quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Probabilidades no Ensino Médio
Noções sobre probabilidades são lecionadas no ensino médio de nosso país. Portanto, esta é outra fonte de frustrações para os jovens. E algumas das principais tolices que se ensinam nessa área é resultante de uma confusão entre formalismo matemático e mundo real.
Se for impossível a ocorrência de um evento, é razoável afirmar que sua probabilidade é 0 (zero por cento). Se for certa a ocorrência de um evento, é igualmente racional dizer que sua probabilidade é 1 (cem por cento). Mas podemos afirmar que probabilidade nula se traduz como a impossibilidade de ocorrência de um evento? Analogamente, podemos afirmar que probabilidade 1 (100%) corresponde à certeza de que o evento correspondente irá acontecer? Além disso, qual é a garantia que podemos dar em relação à certeza de ocorrência ou não ocorrência de um evento?
Probabilidade é um conceito de uma teoria matemática. E quando se fala na certeza de ocorrência ou não ocorrência de um evento, está sendo feita uma interpretação de tal teoria no âmbito do mundo real. As confusões que são feitas entre matemática e mundo real são assustadoras e têm gerado inúmeros preconceitos e erros na literatura e em sala de aula.
Imagine, por exemplo, um alvo circular de raio não nulo sobre o qual são arremessados dardos ideais; ou seja, dardos que marcam pontos com área nula sobre o alvo. Imagine também que a distribuição de probabilidades sobre o alvo seja uniforme, de tal modo que a probabilidade de se acertar uma região do alvo é calculada apenas pela razão entre a área dessa região e a área do alvo. Isso significa que para acertar um ponto qualquer do próprio alvo, devemos dividir a área deste pelo mesmo valor, o que resulta em 1. Ou seja, a probabilidade de se acertar um ponto qualquer do alvo é de 100%. Se dividirmos o alvo em duas metades, a probabilidade de se acertar um ponto qualquer de uma das metades é 0,5 (50%). Isso porque qualquer metade do alvo tem área correspondente à metade da área total do alvo.
No entanto, qual é a probabilidade de se acertar um ponto específico do alvo? Sabendo que um ponto escolhido tem área nula, a probabilidade é calculada como sendo zero dividido pela área do alvo, o que resulta em zero (0%). Ao se arremessar um desses dardos imaginários, ele eventualmente acertará algum ponto. E este ponto é tal que a probabilidade de ser acertado é nula. Ou seja, os dardos acertarão pontos cujas probabilidades de serem acertados é zero. Portanto, probabilidade zero não pode ser traduzida como a impossibilidade de ocorrência de um evento, pelo menos não no plano intuitivo do que entendemos como ocorrência de um evento.
É claro que estamos falando de dardos ideais, que marcam pontos e que, a princípio, não existem no mundo real. Afinal, dardos reais não marcam pontos, mas pequenos orifícios com área não nula, ainda que pequena (em comparação com a área do alvo).
Porém, mesmo no mundo real há demonstrações de que probabilidade nula não implica em impossibilidade de ocorrência de um evento.
Considere, para fins de ilustração, um simples jogo de cara e coroa, com uma moeda. Se assumirmos que a moeda arremessada é não-viciada, é senso comum considerar que a probabilidade de se obter cara em uma jogada é 0,5 (50%). Em contrapartida, a probabilidade de se obter coroa também é 0,5, pois cara e coroa são fenômenos complementares. A probabilidade de se obter cara ou coroa é de 0,5 + 0,5 = 1 (100%). Portanto, qualquer outra ocorrência tem probabilidade nula.
Mas há casos, muito raros, em que a jogada da moeda não resulta em cara ou coroa. Isso porque ela cai “em pé”, ficando imóvel em uma posição vertical relativamente ao solo. Temos assim uma ocorrência cuja probabilidade era nula. Ainda que alguém queira fazer um ajuste nessa experiência, jogando muitas vezes a mesma moeda e obtendo o número de ocorrências de cara, coroa e resultados atípicos, como o caso em que a moeda cai “em pé”, esse alguém estará dando uma interpretação frequencial ao jogo de cara e coroa. Vale lembrar que a interpretação frequencial, neste caso, é aquela que considera que uma probabilidade é calculada a partir de muitas experiências realizadas (no mundo real).
