sábado, 31 de março de 2012

Sobre respostas aos comentários



Até poucos dias atrás eu procurava responder a todos os comentários. Mas recentemente tenho evitado responder alguns deles. Quero deixar claro que essa atitude não representa qualquer desrespeito a quaisquer críticos. Simplesmente não quero desgastar a mim e a leitores com discussões prolongadas que não sinalizem qualquer possibilidade de convergência de ideias. 


Todas as críticas são obviamente bem-vindas. Tanto é verdade que jamais deixo de publicar comentários que discordam veementemente de algumas das ideias aqui colocadas. Os únicos tipos de texto que não publico são aqueles que usam vocabulário chulo ou que promovem ofensas pessoais, algo que felizmente não tem acontecido nos últimos meses. 


Ou seja, aqueles que discordam de conteúdos aqui veiculados são encorajados a prosseguirem com suas críticas. Peço desculpas se não responder a todos. Mas o fato é que também tenho minhas limitações.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Comemore os 100 anos da UFPR mentindo sobre sua idade


Durante décadas a Universidade Federal do Paraná (UFPR) se vangloriou por ser a mais antiga universidade do país. Este ano ela estaria completando supostos 100 anos de existência. Mas o que me intriga é que a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) completou 100 anos em 2009. Afinal, quem está mentindo? A resposta é simples: ambas.

A UFPR nasceu em 1950, quando foi federalizada a antiga Universidade do Paraná (esta sim fundada em 1912, mas já extinta). E a UTFPR nasceu em 2005, por irresponsável decreto presidencial. Mas como ela foi fundada a partir do antigo CEFET-PR (também já extinto), automaticamente ficou mais velha do que a UFPR. Ou seja, no Brasil você pode ser mais velho se for mais novo.

Portanto, temos aqui mais mentiras perpetuadas por instituições universitárias brasileiras, neste caso, ambas paranaenses.

Isso significa que se você conhecer um bar que foi estabelecido antes de 1909, basta transformá-lo em universidade federal para que ele se torne a mais antiga universidade do país.

Sem Fronteiras?



Por que publico as ideias aqui presentes na forma de postagens em blog e não em veículos da mídia impressa? São duas as justificativas: 


1) Blogs têm alcance maior e mais democrático, em comparação com a maioria dos veículos impressos. 


2) É praticamente impossível publicar sobre certos temas na mídia impressa.


Quando a revista Sem Fronteiras da Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Paraná me convidou para escrever um artigo para o segundo volume daquele periódico, redigi um texto de crítica ao sistema de ensino. Isso porque encontro sérias dificuldades para conceber ciência e tecnologia de qualidade sem educação competitiva diante da realidade internacional. Como resposta, uma editora assistente da revista me disse que aquele conteúdo poderia causar problemas de natureza política, os quais deveriam ser evitados. 


Não culpo a editora assistente, pois imagino que o emprego dela depende de boas relações com sua chefia imediata, a qual também precisa garantir sua posição diante de superiores. Mas o fato é que há um medo inerente de conflitos entre diferentes setores da vida pública. Além disso, não há interesse de governos em expor suas graves falhas ao público. Ou seja, existem fronteiras na revista Sem Fronteiras


Fiquei chateado com a decisão do corpo editorial, mas acabei me comportando como um bom e comportado escravo do sistema. Escrevi outro artigo, de crítica aos filósofos da ciência em geral, os quais têm se afastado cada vez mais dos avanços científicos contemporâneos. Tal texto não causou preocupação e foi até citado no editorial não assinado daquela publicação. Ou seja, apontar as mazelas da educação não pode. Mas criticar filósofos, isso sim vale a pena. Afinal, quem se importa com filósofos?


Meu texto original estava em melhor sintonia com o público-alvo da revista do que um artigo sobre o incipiente papel dos filósofos de hoje no desenvolvimento da ciência. Mas isso não parece ser importante para os editores da Sem Fronteiras. Será este episódio um sintoma das políticas da SETI?


Este evento não foi um caso isolado. Pelo contrário, ele ilustra de forma emblemática a absoluta falta de auto-crítica em inúmeros setores da sociedade brasileira, com especial ênfase àqueles ligados à educação. E quando falo de educação, estou me referindo a todos os níveis, da pré-escola à pós-graduação, e aos setores público e privado. 


O curioso é que professores criticam constantemente alunos, através de processos de avaliação que definem o futuro e até a auto-estima desses jovens. Mas quem critica os professores? E ainda que professores fossem institucionalmente criticados por discentes, qual seria o efeito prático disso? Docentes de universidades públicas não podem ser demitidos se suas aulas forem incompetentes. Mas alunos podem ser reprovados se suas provas demonstrarem suposta incompetência intelectual. Isso é justo?


No caso do ensino superior, vestibular também é um concurso público. Por que isso não garante a estabilidade para discentes de instituições públicas? Ou seja, uma vez que professores das instituições federais de ensino superior estão acima da crítica (por serem concursados), alunos aprovados por vestibular deveriam ter o mesmo tratamento. Em um ambiente onde todos os professores são brilhantes, não vejo motivo para não ver os alunos da mesma forma.


Quantos são os casos de docentes que ministram aulas sob o efeito de drogas e álcool? Conheço vários na UFPR e em outras universidades públicas. Quantos são os professores que cumprem as ementas em suas aulas? Garanto que não são todos. Quantos são os supostos mestres que realizam avaliações compatíveis com essas aulas? Testemunhei colegas que sentem um prazer orgástico em redigir questões de prova que não podem ser resolvidas a partir dos conteúdos abordados em aula. Quantos são os professores que não cometem erros graves durante a exposição da matéria? Em matemática, pouquíssimos. Até hoje, por exemplo, vejo o péssimo livro de Boldrini sendo usado em aulas de álgebra linear. Quantos que são assíduos? Bem, curiosamente não conheço um único docente da UFPR que tenha alguma falta registrada pela chefia de seu departamento. Quantos que cometem assédio moral ou sexual sobre os pupilos? Já vi vários processos internos de assédio. Mas nenhum deles resultou em penalidade alguma que pudesse causar preocupação sobre o professor. E que diferença faz colocar essas perguntas, se nenhum desses docentes pode ser demitido por incompetência, sistemáticas faltas, assédio ou mesmo agressão? Sim. Casos de agressão verbal não são raros na UFPR. Em suma, professores das universidades federais são intocáveis. Mas ninguém discute seriamente a respeito do tema. 


Reconheço que há muitos docentes de universidades federais genuinamente dedicados e competentes, ainda que tenham plena consciência da garantia da estabilidade. Mas eles fazem isso por escolha, por amor à profissão. Muitos deles chegam a afirmar que têm o melhor emprego do mundo, mas o pior trabalho. Já os demais se acomodaram com a estabilidade que até hoje é veementemente defendida por execráveis associações de professores e sindicatos.


Essa maldita estabilidade de emprego para todos os professores concursados das instituições federais de ensino superior tem que acabar de uma vez por todas. Isso necessariamente produz ambientes decadentes, doentes, medíocres, amargos e retrógrados. Por que se critica apenas a mamata dos parlamentares de Brasília? E quanto aos funcionários públicos em geral? Especialmente professores universitários deveriam ser exemplos de conduta íntegra. No entanto, a pornográfica estabilidade de emprego entre docentes das instituições federais de ensino superior vai em absoluto desencontro ao progresso. Ou seja, essa estabilidade é anti-patriótica. 


Brasil é brasa. Chega disso! Precisamos brilhar como chama e não como uma eterna promessa de país do futuro.


