quarta-feira, 20 de maio de 2015

Como escrever artigos científicos


Recentemente descobri algo que me deixou perplexo. A internet está repleta de cursos sobre escrita científica. Descobri, por exemplo, que a Universidade Stanford é uma das instituições de renome que oferece curso sobre como escrever artigos científicos. No Brasil, a Universidade de São Paulo também oferece algo parecido. Fiquei sonolento quando acompanhei um dos vídeos. Isso tudo me faz lembrar do péssimo livro de Umberto Eco, intitulado "Como Se Faz Uma Tese". Este texto de Eco pode ser uma ótima referência para aqueles que não têm a menor aptidão para a atividade científica, mas que desejam se tornar sócios do Clube da Ciência, publicando textos desinteressantes que apenas acumulam pó em prateleiras de bibliotecas. É o tipo de público que fica fascinado com as normas da ABNT. Mas o autor nada discute sobre aquilo que realmente interessa: o ato da criação. E nem poderia! 

Preocupar-se sobre como escrever um artigo científico é equivalente à preocupação sobre o que vestir no dia do próprio casamento. É claro que a roupa usada no casamento trata-se de uma demonstração de respeito e seriedade perante a cerimônia. Mas o que realmente importa, no final das contas, ainda é o casamento. Évariste Galois que o diga! Seus artigos eram definidos por afirmações ambíguas, com problemas de pontuação e um estilo irregular. Em um trabalho publicado em 1830 no Annales de Mathématiques, até mesmo o nome de Galois estava escrito errado. No entanto, a obra deste grande cientista francês se consagrou como um monumento incontestável na história da matemática. 

Os inúmeros cursos que existem por aí sobre escrita científica são um mero sintoma de um fenômeno muito grave que assola o planeta: a crise na ciência. 

Temos, hoje em dia, teses repletas de plágios, artigos com erros graves, ideias absurdas defendidas por pesquisadores que escrevem muito bem, periódicos de acesso livre que publicam qualquer coisa que autores escrevam (desde que paguem), insanos movimentos de dissidência científica, filósofos que não filosofam, e pelo menos um Membro da Academia Brasileira de Ciências que defende o Criacionismo

Pois bem. Aqui vai o meu "curso" sobre escrita científica. 

A pessoa interessada em publicar artigos científicos precisa de apenas duas aptidões:

1) Saber desenvolver uma ideia científica relevante e inédita.

2) Saber escrever de forma persuasiva.

Como desenvolver ideias científicas relevantes e inéditas? Bem. Se milhares de exemplos históricos, ao longo de séculos de atividade científica sistemática, ainda não deixaram claro o suficiente o processo de criação, eis as três informações-chave: estudo, troca de ideias e busca por soluções. 

Sem conhecer ciência profundamente, não é possível desenvolver ciência inédita e relevante. E, para conhecer ciência, é necessário muito estudo. Livros clássicos e artigos recentes veiculados nos melhores periódicos são um excelente ponto de partida. 

Mas não adianta apenas estudar. É necessário trocar ideias com experientes pesquisadores e cientistas, periodicamente. A experiência dos mais velhos precisa ser confrontada com a ousadia e a criatividade dos mais jovens. "Pensar fora da caixinha" é fundamental. Mas saber ouvir é igualmente importante. 

A busca por soluções é a parte mais difícil. Um problema genuinamente importante e difícil só pode ser resolvido diante de um compromisso ininterrupto com o mesmo. Problemas científicos sérios não são necessariamente resolvidos em horas estipuladas para reflexão. Não basta agendar: "durante este horário do dia eu penso". Cito o famoso exemplo de William Rowan Hamilton. Este célebre cientista irlandês sabia que os números complexos podiam ser compreendidos como pontos em um plano e que as operações algébricas sobre eles eram associadas a operações geométricas. Pensou, então, em estender esses resultados para pontos em um espaço tridimensional. Mas sempre fracassava quando tentava definir multiplicação entre triplas ordenadas. Foi durante um passeio com a esposa, sobre uma ponte de Dublin, que Hamilton vislumbrou a solução para o seu problema: basta considerar quádruplas ordenadas ao invés de triplas. E assim nasceram os quatérnions. Um agradável passeio com a esposa não é o bastante para alienar a mente de um cientista. Ciência é uma atividade extraordinária. Problemas científicos acompanham a mente do pesquisador nos momentos mais inesperados, pelo menos aos olhos daqueles que não são cientistas. 

Agora vamos à aptidão número 2: escrita persuasiva. 