Toda função de probabilidade tem como domínio uma sigma álgebra que pode ser intuitivamente interpretada como um conjunto de eventos reais. Um dos problemas da interpretação física de probabilidade é a determinação dessa álgebra de eventos possíveis. Por exemplo, no jogo de cara e coroa, devemos levar em conta o evento atípico “ficar em pé”, no universo de possíveis resultados? Outra dificuldade é a definição da função de probabilidade em si. Ou seja, como garantir que uma moeda não é realmente viciada?
O quê a teoria de probabilidades determina de maneira inequívoca é o comportamento matemático geral da função de probabilidades, e não propriamente a sua forma específica e explicitamente dada, por exemplo, por algum tipo de algoritmo. Por exemplo, nenhuma probabilidade pode ser menor do que zero ou maior do que um. Essa propriedade é muito geral e permite a existência de uma vasta gama de funções que a satisfazem. As outras propriedades usualmente consideradas também não permitem a definição de uma função única de probabilidades, mesmo que consideremos o mesmo universo de eventos.
A atribuição de probabilidades em uma álgebra de eventos reais, do mundo físico, pode ser uma tarefa muito ingrata. Afinal, ao afirmarmos que a probabilidade de se obter cara é 0,5, o quê queremos dizer com isso? Queremos dizer que após dez milhões de jogadas, exatamente cinco milhões resultarão em cara? Mas dez milhões é um número que está longe da quantia total de vezes que podemos arremessar uma moeda, assumindo ainda que tal moeda não ficará desgastada (e, portanto, viciada) durante os arremessos e quedas. Será que uma atribuição de 0,5 para a probabilidade de se obter cara não reflete uma crença de que a moeda não é viciada? Nesse caso, a situação é mais crítica, pois crenças freqüentemente se mostram errôneas. Será ainda que a probabilidade de 0,5 para se obter cara não é uma propensão natural da moeda? Pode até ser, mas quem julga tal propensão? Um ser humano? Deus? Humanos costumam cometer erros, mesmo sem perceberem. E Deus, pelo menos na literatura científica, não tem sido muito citado como confiável fonte.
Como a interpretação física de valores de probabilidades está sujeita a erros de mensuração e erros de julgamento, não há como afirmar que mesmo uma probabilidade nula no mundo físico possa ser inquestionavelmente interpretada como a impossibilidade de ocorrência de um evento real.
Análise análoga vale para o caso de probabilidade um (100%). Isso porque se a probabilidade de ocorrência de um evento é zero, a probabilidade de não ocorrência do mesmo evento é um.
Teoria de probabilidades é um tema altamente não-trivial e demanda especial cuidado. Por exemplo, mencionamos acima algo sobre moedas não-viciadas. Mas o que é uma moeda não-viciada? É aquela na qual a ocorrência de caras, após arremessos, é aproximadamente igual à ocorrência de coroas no mesmo universo de arremessos? A resposta é não. Considere, por exemplo, uma seqüência de arremessos de uma moeda na qual temos o seguinte resultado:
Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa, Cara, Coroa.
Temos, neste exemplo, dezesseis caras contra dezesseis coroas. No entanto, esta moeda desperta suspeitas; pois em trinta e dois arremessos, ela tem alternado com precisão seus resultados. Em todas as jogadas ímpares (primeira, terceira, quinta etc.) temos obtido cara, e em todas as jogadas pares (segunda, quarta, sexta etc.) temos obtido coroa. Será que essa moeda é realmente não-viciada? Esse jogo é justo?
O estudo de probabilidades pode ter um importante papel na formação de cidadãos. Se as pessoas conhecessem noções básicas dessa área do conhecimento, não cometeriam erros grosseiros como apostar dinheiro em loterias ou acreditar em depoimentos extraordinários de contato com fantasmas e seres extraterrestres, ainda que vindos de pessoas confiáveis. Este último problema pode ser estudado do ponto de vista de probabilidades condicionais. Para detalhes sobre a importância de probabilidades condicionais no cotidiano e em ciência analisaremos em breve uma situação específica.
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achei seu blog por acaso e fiquei impressionado e ate mesmo emocionado com o amor que voce demonstra pela matematica.
ResponderExcluireu me formei e engenharia civil mas ainda tenha o desejo de fazer o curso de matematica e ler seus pequenos textos me faz ter mais vontade de fazer matematica
seu blog e uma inspiracao a todos que gostam de matematica e sonham com uma educacao de qualidade no nosso pais
jonathas (jonathas_salles@hotmail.com)
Oi, Jonathas
ResponderExcluirFico muito satisfeito com seu apoio. Eu agradeceria se você ajudasse na divulgação do blog.