Por isso faço um apelo aos leitores deste blog. Criem veículos próprios de divulgação e crítica às mazelas de nossa educação e ciência. Precisamos unir esforços para construir um país melhor. Nada mudará se poucos se manifestarem. Se estes veículos forem concebidos por alunos, professores e pais e amigos de estudantes e docentes, poderemos efetivamente ser ouvidos em algum momento. 


Se não querem criar veículos, divulguem este blog! Sugiram temas! Participem com comentários! 


Faço este apelo como efetiva crítica à maioria dos leitores. Afinal, ontem este blog teve 673 visualizações. E ainda assim pouquíssimos votaram na enquete. A enquete no topo da página e sua respectiva postagem fazem parte de um importante projeto. Nada aqui é gratuito.


Em postagem futura apresentarei sugestões de ações efetivas que professores e alunos possam executar, além da veiculação de denúncias e críticas. 

domingo, 25 de março de 2012

O que a UFPR espera de você?



Não importa se você é aluno (de graduação ou de pós-graduação), professor ou técnico-administrativo, o que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) espera de você é um desempenho mediano. A UFPR não está interessada em desempenhos medíocres ou acima da média. Você deve fazer exatamente aquilo que os demais fazem. Nem menos, nem mais.


Isso pode parecer um julgamento rancoroso de um docente que trabalha nesta instituição há mais de vinte anos. Mas justifico e exemplifico minha opinião.


Como a UFPR é uma instituição de ensino, meu foco nesta postagem é o corpo docente. Sobre os corpos discente e de técnicos-administrativos pretendo discutir em postagens futuras.


Todas as universidades federais de nosso país contam com um chamado "plano de carreira". Não gosto de usar este termo aqui no Brasil, pois planos de carreira deveriam ser meritocráticos. E não é o que acontece em nosso Berço Esplêndido. Diante deste patético "plano de carreira" docentes sempre podem progredir, mas jamais regredir. Uma vez aprovados na frágil avaliação de estágio probatório, têm seus cargos praticamente garantidos (a não ser que cometam verdadeiros atos de loucura ou abandono). Docentes também não podem negociar seus salários, de acordo com produção e repercussão de seus trabalhos. Ou seja, os cargos de professores auxiliares, assistentes, adjuntos, associados e titular são meros nomes. O único diferencial nestes nomes é o salário. Nada além disso.


Essas características inevitavelmente se refletem nas políticas internas dessas instituições, gerando um ambiente rançoso e acomodado, no qual somente produzem aqueles espíritos independentes que são verdadeiros apaixonados por suas atividades profissionais. E esses espíritos são poucos. Os demais se acomodaram em um confortável emprego que paga melhor do que a maioria das instituições de ensino do país.


Testemunhei inúmeros eventos que ilustram minha tese. Mas decidi reportar aqui apenas um deles, por ser recente e impactante.


Durante minha chefia do Departamento de Matemática da UFPR no período de 2005 a 2007, fui designado como relator de um processo que tramitou no Conselho do Setor de Ciências Exatas. Tratava-se de um casal recentemente contratado pelo Departamento de Estatística e que pedia afastamento para realização de curso de doutorado na Inglaterra, com convite e bolsa de lá. Ele, Leonardo Soares Bastos, recebeu apoio da Universidade de Sheffield, Reino Unido. Os custos envolvidos seriam cobertos pelo Managing Uncertainty in Complex Models Project e pelo próprio Departamento de Probabilidade e Estatística da instituição britânica. Seu orientador seria o Professor A. O'Hagan. Ela, Thaís Cristina de Oliveira Fonseca, recebeu apoio da Universidade de Warwick. Os custos envolvidos seriam cobertos por uma Bursary Award do Departamento de Estatística daquela instituição. Seu orientador seria o Professor Mark Steel. Tanto O'Hagan quanto Steel são nomes internacionalmente reconhecidos em estatística. 


Naturalmente dei parecer favorável ao pedido. Afinal, há carência de doutores em estatística no Brasil. E estatística é uma área do conhecimento de extrema importância estratégica para qualquer nação. Além disso, dois novos doutores acrescentariam muito ao Departamento de Estatística da UFPR, o qual já havia aprovado por maioria simples os dois pedidos de afastamento. E, para finalizar, uma importante liderança de pesquisa naquele departamento apoiava enfaticamente as solicitações daqueles dois jovens pesquisadores. Ou seja, os pedidos de afastamento estavam perfeitamente inseridos no contexto social local. 


No entanto, o Conselho Setorial rejeitou meu relatório e, consequentemente, ambos os pedidos. 


Quando mencionei em meu relatório que o orientador designado de Bastos era uma liderança mundial em estatística, fui obrigado a ouvir o seguinte comentário: “O mérito é do pesquisador inglês e não do rapaz que foi convidado.” E isso eu ouvi de um professor do Departamento de Física que já tinha considerável experiência científica e internacional. Ou seja, o comentário exalava inveja (por motivação) e boçalidade (para efeitos práticos).


O casal teve o pedido de afastamento indeferido, alegando-se que eles deveriam cumprir estágio probatório. Esta foi a trágica piada: estágio probatório.


Até então, praticamente todos os novos professores dos departamentos do Setor de Ciências Exatas eram aprovados com nota máxima no tal do estágio probatório, o qual avalia assiduidade, disciplina, capacidade de iniciativa, produtividade e responsabilidade, por um período de três anos. Uma rara exceção foi uma professora do Departamento de Matemática avaliada por uma comissão presidida por mim. E garanto que essa professora era extremamente competente, tanto em pesquisa quanto em docência. Ou seja, a maioria esmagadora dos professores recentemente admitidos por concurso público apresentavam assiduidade, disciplina, iniciativa, produtividade e responsabilidade impecáveis, de acordo com avaliações dos docentes mais antigos. Passados esses três anos, o docente pode fazer (ou não fazer) o que bem entender. Este fato foi apresentado durante a reunião do Conselho Setorial, mas vários professores insistiram que estava na hora de moralizar as avaliações do período de estágio probatório (o que quer que isso signifique). Excelente exemplo de oportunismo medíocre.


Além disso, o estágio probatório não é impedimento legal para afastamentos dessa natureza. E os membros do Conselho Setorial sabiam disso. Eu mesmo, por exemplo, já passei por situação parecida. Ingressei na UFPR em 1990. Em 1991 iniciei meu doutoramento na Universidade de São Paulo. Concluí em três anos. Em 1995 já estava novamente afastado, realizando estágio de pós-doutorado de um ano em Stanford. Havia uma regra que estabelecia que o docente deveria manter seu vínculo com a instituição de origem (UFPR, no meu caso) por período mínimo de mesma duração do período de afastamento, após seu retorno. Como esse tipo de norma é muito mal escrita, fiz contato com a Consultoria Jurídica da universidade. Aleguei que, mesmo estando nos Estados Unidos, eu ainda manteria vínculo empregatício com a UFPR. Não houve argumentos contrários. A Consultoria Jurídica reconhecia que as normas eram vagas. O Chefe do Departamento da época, Celso Carnieri, também fez contato com a Consultoria Jurídica, o que foi uma atitude evidentemente necessária. Mas meu novo pedido de afastamento foi aprovado por unanimidade, uma vez que se percebeu o mérito da solicitação e a ausência de impedimentos legais. Ou seja, tive a sorte de sempre contar com o apoio de meus colegas do Departamento de Matemática. E tive a sorte de ter meus processos avaliados por pessoas que não estavam dispostas a criar obstáculos. Mas essa sorte, lamentavelmente, não se aplica a todos. Afinal, o casal de estatísticos teve o azar de ser evidentemente mais competente do que a maioria e encontrar uma realidade bem diferente daquela que vivi: um setor repleto de doutores frustrados.


