um serviço, e um serviço é uma mercadoria -- é a força de trabalho que é vendida (pelo profissional) e comprada (pelo aluno ou pela "sociedade" em geral). Mesmo no caso da pesquisa, os pesquisadores são remunerados (pela sociedade, no caso do financiamento público, ou por empresas, ou uma mistura entre os dois). Existe, de uma forma ou outra, um "contrato de trabalho." O profissional oferece um bem em troca de outro: conhecimento transmitido (aulas etc.) e conhecimento gerado (pesquisa) são remunerados com salários, entre outros. No caso do reconhecimento público do conhecimento, este sim, não pode ser comprado. Ele é, por assim dizer, obrigatório, uma contrapartida do conhecimento transmitido e socializado. Não se pode negar realizar avaliações, como quer que sejam feitas, ou negar um diploma, se existem métodos e instrumentos (imperfeitos, obviamente, mas relativamente objetivos) de mensuração da capacidade de um indivíduo em relação a determinado assunto. Esse reconhecimento público é baseado, idealmente, no mérito e no esforço. Seria imoral, em termos gerais, comprar um diploma, ou respostas de uma avaliação ou concurso. Da mesma forma como seria, em princípio, condenável o rebaixamento do nível de alguma disciplina para "passar" a turma toda. Seria interessante avaliar mais a fundo, como Adonnai disse, os sites que discursam sobre a educação e se valem desse bordão. Muito do que está na cartilha da UNE (http://www.une.org.br/2014/03/une-lanca-cartilha-%E2%80%9Ceducacao-nao-e-mercadoria%E2%80%9D/) parece com reclamações do direito do consumidor. Se o bordão for utilizado contra a educação privada, ele perde o sentido: uma economia do Estado ou estatizada continua sendo economia (a educação como bem público, portanto, financiada pelo Estado); economia pressupõe bens, preço, comércio, troca. Quando se discute a (falta de) motivação de professores e alunos está-se a discutir em termos de trade-off (custo de oportunidade), de reação a incentivos. Mas o mais flagrante contra-senso é afirmar que educação não é mercadoria, mas é um "bem", que nunca é gratuito em termos econômicos, e que se utiliza para... ganhar dinheiro! Conhecimento e capacitação técnica derivada dele -- e, também, a apresentação dele -- é capital no mercado de trabalho. Finalmente, quem afirma que educação não é mercadoria parece dispensar, contraditoriamente, um enfoque econômico do sistema educacional.

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    1. Youssef

      Você realmente refinou o texto desta postagem. Grato.

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