Com relação aos seus planos, permita-me uma sugestão. Ao invés de fazer outra graduação (o que pode ser um tanto desestimulante na maioria dos casos), por que não faz um mestrado em matemática ou matemática aplicada? Se quiser conversar mais a respeito, meu email é adonai@ufpr.br.
cara muito irado...
ResponderExcluirSalve!
ResponderExcluirLecionando filosofia no ensino médio, fiz uma experiência sobre o ensino de probabilidade e fiquei surpreso com a dificuldade em mostrar que a chance de ganhar na SENA jogando ou não é praticamente a mesma.É impressionante como os alunos estão condicionados a acreditarem na publicidade e não na lógica.
Muito bom o texto professor.
Seja x o número de combinações de 60 elementos tomados 6 a 6.
ResponderExcluirSe não me ensinaram errado (e considerando que o sorteio da mega sena consiste em tirar 6 números de 60), a probabilidade de eu ganhar na mega sena seria n/x, onde n é o nº de "apostas simples" que eu fizer (fazer uma "aposta simples" significa apostar um cartão com 6 números).
Conclusão: se eu apostar 0 cartões n/x = 0 logo a probabilidade de eu ganhar o prêmio é 0.
Entretanto, andando pela rua eu posso encontrar um bilhete premiado e, por conseguinte, ganhar o prêmio.
Com base neste exemplo, algumas das afirmações seguintes tem algo de correto?
Afirmação 1) Este exemplo se encaixa na ideia de que "probabilidade zero" não significa "evento impossível".
Afirmação 2) Este exemplo não se encaixa na ideia mencionada, pois n/x não é a probabilidade de vc ganhar na mega sena mas sim a probabilidade de vc acertar as dezenas sorteadas.
Afirmação 3) O exemplo da mega sena não pode ser usado para ilustrar a ideia mencionada, pois ao cálculo correto da probabilidade de ganhar na mega sena deveria levar em conta a probabilidade de vc achar um bilhete sorteado.
AAnooniimoo.
AAnooniimoo
ResponderExcluirA afirmação 1 está correta, pois é comumente muito difícil aplicar teoria de probabilidades no mundo real. A afirmação 2 entra em conflito com o seu modelo proposto. A afirmação 3 carece de sentido, pois não há como garantir cálculos corretos de probabilidades no mundo real. Todas as aplicações de probabilidades no mundo real são meros modelos, nada mais.
Creio que esse cometário/pergunta não tem muita relação com o texto, mas vou fazê-los assim mesmo pois de algum modo se relaciona com probabilidade(e talvez o sr. possa tratar sobre algo neste sentido algum dia).
ResponderExcluirO sr. conhece a obra "a lógica do cisne negro" (de Nassim Taleb)?
Segundo entendi, Taleb acha que é muito inadequado utilizar a distribuição normal de probabilidade no setor financeiro (das ações, etc), pois nestes casos eventos distantes da média não são tão improváveis quanto prevê tal distribuição.
Já que, em suas palavras, "Todas as aplicações de probabilidades no mundo real são meros modelos", não seria exagerada a crítica que Taleb faz ao ato de empregar no mercado financeiro a distribuição normal como modelo matemático? Pois nenhum modelo seria perfeito...
Além do mais ele parece "atacar" a lei dos grandes números, mas até onde eu sei a lei dos grandes números é um teorema de matemática (verdadeiro!).
Se conhecer tal obra, poderia comentar algo sobre ela (principalmente com relação à qualidade da filosofia, da matemática e da ciência empregadas lá).
obs: este comentário está sob a influência de meu limitadíssimo
conhecimento de probabilidade e vasta ignorância a cerca do assim chamado "modelo de Mandelbrot".
AAnooniimoo
AAnooniimoo
ResponderExcluirNão conheço a obra citada. Mas muitas pessoas criticam o uso da distribuição normal em ciências humanas. Uma pessoa que faz isso de forma muito pertinente é o físico espanhol Juan Miguel Campanario. Há um link para o site dele na página de links recomendáveis deste blog. Recomendo.
No mercado financeiro então as dificuldades para conceber modelos matemáticos abrangentes e confiáveis é imensa. Isso porque muito do comportamento desse sistema depende de decisões pessoais comumente irracionais.
Agora, a questão de que aplicações de probabilidades no mundo real são meros modelos deve ser vista com cautela. Entendo seu argumento. Mas o fato é que sempre se deseja modelos confiáveis, em algum sentido. Foi bom você ter tocado neste assunto. Pensarei em algo para escrever sobre isso no futuro. Mas adianto que Patrick Suppes, estatístico e filósofo da Universidade Stanford, examinou o problema de modelagem em ciência de forma muito ampla e detalhada no livro Representation and Invariance of Scientific Structures (CSLI, 2002).