Os professores que insistiram no argumento do estágio probatório usaram o seguinte discurso: "Esses dois professores têm que provar que sabem dar aulas." Este argumento é incrivelmente ingênuo. O Setor de Ciências Exatas está repleto de professores cujas aulas são de qualidade altamente questionável. Absolutamente ninguém avalia a qualidade de aulas de docentes que já passaram pelo estágio probatório. Isso porque simplesmente não existe meritocracia alguma nas universidades federais.


Ao conversar com membros do Conselho Setorial, tentei sentir de perto as motivações que estavam por trás da decisão contrária aos pedidos de afastamento. É claro que tudo o que eu escrever no próximo parágrafo se resume a meras impressões pessoais e, portanto, limitadas à minha capacidade de interpretação de fatos. Mas talvez o leitor se identifique com o que descrevo.


Uma das pessoas que votou contra o pedido estava visivelmente movida por pura inveja. É um indivíduo que sonha em ser reconhecido como um profissional brilhante, mas que tem fracassado miseravelmente nessa empreitada. Havia também aqueles com inveja por terem sido obrigados a realizar seus cursos de doutoramento no Brasil. Afinal, tem sido cada vez mais difícil a realização de pós-graduação no exterior. Em compensação, outra pessoa que votou contra o deferimento estava fortemente convencida de que a avaliação institucional é mais importante do que o afastamento para o doutorado. O que essas pessoas não percebiam era o fato de que o casal ter sido convidado para realizar doutoramento em uma instituição de alto nível, com uma rara bolsa de estudos fornecida pelas próprias universidades inglesas, já reflete um mérito que também deveria interessar à universidade brasileira: pesquisa avançada. E neste mérito certamente estão contempladas assiduidade, disciplina, iniciativa, produtividade e responsabilidade. Outros, em contrapartida, votaram contra simplesmente por acompanharem a opinião de colegas e desejarem que a reunião encerrasse logo. 


Mas um dos eventos mais revoltantes neste bizarro caso foi o voto da chefe do Departamento de Estatística contrário ao pedido de afastamento do casal, contrariando a vontade da maioria simples do departamento que ela deveria representar. Além de votar contra, foi ela quem insistiu no argumento do estágio probatório. É este o comportamento de um Chefe de Departamento? Por que a Diretora do Setor apoiou essa postura? Os representantes de suas respectivas unidades administrativas devem simplesmente ignorar a vontade da maioria de seus colegas? É por isso que não existe código de ética entre docentes? 


No entanto, curiosamente havia outro fator relevante em jogo e que amedrontou alguns professores do Conselho Setorial. Quando um brasileiro recebe bolsa brasileira de estudos ou de pesquisa para realizar trabalhos no exterior, este assina um termo de compromisso para retornar ao Brasil e permanecer por tempo mínimo equivalente ao período de afastamento. Se, porém, este mesmo brasileiro recebe bolsa estrangeira, ainda que esteja empregado em instituição federal de ensino, não há termo equivalente de compromisso. Lembro que alguns expressaram a seguinte preocupação: "Será que eles voltam?" Ou seja, o raciocínio acadêmico de alguns doutores reflete simples egoísmo, como crianças que temem perder a sobremesa. Parte-se do princípio de que o casal quer apenas dar um pequeno golpe na universidade brasileira. Eles receberiam salário do Brasil somado à bolsa inglesa e, quando concluíssem o doutorado, pediriam demissão daqui para seguirem outro rumo. O vínculo com um respeitado pesquisador daqui não foi o suficiente para convencer certas pessoas de que não havia motivo para preocupações. Além disso, vale dizer que, mais importante do que interesses mesquinhos imediatistas institucionais, é o desenvolvimento da Ciência. Mas este é um conceito considerado por muitos professores da UFPR como uma visão purista. Afinal, o que seria essa tal de Ciência?


Essa postura de desconfiança demonstra claramente um espírito não científico. Isso porque o risco faz parte do espírito criativo que desenvolve o conhecimento. É claro que a realidade pode mudar e o casal poderia decidir pela demissão da universidade brasileira após a conclusão do doutorado. Mas era um risco aceitável, levando-se em conta que ambos adoram o Brasil e têm famílias por aqui. Em nenhum momento os professores que decidiram pela negação ao pedido de afastamento quiseram ouvir o casal, apesar de solicitações neste sentido terem sido feitas tanto por mim quanto por eles. É assim que as coisas funcionam por aqui. Com desconfiança e medo. Somos macacos que não ouvem e não enxergam, mas falam e decidem.


O curioso é que conheci pessoalmente o caso de um carioca que teve bolsa brasileira para realizar estágio de pós-doutoramento nos Estados Unidos e que, ao término do estágio, não voltou ao Brasil. Ele conseguiu uma ótima colocação na mesma universidade onde fez o pós-doutorado. Ou seja, não é um termo de compromisso de legalidade questionável que convence um pesquisador a permanecer no nosso país. Para mantermos nossos bons pesquisadores e bons docentes em casa, precisamos de uma estrutura que viabilize o bom trabalho deles, algo que certamente o Setor de Ciências Exatas da UFPR provou ser incapaz de oferecer.


Ciência é uma atividade que deve ser estimulada principalmente entre jovens. Se um jovem demonstra interesse e competência, ele deve ser estimulado para prosseguir com seus estudos e projetos o quanto antes e nas melhores instituições. É isso o que se faz nas boas universidades. Se existe real preocupação com relação a aulas, é claro que professores melhor qualificados têm maiores chances de corresponder com a expectativa de boas aulas. 


O desfecho do caso do casal de estatísticos não poderia ser diferente. Como eles trabalhavam há pouco tempo por aqui, não estavam contaminados com o mofo mental que domina os cérebros da maioria dos docentes mais antigos da UFPR. Portanto, pediram demissão e seguiram rumo para o Reino Unido. Após a conclusão de seus cursos, retornaram ao Brasil. Hoje ele é professor da Universidade Federal Fluminense, UFF. Ela é docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ. E a mentalidade daqueles que foram contra os dois pedidos de afastamento é a seguinte: "O Departamento de Estatística perdeu duas vagas." Isso mesmo! Eu ouvi isso! E mais de uma vez! "Perdemos duas vagas." É assim que as coisas funcionam por aqui. Professores representam mera mão de obra de docência. Professores ocupam vagas! 


Em reuniões anteriores do Setor de Ciências Exatas houve discussões intensas (muitas vezes ridículas) sobre critérios de distribuição de minguadas vagas cedidas pelo Governo Federal. E apenas isso se torna visível diante dos olhos de muitos: qual será a carga horária semanal de aulas do próximo semestre?


Há muitos anos venho me desestimulando na UFPR. E este evento apenas se soma a tantos outros semelhantes ou piores. Foi na mesma época que ouvi de docentes ativos da vida administrativa acadêmica a seguinte frase: "Na UFPR o que conta é política e mais nada." Isso não seria problema se a política privilegiasse méritos acadêmicos. Mas não é o que acontece. Posso citar muitos outros exemplos. 


O incrível é que raramente percebo má vontade na UFPR. O desejo consciente por sabotagem não é fator dominante. O que parece dominar é a mais pura e inocente ingenuidade. A maioria dos docentes parece realmente acreditar que executa um trabalho sério e eficaz. E essa mentalidade é praticamente impossível de combater. É muito mais fácil combater um vilão, que intencionalmente pratica o mal, do que crianças que não sabem o que fazem.


Para aqueles que duvidarem de meu testemunho relatado acima, faço a advertência de que tenho em mãos cópias dos dois processos de pedido de afastamento. Tenho em mãos até mesmo cópias dos pedidos de recurso, os quais foram tratados com desprezo ainda maior. Um dos pedidos de recurso foi indeferido pela 4.a Câmara Setorial. Ou seja, sequer foi considerado pela maioria dos membros do Conselho Setorial. O outro foi indeferido ad referendum pela Diretora do Setor.