Textos científicos, assim como a maioria dos textos não-ficcionais, devem ser persuasivos. Textos científicos devem convencer seus leitores. Esta é a arte da eloquência, a arte de bem argumentar, a arte da palavra, também conhecida como retórica. E a história da retórica, como bem coloca o físico Anthony Garrett, não é a história da ciência. 

Quem não sabe escrever artigos científicos, também não sabe ser persuasivo. É possível sim aprender as técnicas da retórica. Mas há pessoas muito persuasivas que jamais estudaram retórica. E isso é algo interessante, uma vez que não é possível fazer ciência sem conhecer ciência. 

Nos ensinos fundamental e médio estuda-se português, inglês e filosofia. E há um motivo para isso: para aprendermos a ler, escrever e argumentar. 

Não sabe escrever um artigo científico? Então escreva uma ideia qualquer e procure defender esta ideia da melhor maneira possível! Em seguida mostre o seu texto para outras pessoas e acompanhe as críticas. A internet é uma oportuna ferramenta de exposição de ideias e que jamais esteve à disposição da maioria das grandes mentes da ciência. Algumas críticas serão absurdas. Outras serão inócuas. Mas eventualmente alguém apresentará uma crítica que aponte para os seus erros. Errar dói. Mas é aquela história: errando se aprende.

Quando eu era aluno de ensino médio, submeti um artigo para um periódico científico. O resultado foi um desastre. O artigo foi recusado. Anos depois percebi: "onde eu estava com a cabeça, para escrever uma coisa daquelas?" 

Durante o mestrado escrevi um artigo em parceria com meu orientador, Germano Bruno Afonso. O texto foi aceito e publicado. Era algo pequeno, mas eu estava no caminho. Jamais teria conseguido realizar aquele trabalho, naquela época, sem o senso crítico e a experiência de meu orientador. E é justamente esta a função do orientador: orientar.

Durante meu pós-doutorado em Stanford, aventurei-me com o primeiro artigo solo escrito seriamente. Era um trabalho sobre mecânica de Hertz. Escrevi com extremo cuidado, mostrei versões preliminares para colegas, recebi críticas, apliquei minhas próprias críticas, procurei ser convincente, evitei redundâncias e ambiguidades, procurei demonstrar familiaridade com o tema. Tudo o que eu queria era descrever as ideias de Hertz sobre mecânica em uma linguagem formal axiomática. Isso contrastaria com a usual noção de que forças são indispensáveis em mecânica newtoniana. Consultei pesquisadores experientes a respeito de opções de periódicos adequados para submissão. Apresentei o trabalho em um evento na Itália, para uma plateia de físicos e filósofos de diferentes cantos do mundo. E somente então submeti o artigo. Foi aceito, sem necessidade de fazer modificações. Hoje este trabalho é citado por Max Jammer, em seu clássico livro sobre conceitos de massa em física

Patrick Suppes dizia: "Jamais termino de escrever livro algum, artigo algum. Apenas os abandono." Resultado: centenas de publicações científicas e filosóficas que transformaram o século 20.

Conheço minhas limitações. Então, o que faço? Parcerias com profissionais de altíssimo nível e extremamente exigentes. Raramente publico artigos solo. Por quê? Porque assim recebo críticas. Críticas impulsionam resultados melhores, quando sabemos ouvir. Meus trabalhos mais citados são, em sua maioria, artigos feitos em parceria. 

Como se aprende a namorar? Namorando! Como se aprende a escrever? Escrevendo! Como se aprende a pensar? Pensando! 

Se quiserem discursar sobre como discursar, fiquem à vontade. Mas acho que existem coisas mais importantes para se fazer. Casei com a ciência, sem terno e sem sapato italiano. Mas vivo uma relação estável e relativamente afetuosa.

14 comentários:

  1. Prof. Adonai,
    Noto que esta postagem é mais centrada nas ciências duras. Haveria alguma obra sobre produção científica voltada mais para as ciências humanas? Faço a indagação porque percebo que o processo de criação e a busca pelo "resultado" nas pesquisas do pessoal de humanas difere da turma de exatas e biológicas.
    Estou certo?
    Saudações,
    Rodrigo
    Saudações,
    Rodrigo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Rodrigo

      O resultado de uma pesquisa é uma conclusão. Nada impede, por exemplo, que a conclusão a respeito de um tema seja a seguinte: inconclusivo. Ciências humanas, levadas a sério, são extraordinariamente difíceis de serem desenvolvidas. No entanto, causa-me espanto que existam tantos artigos em ciências humanas escritos por um único autor. Isso não é um bom sinal.

      Em suma, não vejo motivo para não estender essa discussão para as humanas também.