Pessoal,vocês sabem como calcular as chances na loteria [tipo MEGASENA] usando apenas Estatística Bayesiana ???? Ou então, utilizando um cero ramo da Análise chamado de "Teoria da Medida", criado pelos matemáticos freanceses Emile Borel e Henri Lebesgue, no início do século XX ?????????
ResponderExcluirA respeito dessa questão minha, um link da pergunta segue abaixo:
http://br.answers.yahoo.com/question/index;_ylt=AjOyOhx13acYt5rp4GMnXKHx6gt.;_ylv=3?qid=20110724155630AAiHYOx
Desde ja, grato pelo retorno e interesse ...
Adonai,
ResponderExcluiressas questões não poderiam ser explicadas usando os conceitos de evento isolado e abstrações? Visto que qualquer cálculo de probabilidades para um evento é nada mais que um modelo, com várias (possivelmente infinitas) aproximações, apenas dizemos que para tal evento isolado, ou seja, após estas aproximações, podemos calcular as probabilidades.
A teoria das probabilidades deveria deixar claro também que em alguns casos, como o lançamento de moedas, os objetos envolvidos são abstrações, e que não são "utilizados" objetos reais. Por exemplo: o conceito de um cubo é uma abstração, pois cubos não existem no mundo real.
Talvez esses conceitos poderiam evitar confusões no aprendizado de noções de probabilidade.
Rafael
ExcluirNão compreendi sua pergunta. Sobre quais questões você está falando?
As questões no caso seriam os exemplos que você mencionou no post, sobre o dardo e sobre a moeda, mas vale para qualquer problema de probabilidade.
ExcluirBasicamente o que quis dizer é que ajudaria a evitar confusões no estudo de probabilidade se fossem explicados introdutoriamente os conceitos que mencionei. O jeito que consegui encontrar para demonstrar essas fragilidades da teoria da probabilidade, que se trata de modelos, foi através desses conceitos.
Não sei se estas seriam formas corretas de explicar estatística, creio que livros sérios sobre o tema tenham introduções mais consistentes.
Rafael
ExcluirNão consigo perceber fragilidades na teoria usual de probabilidades (Kolmogorov). Trata-se de uma teoria matemática muito bem fundamentada e que permite a solução de uma infinidade de problemas de forma muito objetiva e clara. No entanto, acredito que sua preocupação se refere a aplicações de probabilidades em ciências reais (como a física). Neste caso, sempre existe o problema da interpretação da função de probabilidade.
Professor,
ResponderExcluirsou iniciante no estudo da probabilidade, mas quando você faz uma oposição entre o primeiro exemplo (dos dardos ideais) e o segundo (moeda), dizendo que este se trata de demonstração real, tive uma dúvida.
De maneira semelhante ao primeiro exemplo, podemos considerar uma moeda ideal, de espessura nula, de forma que só existam as possibilidades de cara ou coroa, de modo que ela não possa cair de pé.
Ou seja, os exemplos são semelhantes, não?
Acredito que, idealmente, não exista a possibilidade da moeda cair de pé, então não ocorre um evento que teria probabilidade nula, como você tenta mostrar. Estou errado?
Espero ter sido claro.
Daniel
Daniel
ExcluirDe fato, poderíamos considerar uma moeda ideal. E, neste caso, certamente poderíamos assumir que não exista a possibilidade de a moeda cair em pé. Mas na discussão acima faço um paralelo entre probabilidades aplicadas no domínio matemático e probabilidades aplicadas no mundo real.
E se a superfície onde se está lançando a moeda for arenosa? Ela poderia cair em pé, correto? Sendo assim, não deveríamos apenas levar em consideração cara ou coroa, mas a possibilidade de que seu resultado dependerá de outro fator, que nesse caso seria a superfície?
ResponderExcluirAnônimo
ExcluirProbabilidade é um conceito matemático, abstrato. Uma moeda é um objeto do mundo real. Aplicar probabilidades no mundo real significa estabelecer uma correspondência entre algo de caráter abstrato e algo do mundo real. Essa correspondência é algo ardiloso e sempre questionável. Afinal, poderíamos tentar antecipar a possibilidade de que a moeda tunele chão abaixo, atravessando a superfície sobre a qual ela cai. É mais fácil conhecer matemática do que aplicá-la. Isso porque o suposto mundo real é ainda um grande mistério.