Recentemente interrompi todos os projetos de pesquisa que eu havia registrado na UFPR. Pedi meu desligamento do programa de pós-graduação ao qual estava vinculado. Ninguém questionou meus motivos. Também não oriento mais aluno algum. Até abri mão de minha sala no Departamento de Matemática. Na UFPR tenho me limitado a lecionar e atender alunos. Fora da UFPR tenho me dedicado a projetos que, espero, contribuam mais do que tentei fazer pela instituição que me acolheu em 1990 como professor e em 1983 como aluno. Isso porque percebi que não tenho mais nada a fazer no escopo das atividades da UFPR em si, a não ser lecionar e atender alunos.


Para aqueles que estão dispostos a julgar minhas atitudes como reprováveis, digo que não sou caso isolado. O que faço aqui, e que se diferencia da postura de muitos, é simplesmente tornar os fatos públicos. Espero que outros sigam este exemplo. Somente diante do diagnóstico preciso é que algo pode ser feito a respeito da cura do câncer da vida acadêmica brasileira.


Quando o Governo Federal instituiu a Gratificação de Estímulo à Docência, anos atrás, finalmente surgiu uma rara forma de incentivo à produção. Minha pontuação sempre superava o dobro ou o triplo do necessário para ser contemplado com o valor máximo dessa gratificação. Mas, pouco tempo depois, o Governo Federal decidiu nivelar todos pelo teto. Os professores que tinham produção continuaram com a mesma renda. E aqueles que não tinham produção alguma passaram a ter significativo aumento salarial. Ou seja, de alguma forma, parece que a meritocracia é simplesmente impraticável nas universidades federais, pelo menos na forma como elas são hoje organizadas.


Minha esperança é que no futuro sejam tomadas as seguintes ações em todas as instituições federais de ensino superior: (i) fim da estabilidade do emprego para todos; (ii) adoção de políticas modernas e bem definidas de produção de conhecimento; (iii) estabelecimento de um código de conduta ou ética para docentes; (iv) efetivo e significativo reconhecimento dos mais produtivos; (v) programas de honors para estudantes; (vi) avaliações externas e independentes das instituições de ensino.


Dizem que a esperança é a última que morre. Mas o fato é que está explícito nesta máxima que ela também morre.


Observação Final: Cada imagem de cada postagem tem uma justificativa para seu uso. Normalmente evito explicitar tais justificativas. Mas sobre a imagem desta postagem acho interessante dizer algo a respeito. O que se vê no canto esquerdo superior é idêntico àquilo que se vê no canto direito inferior. Diferentes sensações de profundidade são percebidas simplesmente porque uma é a imagem rotacionada em 180 graus da outra. Ou seja, diferentes pontos de vista garantem diferentes impressões sobre o mesmo objeto. É uma forma de expressar as diferentes opiniões existentes sobre uma instituição como a UFPR.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O que este japonês estava fazendo no Mato Grosso?



Um dos erros mais frequentes no estudo de história da ciência é a exagerada ênfase sobre o resgate histórico das teorias que venceram as barreiras da crítica intelectual e dos exaustivos testes experimentais. Entendo que o estudo das origens das teorias que se consolidaram socialmente durante significativo período de tempo despertem grande atenção. No entanto, deveríamos ficar atentos também nas ideias fracassadas. Certamente podemos aprender muito com elas.


Cito aqui uns poucos exemplos. Mas meu foco principal é sobre a teoria não-espaço-temporal do ilustre físico japonês Takao Tati.


Tati começou a estudar física teórica quando Japão e Estados Unidos entraram em guerra na década de 40 do século passado. Naquela época a eletrodinâmica quântica ainda era uma teoria recente, que encontrava terríveis obstáculos teóricos. As quantidades físicas eram calculadas via teoria das perturbações. A primeira ordem dessas perturbações coincidia com dados experimentais. Porém os termos de segunda ordem (que deveriam refinar as previsões teóricas) divergiam. E aquelas parcelas infinitas certamente eram desprovidas de significado físico. 


Naquela época Tati era discípulo de Sin-Itiro Tomonaga. Mas a parceria durou pouco. Tomonaga investiu em uma teoria hoje conhecida como renormalização. Por conta disso, ele dividiu o Prêmio Nobel de Física com Julian Schwinger e Richard Feynman, os quais também apostaram na mesma solução. E a teoria de renormalização é até hoje empregada em teorias quânticas de campos, apesar de suas graves limitações. Afinal, a teoria de gravitação de Einstein é não-renormalizável, o que dificulta consideravelmente qualquer tratamento quântico para a teoria da relatividade geral. 


Tati, porém, apostou em outra ideia. Ele considerava que a origem das divergências nas teorias quânticas de campos estava no emprego do espaço-tempo clássico nas mesmas. Para Tati, cada teoria física deve ter seu próprio conceito de espaço-tempo. E, no caso das teorias quânticas, as grandezas físicas definidas sobre o espaço-tempo devem ser tratadas via equações de diferenças finitas e não através do cálculo diferencial e integral usual, o qual se aplica sobre um espaço-tempo contínuo. Ou seja, para Tati, o espaço-tempo do mundo microscópico das partículas elementares é discreto (especialmente no caso dos fenômenos de alta energia). Neste sentido, não se tratava mais do espaço-tempo usual. Daí o nome descrição não-espaço-temporal, como ele costumava chamar. 


Como a teoria da renormalização se tornou extremamente popular entre os físicos, as ideias de Tati foram completamente esquecidas ou ignoradas. Ninguém mais lembra. Ninguém mais fala sobre isso. Desafio o leitor a encontrar algum físico que conheça essa história. 


Eu mesmo conheci o trabalho de Tati por mero acaso. Isso porque um amigo meu, Fabio Antonio Filipini, conheceu o físico japonês pessoalmente. E isso aconteceu no Mato Grosso, quando Filipini era aluno de graduação de engenharia elétrica.


No dia 22 de junho de 1988 Takao Tati ministrou uma palestra na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá. Na época estava acontecendo um evento que reuniu grandes nomes da física mundial, incluindo Cesar Lattes e Erasmo Recami, os quais dispensam apresentação. E um dos resultados deste evento foi a publicação do livro Mecânica Quântica, do próprio Tati. 


Isso mesmo! Tati publicou um livro em português, com pouco mais de 100 páginas, pela editora da UFMT. A tradução é de João de Vasconcellos Coelho. Apesar do título, a obra trata de teorias de primeira e segunda quantização. É um texto raro que felizmente tenho em mãos. 


Quando eu soube das ideias de Tati, procurei imediatamente por referências. Descobri que a maior parte de suas publicações sobre física não-espaço-temporal foram veiculadas pelo periódico japonês Progress of Theoretical Physics. Na época esta era uma das mais importantes revistas de física do mundo. No entanto, jamais vi citação alguma a esses trabalhos de Tati, exceto em publicações minhas. Uns poucos textos técnicos dele foram publicados também na italiana Nuovo Cimento, outra referência importante mais de meio século atrás.


Um dos artigos em especial, publicado em 1964, descreve detalhadamente, em quase cem páginas, as ideias centrais da descrição não-espaço-temporal, bem como aplicações em teorias clássicas e quânticas. Li aquele artigo dezenas de vezes durante anos. E confesso que até hoje não consigo entender com clareza as principais ideias ali colocadas. O melhor que posso dizer é que sinto haver algo de valor ali, apesar de não conseguir qualificar o que seria exatamente esse algo.


Tentei desenvolver a teoria de Tati durante meu doutorado. Foi com este projeto que fui aprovado no programa. No entanto, após várias discussões infrutíferas, fui obrigado a desistir daquela meta. Cheguei a trocar correspondências com Tati, o qual foi sempre muito gentil e receptivo. Mas ainda assim não consegui superar minha dificuldade para assimilar aquela teoria.