      Excluir
    2. Prof. Adonai,
      Bem lembrada essa questão de número alto de publicações do pessoal de humanas.
      Mas o que seria uma boa pesquisa na área de humanas? Faço a pergunta observando que parte expressiva das pesquisas do pessoal de humanas não lida com dados (estatísticos, econômicos, demográficos) ou pesquisas de campo (por isso minha indagação inicial)?
      Saudações,
      Rodrigo

      Excluir
    3. Rodrigo

      Creio que a maioria das pesquisas relevantes, hoje em dia, têm caráter interdisciplinar. Veja o exemplo da arqueologia bíblica: interessa a teólogos e arqueólogos. Dependendo do trabalho envolvido, interessa também a físicos (por conta de métodos de datação). Mas se uma pessoa que trabalha com literatura, por exemplo, focar somente sob o ponto de vista de literatura, além de desenvolver um trabalho muito especulativo, ainda restringe demais o interesse social. Uma forma de desenvolver bons projetos de literatura, com potencial impacto social maior, é através de parcerias com historiadores, sociólogos, psicólogos, linguistas, entre outras opções. Certamente não sou contra estudos de literatura focados apenas do ponto de vista literário, assim como não sou contra estudos de matemática pura. Mas parcerias entre bons profissionais de áreas diversas comumente resultam em projetos de impacto maior.

      Excluir
  2. Olá Prof. Adonai,

    A companho seu blog a algum tempo e estou gostando muito. Uma recomendação que você sempre da é para as pessoas expor suas ideias e em particular fazer parecerias com pessoas de altíssimo nível. Percebo que essas recomendações são verdadeiras e muito importantes para a vida de um pesquisador!

    Mas mesmo sabendo disso, sinto muita dificuldade em expor minhas opiniões (por motivo de personalidade) e também não sei por onde começar para formar parcerias de alto nível!

    Se possível poderia me explicar como que se "aborda" uma pessoa de alto nível para formar uma parceria de trabalho futuro?

    Abraço,

    Alexandre

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Alexandre

      Você é aluno de graduação, de ensino médio ou de pós-graduação? Estuda em qual instituição? Não precisa apresentar detalhes que permitam a sua identificação. Apenas preciso me localizar, para tentar ajudar melhor.

      Excluir
    2. Sou aluno de doutorado da UFPR.

      Segundo meu orientador eu já tenho material suficiente para compor uma tese, mas me sinto frustrado em relação ao meu trabalho pois me parece ser apenas mais do mesmo. Sei que é muito difícil fazer um trabalho relevante durante o doutorado pela questão do tempo.
      Estou tentando sair do meu isolamento acadêmico para que no futura eu tenha a oportunidade de fazer algum trabalho relevante mas não sei por onde começar!

      Excluir
    3. Alexandre

      Se seu orientador diz que você já tem material suficiente para uma tese, então conclua esta etapa o quanto antes. Deveria ser o papel de seu orientador colocá-lo em contato com lideranças acadêmicas de grande destaque. Aparentemente ele não está fazendo isso. Então, uma solução que vejo é você apresentar trabalhos em congressos e simpósios e usar esses eventos para buscar contatos. É na hora do cafezinho que muitas parcerias são formadas. Outra sugestão é você procurar por artigos escritos por nomes importantes na sua área de atuação e analisar detalhadamente tais trabalhos. A partir disso você entra em contato com os autores e inicia um diálogo.

      É possível que você não tenha escolhido bem o seu orientador, o que torna a sua situação mais complicada. Mas isso pode mudar a partir de atitudes estratégicas suas.

      Excluir
  3. O que significa a imagem do post ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É apenas uma interpretação (irresponsável) para as faces da criação.

      Excluir
  4. É importante lembrar que nem sempre a culpa pela rejeição do artigo é do escritor, por vezes é do revisor. Artigo recomendado: http://vixra.org/pdf/0907.0020v1.pdf

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Enfant

      Muito bem lembrado. De fato, a vida de referee é muito ingrata: trabalha de graça e no anonimato, e ainda tem que emitir pareceres que exigem muito. Grato pela referência.

      Excluir
  5. Por favor escreva algo sobre a diferença entre mestrado doutorado graduação etc.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Anônimo

      Esta é uma solicitação antiga e um gigantesco desafio, principalmente hoje em dia. Isso porque há graduações que desempenham papeis semelhantes a pós-graduações e pós-graduações que são piores do que graduações ruins. Mas foi bom ter tocado no assunto. Pensarei a respeito.

      Excluir

Respostas a comentários dirigidos ao Administrador demoram usualmente até três dias.