Não são raras as teorias físicas que se denunciam confusas e até mesmo inconsistentes. A própria gravitação newtoniana é um exemplo bem conhecido. Além de empregar os conceitos metafísicos de força e ação-a-distância, ela se propõe a deduzir as leis de Kepler sem de fato conseguir. Afinal, para inferir órbitas planetárias elípticas em torno do Sol, faz-se necessário considerar que esta estrela é inercial, o que contradiz a lei de ação-reação de Newton. Ou seja, a possibilidade de que as ideias de Tati não sejam claras não deve ser o único motivo que justifique o seu desconhecimento por parte da comunidade internacional de físicos. Creio que um fator vital que explique o esquecimento das ideias de Tati seja o fato de que ele se afastou de colegas importantes, como Tomonaga. 


Talvez a realidade da era nuclear tenha exercido importante influência também. Afinal, a pressão por resultados imediatos na compreensão da estrutura da matéria, e de suas interações com campos, era intensa. Como a teoria de renormalização ofereceu resultados práticos e rápidos, não importava se se tratava de uma teoria sem elegância e de fundamentação questionável.


Steven Weinberg, Prêmio Nobel em Física, cita Tati em seu monumental livro sobre fundamentos das teorias quânticas de campos. No entanto, ele menciona brevemente apenas uma contribuição de início de carreira, feita em parceria com Tomonaga.


Já houve casos interessantes de teorias abandonadas que foram resgatadas. A interpretação que o Príncipe Louis de Broglie forneceu para a mecânica quântica, no início do século 20, foi esquecida por muito tempo. Mas o físico britânico (ex-professor da Universidade de São Paulo) David Bohm, recuperou as ideias principais e as desenvolveu com considerável receptividade internacional até os dias de hoje.


É claro que existem riscos na tentativa de resgate de ideias científicas abandonadas no passado. Mas não vejo motivo para ignorar o trabalho de Tati sem uma cuidadosa revisão. Afinal, ciência é investimento. E todo investimento apresenta riscos.


O fato é que, como observa Tati, a teoria de renormalização não resolveu de forma alguma o problema da divergência nas teorias quânticas de campos. Apenas o evitou, contornando o problema, como se ele não existisse. Se tais divergências existem, faz-se necessária uma análise sobre as causas. E o fato de que espaço, tempo e espaço-tempo sejam tratados na forma usual, como um contínuo, parece justificar as infinidades que despontam na aplicação da teoria das perturbações. Afinal, por que não usar somatórios no lugar de integrais?


Aliás, historicamente falando, são justamente as diferenças entre integrais e somatórios que permitiram H. Casimir prever o efeito quântico que hoje leva o seu nome. Mas sobre esta questão prefiro discutir em postagem futura sobre a matemática do vácuo.

quarta-feira, 21 de março de 2012

500



Uma pesquisadora como Johanna Döbereiner, tcheca naturalizada brasileira, exerceu forte impacto social em nosso país. Ela identificou uma bactéria que fixa o nitrogênio ao solo, dispensando o emprego de adubos químicos em certas culturas. Essa descoberta e sua aplicação transformaram o Brasil no segundo maior produtor mundial de soja, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Na opinião dela, o maior desafio da humanidade é vencer a fome.


O apelo de Döbereiner certamente deve ser ouvido. Mas temos que tomar cuidado com as possíveis impressões que uma afirmação dessas possa causar. Combater a fome é fundamental, sem dúvida. Mas assim como o avanço da matemática brasileira depende da ação de outros setores, como até mesmo o de ensino de línguas estrangeiras modernas, o combate à fome não pode se restringir a pesquisas e ações promovidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, principalmente se não houver articulação com outros setores da sociedade. 


Não devemos confundir metas bem definidas com métodos bem delimitados. A sociedade brasileira é extremamente complexa, operando como uma rede, ainda que governos se esforcem quase em vão para centralizar as decisões estratégicas. Investimentos sérios na educação apresentam reflexos no problema da fome de nosso povo. Tivemos a sorte de contar com a vinda de Döbereiner ao Brasil, pois isso intensificou e melhorou a produção de soja e de outras culturas. Mas nem sempre a sorte pode sorrir para nós. O trabalho dessa brilhante pesquisadora foi conseguido, em parte, por sua formação como engenheira agrônoma na Universidade de Munique, Alemanha. 


Por isso, me ocorre uma dúvida que considero crucial sobre o perfil social de nossa nação. 


No aniversário de quinhentos anos da descoberta (oficial!) do Brasil, a Editora Abril lançou um volume contendo quinhentas biografias de personalidades que tiveram relevância para a construção do país. Na área de ciências surgem quinze nomes, contra cinquenta em literatura e cento e sessenta e dois em uma seção chamada de história e política. Entre os minguados quinze nomes da ciência temos seis médicos, três físicos, um geneticista, uma agrônoma, um bioquímico, uma arqueóloga, um aviador e um lógico. 


É surpreendente que a maioria dos cientistas da lista seja de médicos, levando em conta o péssimo sistema de saúde pública que temos. Certamente precisamos de mais nomes nessa área. 


É curiosa também a ausência de nomes da matemática brasileira. É claro que há um lógico, mas os matemáticos daqui têm certos preconceitos contra lógica. Ainda assim esse lógico está entre os pesquisadores brasileiros com maior volume de citações em periódicos de matemática. Mas nem sempre o reconhecimento internacional se reflete nas mentalidades daqui. Por isso, dentro dos padrões brasileiros, podemos afirmar que não há um único matemático mencionado na publicação desta que é uma das maiores editoras do país. Digo isso, em parte, para acalmar os matemáticos que não estão listados.


A ausência de nomes da matemática brasileira nessa lista não parece remeter a incompetência na área. Afinal, matemáticos como Leopoldo Nachbin, Maurício Peixoto e Jacob Palis deixaram para trás obras marcantes com grande repercussão internacional. Não foi coincidência a indicação de Jacob Palis para a Presidência da União Internacional de Matemática. Por que então eles não figuram nessa lista? Será que essa ausência se deve a um baixo impacto da matemática na sociedade brasileira? Ou será que isso espelha a pouca importância que nossa sociedade confere à matemática? Essas são questões que merecem uma boa análise para serem respondidas. 


Mas, de qualquer modo, há uma contradição. O Brasil conta com grandes matemáticos no passado e no presente e nossa sociedade simplesmente não sabe disso! Qual é a correlação entre tamanha ignorância e o fato de que temos uma péssima educação matemática? Por que até mesmo professores de matemática desconhecem os nomes de nossos mais ilustres matemáticos? 


Conheci muitos docentes de matemática de ensino fundamental e médio. Raros foram os casos daqueles que já tinham ouvido falar de algum dos nomes citados. Até mesmo entre professores de ensino superior esse incômodo fenômeno acontece. Quando pergunto sobre matemáticos brasileiros, ainda ouço o nome de Oswald de Souza. Essa figura televisiva jamais fez qualquer contribuição relevante em matemática. Como diferenciar comédia de tragédia?


Mesmo Elon Lages Lima, apesar de não ser tão conhecido por contribuições relevantes na pesquisa matemática (mesmo tendo feito algumas), foi uma figura de grande importância na formação de milhares de matemáticos e professores. Seus livros usados em inúmeros cursos de graduação e suas contribuições para a formação e atualização de professores de matemática certamente tiveram um impacto social de peso. Será que educadores deste porte não poderiam estar presentes na histórica lista da Editora Abril? 


Compreendo que a seleção de apenas quinhentos nomes é um limitante considerável. Mas será mesmo que o apresentador de televisão Chacrinha teve uma importância social mais significativa em nosso país do que Elon Lages Lima, Maurício Peixoto, Leopoldo Nachbin ou Jacob Palis? Podemos dizer o mesmo dos jogadores de futebol Zico e Garrincha, também presentes nessa lista?


Que tipo de país é este? Podemos julgar a publicação da Editora Abril por uma falha cultural? Ou será essa lista de quinhentos nomes um inevitável reflexo sobre o quanto valorizamos a ciência e a matemática?


Se uma lista de personalidades famosas de Cuba não incluísse um único nome na área de filosofia, eu compreenderia tal atitude sem problema. Não acho que Cuba tenha produzido algum filósofo relevante. Mas o Brasil produziu ótimos matemáticos! Por que não estão lá?

domingo, 18 de março de 2012

Dicas para entrevistas em programas de pós-graduação

Os conteúdos desta postagem se aplicam a praticamente todas as áreas do conhecimento acadêmico.


Existem quatro modalidades de pós-graduação no Brasil: aperfeiçoamento, especialização, mestrado e doutorado. Não estou focado aqui na pós-graduação profissional, a qual tem caráter muito diferente da acadêmica. 


Cursos de aperfeiçoamento e especialização são, em geral, farsas universitárias que praticamente nada acrescentam em termos acadêmicos aos alunos. São basicamente fontes de dinheiro fácil para professores e instituições de ensino, sejam públicas ou privadas. Ou seja, o velho discurso do ensino público e gratuito, pregado pelas ingênuas associações de professores de instituições de ensino superior público, será uma eterna hipocrisia, enquanto persistirem os cursos de aperfeiçoamento e especialização pagos. E aqueles empregadores que diferenciam salários para docentes que contam com títulos de aperfeiçoamento e especialização em seus résumés, apenas alimentam essa farsa.


Já a modalidade de mestrado tem a principal função de cobrir lacunas de formação durante o período de graduação. Isso vale em qualquer país e não apenas no Brasil. Um estudante de graduação que realize atividades de iniciação científica de alto nível, e que estude de maneira mais aprofundada o que é lecionado durante seu curso, não necessita fazer o mestrado antes do doutorado. Outra atividade importante que pode tornar desnecessária a realização de um mestrado antes do doutorado é a conhecida monografia de conclusão de curso, desde que seja realizada com seriedade e a devida profundidade na abordagem do tema. Isso faz o estudante ganhar precioso tempo, se ele pretende seguir com estudos oficialmente reconhecidos após a conclusão de sua graduação.


Mas independentemente da história do estudante durante seu curso superior, tanto o ingresso na modalidade de mestrado quanto no doutorado exigem várias etapas de avaliação: análise de currículo e histórico escolar, cartas de recomendação, realização de provas e entrevista. 


Normalmente a entrevista é a última etapa no processo de avaliação de candidatos a um programa de pós-graduação. Mas se engana profundamente aquele que julga esta etapa como a mais fácil de todas. Conheci muita gente que foi reprovada apenas na entrevista. Isso porque programas de pós-graduação precisam se proteger contra candidatos com questionável potencial para concluir o curso pretendido. Afinal, o apoio financeiro desses programas depende, entre outros fatores, do desempenho de seus alunos. 


Por isso apresento algumas sugestões básicas sobre como proceder em tais entrevistas.


1) A mais importante recomendação é a seguinte: Peça para um experiente professor universitário (preferencialmente da área de seu interesse) simular uma entrevista com você. Isso é algo que consome, no máximo, meia hora. Este professor detectará rapidamente suas falhas e, desse modo, você estará melhor preparado para a entrevista real.


2) Pesquise tudo o que estiver ao seu alcance sobre o perfil do programa de pós-graduação. Essa investigação deve ser feita antes da entrevista. Se puder, assista a palestras de professores da instituição. Conheça a produção científica dos pesquisadores. Examine a estrutura do programa em termos de exigências para a conclusão do curso. 


3) Se você concluiu sua graduação (ou mestrado) há muitos anos e só agora está tentando ingressar em um mestrado (ou doutorado), certamente os entrevistadores perguntarão o motivo dessa demora para prosseguir em seus estudos. Se seus motivos se referem a problemas pessoais ou profissionais, deixe claro que tais problemas não podem mais interferir em sua vida acadêmica nos próximos anos. E justifique sua resposta. Se não teve motivo algum, jamais diga isso na entrevista. É fundamental que você demonstre maturidade acadêmica. Se for necessário, matricule-se em uma disciplina do programa de pós-graduação como aluno especial e procure ter o melhor desempenho possível em tal disciplina. Isso pode ser feito antes da solicitação de matrícula no programa de pós-graduação. Desse modo você terá um importante trunfo em mãos, principalmente se foi aprovado com nota máxima. 


4) Uma pergunta inevitável em entrevistas é o motivo para você desejar o ingresso no programa. Jamais apresente um único motivo. Ciência é uma atividade social e, por isso, opera em rede. Um único motivo é demonstração de isolamento social e intelectual. Apresente respostas do seguinte tipo: sempre gostei dessa área do conhecimento (justifique o que exatamente lhe atrai na área desejada de estudos); quero colaborar com o programa de pós-graduação, pois admiro o trabalho de Fulano e Beltrano (professores pesquisadores do programa que podem ser potenciais orientadores); quero e preciso crescer na minha carreira; tenho interesse em pesquisa (fale brevemente sobre o que pretende realizar) e o apoio institucional é fundamental para que eu coloque em prática meus projetos. Se insistirem no motivo para você desejar o ingresso especificamente naquele programa, seja honesto: tenho família nesta cidade e, por isso, terei mais tempo de me dedicar aos estudos e ao trabalho do que viajando para outro lugar; é uma das melhores instituições do país (mas só fale isso se for verdade amplamente reconhecida!); me identifico muito com o trabalho de Fulano e Beltrano (pesquisadores vinculados à instituição). 


5) Há entrevistadores que questionam o que você costuma ler. Neste momento espero que você de fato leia bem mais do que apenas livros didáticos usados na graduação. Textos técnicos tipicamente adotados em cursos de pós-graduação, bem como literatura de divulgação científica, são fortemente recomendáveis. Acompanhar revistas como Scientific American, Scientific American Brasil, Nature, Science, Proceedings of the National Academy of Sciences, ou mesmo Ciência Hoje, Pesquisa FAPESP, Bravo e Cult (dependendo da área de interesse) são fundamentais. Publicações mais populares como as revistas Veja e Superinteressante não devem ser mencionadas. Geralmente são inadequadas para esta finalidade.


6) Outra pergunta frequente é se o candidato tem interesse em receber bolsa de estudos. Esta é uma questão cuja melhor resposta é aquela que for transparente e objetiva, de acordo com o perfil pessoal do entrevistado: sem bolsa não poderei realizar o curso; não preciso de bolsa; não preciso de bolsa, mas ela facilitaria bastante a minha vida. Porém, jamais diga que não quer receber bolsa. Isso pode ser interpretado como falta de interesse em vínculo sério com a instituição. Se responder que precisa de bolsa de estudos, deixe claro que você conhece o valor e que o considera tolerável. Se não souber o valor, pergunte aos entrevistadores e avalie imediatamente se é aceitável, deixando clara a sua posição.


Outra questão importante é o visual do entrevistado. Em geral não existe preocupação se o candidato usa maquiagem, tatuagens, jóias, roupas caras, roupas baratas, piercings, peruca ou demais adereços. Mas uma noite bem dormida antes da entrevista e um banho não fazem mal a ninguém. Além disso, devem ser evitados agentes que comprometam o foco da entrevista, como perfumes de odor muito forte ou cheiro evidente de cigarro e/ou bebida alcoólica. Certas drogas legais e ilegais também devem ser controladas. Ressaca resultante de excesso de bebida na noite anterior, certos analgésicos e maconha são agentes que comprometem o desempenho intelectual de qualquer pessoa. 


Essas últimas recomendações parecem triviais. Mas o fato é que existem casos de pessoas extremamente talentosas (academicamente falando) que se descuidam gravemente com aspectos banais da vida.


Com relação ao estado emocional, excesso de calma ou acentuada preocupação não são obstáculos. Mas saber se expressar com clareza e objetividade é imprescindível.
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Nota de 24/10/2014: Se você está especificamente interessado em realizar um curso de doutoramento, recomendo a leitura deste texto.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Professores não sabem avaliar alunos



Ainda não sou capaz de oferecer uma definição formal para o complexo conceito de avaliação. Mas posso seguramente afirmar que avaliação é um processo de medição. Um professor que avalia um aluno, por exemplo, está tentando determinar o quanto que tal aluno sabe sobre um determinado assunto. Trata-se de um processo de comparação entre o conteúdo abordado em sala de aula e aquele efetivamente dominado por quem o estuda. Em termos mais gerais, um agente que avalia a qualidade do trabalho ou do estudo de um indivíduo, o perfil de uma instituição, ou mesmo o desempenho de uma nação, também está promovendo uma comparação com algum padrão, ou seja, está realizando uma medição.


Curiosamente, com preocupante frequência, professores deixam de empregar a teoria dos erros em seus processos de avaliação. Ignoram que toda medição admite um erro inerente e inevitável. E, em função disso, esses mesmos docentes reprovam alunos por um, dois ou cinco pontos percentuais. Dessa forma eles demonstram aos seus pupilos que matemática é algo que deve ser aprendido na escola, mas não aplicado nela mesma, apesar de teoria dos erros ter nascido como ramo da própria matemática. Tal postura não deixa de ser uma perigosa demonstração de que as realidades da escola e do resto do mundo são muito diferentes e até conflitantes. E isso está em conformidade com a prática da maioria das instituições de ensino de nosso país, as quais consistentemente não se submetem a avaliações sérias sobre elas mesmas. Trata-se de uma curiosa relação entre instituições de ensino e seus membros.


Como aplicar teoria dos erros em avaliações de alunos? A rigor, o resultado de uma avaliação deveria ser independente do professor que atribui notas a cada aluno, assim como a medição de um comprimento deve ser independente da régua usada. Se trinta réguas são calibradas com um mesmo padrão de medição, não importa qual delas seja empregada para medir um comprimento. O mesmo deveria ocorrer com atribuições de notas em avaliações. 


Digamos, portanto, que um professor aplique uma prova sobre uma turma. Um processo adequado para atribuição de notas consiste no seguinte: (i) cada prova recebe a nota de, digamos, dez professores independentes (sem contato entre si); (ii) calcula-se a média aritmética das dez notas sobre cada prova, o que produz o resultado da avaliação; (iii) calcula-se o desvio padrão das dez notas atribuídas sobre cada prova, o que resulta na margem de erro do processo de avaliação; (iv) adota-se um critério para aprovação e reprovação. 


O leitor pode fazer objeção sobre a praticidade do procedimento de empregar dez ou mais professores para corrigir cada prova de sua turma. No entanto, para contornar essa dificuldade, basta o docente aplicar este método poucas vezes em toda a sua carreira. Não é uma situação ideal, mas, pelo menos, forma-se um critério científico para a escolha de margem de erro em suas avaliações. Uma vez determinada uma margem de erro, ele a adota enquanto não encontrar evidências de que ela é inadequada. 


Com relação ao critério de aprovação e reprovação, este depende da política educacional da instituição à qual o docente está vinculado. Se se tratar de uma instituição elitista, o aluno somente pode ser aprovado quando sua nota subtraída pela margem de erro for maior ou igual à média mínima adotada para aprovação. Se a instituição de ensino for menos exigente, o aluno está aprovado se sua nota somada à margem de erro for maior ou igual à média mínima adotada para aprovação. No caso do Brasil, a maioria das instituições de ensino pode ser considerada do segundo tipo. Ou seja, reprovar um aluno por um ponto percentual é uma forma do professor afirmar que seus métodos de avaliação têm margem de erro inferior à 1%. E esta, definitivamente, não é uma postura científica. Trata-se de uma postura dogmática, na qual o docente exerce evidente abuso de poder. Afinal, avaliar alunos é um processo muito mais subjetivo do que medir comprimentos com réguas. É natural que a atribuição de notas em provas encontre margem de erro consideravelmente superior ao processo de medição de comprimentos.


Em várias palestras minhas discuti sobre este tema. Em uma delas, apresentada para um público de estudantes de mestrado e doutorado em Direito, a audiência estranhou quando afirmei que professores reprovam alunos por uns poucos pontos percentuais. Eles disseram que isso simplesmente não acontece no Curso de Direito. Em contrapartida, já encontrei professores de matemática e de física que simplesmente não conseguem concordar com as ideias que apresentei, apesar de jamais justificarem o motivo. Isso me perturba. Uma vez que a teoria dos erros foi criada por matemáticos, por que estudantes e docentes de Direito entendem o problema de avaliação melhor do que professores de matemática e física? O que há de errado com essa gente? Levam tão a sério o infeliz nome "ciências exatas"?


Instituições de ensino que não orientam seus professores em favor de critérios científicos para avaliação são instituições desprovidas de auto-crítica. A tendência de uma instituição de ensino sem auto-crítica é a de contar com docentes igualmente isolados em suas crenças e condutas. Citando mais um exemplo de carência de auto-crítica, quantas instituições de ensino no Brasil se preocupam seriamente em identificar o destino de seus egressos? Associações de ex-alunos são uma ferramenta de auto-avaliação institucional extremamente eficaz, pois permitem identificar qual é o papel que a instituição está exercendo sobre a sociedade. Se egressos de um curso de matemática, por exemplo, estão insatisfeitos com suas carreiras profissionais, algo deve mudar na instituição que os formou. Se egressos estão, em sua maioria, satisfeitos com suas carreiras, temos um sinal de que talvez a instituição esteja caminhando de forma adequada em termos de seu papel social.


A avaliação de uma instituição é um processo que envolve variáveis  suficientes para gerar inúmeras discussões. No entanto, surpreendentemente, isso não tem acontecido. 


Para facilitar o trabalho do avaliador, porém, devemos lembrar que uma das preciosas lições que a teoria da medição nos ensina é que o instrumento de mensuração deve interagir minimamente com o objeto medido. Garantir essa condição em sala de aula, durante um ano, semestre ou trimestre letivo é praticamente impossível. Isso porque é extremamente difícil fazer uma distinção entre conteúdo científico discutido criticamente e conteúdo lecionado e defendido por tradição, autoridade ou revelação. Ou seja, como garantir que uma avaliação, realizada por um professor, está medindo o conhecimento que um aluno domina sobre uma ciência (como a matemática) e não um pseudoconhecimento arbitrária e autoritariamente exposto por um docente com formação ruim? Além dessa evidência apontar para mais um fator subjetivo no processo de avaliação, também indica a extrema necessidade de critérios científicos no processo de atribuição de notas. Afinal, até mesmo provas objetivas admitem margem de erro. Isso porque provas objetivas são comumente enunciadas em linguagem natural, a qual é frequentemente ambígua e pouco precisa.


Uma forma de contornar a dificuldade da subjetividade da atribuição de notas a alunos é através de instrumentos de avaliação institucional de médio e longo prazo em contextos que transcendam a realidade local da instituição avaliada. É uma das formas mais eficazes de minimizar a interação entre avaliado e avaliador, medido e medidor. Tais avaliações institucionais podem ser feitas de diversas maneiras, sendo que o acompanhamento das carreiras de egressos é uma delas. 


Enfim, está na hora de dar um basta à postura de inúmeros docentes que assumem o papel de inquestionáveis conhecedores sobre o certo e o errado.

domingo, 11 de março de 2012

Qual é a solução para a educação brasileira?



Diante de todos os problemas apontados neste blog, faço essa pergunta, a qual pode ser respondida em enquete no topo da página. As respostas são anônimas e de múltipla escolha. Se houver votação representativa, encaminharei o resultado para órgãos governamentais e mídia.


Naturalmente a enquete não contempla todas as possíveis ideias para melhorar nosso sistema educacional. Escolhi uma quantia pequena de opções justamente porque questionários longos são cansativos. Mas se você, leitor ou leitora, tiver outras sugestões, pode apresentá-las aqui mesmo na forma de comentário. 

sábado, 10 de março de 2012

A Vergonha das Bancas de Pós-Graduação e de Concursos Públicos



O filme Twelve Angry Men (Doze Homens e Uma Sentença), de Sidney Lumet, conta a história de um júri que deve decidir se um jovem é culpado ou inocente da acusação de assassinato. Entre os doze, onze estão convencidos da culpa do réu. Mas um deles (interpretado pelo notável Henry Fonda) tem dúvidas. Ele quer discutir, trocar ideias, avaliar o caso com cuidado. É uma pessoa que prestou cuidadosa atenção nas alegações da defesa e da acusação.

O filme é uma batalha dialética como poucas vezes se testemunhou no cinema. No final, os doze acabam por inocentar o réu, por perceberem que não havia provas concretas, mas apenas evidências circunstanciais. Afinal, um réu só pode ser considerado culpado por assassinato se não houver dúvidas sobre o caso.


Em 2005 foi publicado um belo livro de Richard Dawkins (O Capelão do Diabo, Companhia das Letras), no qual o autor coloca em xeque a cientificidade dos usuais procedimentos adotados em tribunais de júri. Um júri (em diversos países) é formado por doze pessoas supostamente idôneas e de espírito independente, que não podem ter contato com o mundo exterior e eventuais reportagens da mídia. Eles têm a finalidade de decidir o futuro de um réu a partir de sessões em tribunal envolvendo advogados, testemunhas, eventuais peritos e o próprio réu. No entanto, os membros do júri podem conversar entre si em sessões secretas. A questão então é a seguinte: de que forma isso garante independência de pensamento e, portanto, de julgamento? 


Quando uma nova droga é testada em humanos, criam-se dois grupos de voluntários: aqueles que recebem a droga e um grupo de controle que recebe apenas um placebo, algo como uma pílula de açúcar. Nem mesmo os enfermeiros que administram a droga, ou aqueles que distribuem o placebo, sabem o que estão entregando aos voluntários. Isso garante independência entre eventos, encarando as reações de cada voluntário como um evento. Se, por exemplo, metade dos pacientes do grupo de controle sentir os efeitos da droga, sabemos que este é um efeito ilusório, alcançado por sugestão. Isso porque todos os voluntários sabem o que estão fazendo: o teste de uma nova droga. 


Tais cuidados que previnem o conhecimento direto sobre o quê os voluntários estão de fato recebendo em seus organismos, se fundamentam parcialmente em noções elementares sobre teoria de probabilidades, assunto primariamente estudado no ensino médio de nossas escolas. Como todos os voluntários acreditam na possibilidade de estarem sendo testados com a nova droga, é importante que os envolvidos não tenham certeza se estão realmente a recebendo ou não. Isso porque a probabilidade de uma pílula surtir o efeito da droga em teste, uma vez que o voluntário tem certeza que está ingerindo um placebo, não é necessariamente igual à probabilidade dessa pílula surtir o mesmo efeito diante de um voluntário que tem a certeza de estar submetido à droga. Em geral, há diferenças substanciais entre tais probabilidades, particularmente no teste de drogas que servem ao tratamento de doenças ou distúrbios de ordem psicossomática. 


Voltando ao caso do tribunal de júri, é natural que grupos de pessoas formem líderes. E é natural que esses líderes definam o comportamento do grupo como um todo. No caso do filme acima citado, a personagem de Henry Fonda se firmou como uma liderança, apesar de ter sido inicialmente recebida com grande ceticismo por membros do júri. Foi uma liderança com um resultado aparentemente justo. Mas a questão principal não é se uma decisão foi tomada corretamente. Se não há independência intelectual entre os membros de um júri, por que então escolher doze deles? Se uma só pessoa for capaz de influenciar as demais (o que não é absurdo supor), então bastaria o julgamento deste único indivíduo para definir o destino do réu. Os outros onze jurados mostram-se absolutamente dispensáveis. 


Em teoria de probabilidades sabe-se distinguir entre a probabilidade de um evento A e a probabilidade do mesmo evento A diante de circunstâncias dadas por outro evento B, especialmente quando os eventos A e B não são estatisticamente independentes. No caso do tribunal de júri, a opinião de um jurado é um evento e a dos demais jurados é outro. E comumente esses eventos não são estatisticamente independentes. 


O que queremos dizer com independência estatística? A questão é complicada para ser respondida sem fugirmos dos propósitos da postagem. Mas este é um conceito amplamente conhecido entre estatísticos e matemáticos. Para fins práticos, neste caso, podemos dizer que a independência estatística não ocorre entre os eventos no sentido de que a probabilidade de um jurado tomar a decisão A sem conhecer a opinião dos colegas é diferente da probabilidade de o mesmo jurado tomar a decisão A, conhecendo a opinião dos demais. 


Algo semelhante ocorre em bancas de pós-graduação e de concurso público para docentes em universidades. Uma típica banca de doutorado, por exemplo, conta com cinco membros titulares, sendo que um deles é o orientador de quem defende a tese. No Brasil, o orientador normalmente é o presidente da banca. Ele é o responsável pela condução dos trabalhos de avaliação. Os demais membros são escolhidos pelo próprio orientador e/ou por aquele que será avaliado. É claro que essa escolha está sujeita à aprovação do colegiado do curso; mas orientadores experientes sabem como lidar com nomes de modo a evitar frustrações ou indeferimentos diante de colegiados de programas de pós-graduação. A banca, uma vez formada, deve decidir em sessão pública se aprova a tese de doutorado defendida na forma como está, se a aprova condicionalmente a alterações feitas no texto original, ou se a reprova.


Neste sentido, a escolha de uma banca de doutorado é consideravelmente mais tendenciosa (e, consequentemente, mais estúpida) do que a de um corpo de jurados. Jurados são escolhidos, a partir de um pequeno universo de cidadãos, pelos advogados de defesa e acusação. Já no processo de defesa de doutorado, somente as partes interessadas no sucesso do candidato escolhem os membros da banca. 


Portanto, minha pergunta é: onde está a cientificidade dos procedimentos usuais de formação e aplicação de bancas de pós-graduação? Que diferença faz se uma banca de especialização tem dois professores, uma de mestrado tem três e uma de doutorado tem cinco? Afinal, não é o orientador uma liderança natural? Mesmo no caso em que o orientado aponta possíveis nomes para a banca, a prática mostra que a interferência do orientador é de extrema importância.


É claro que existe orgulho suficiente entre professores doutores pesquisadores para suportar a narcisista crença de que seus julgamentos são (estatisticamente) independentes. Mas se isso fosse verdade, por que não adotar procedimentos mais justos, menos suspeitos, menos sujeitos a severas e pertinentes críticas? 


Podemos mesmo supor independência estatística entre os julgamentos dos membros da banca e o julgamento do presidente desta?


Alguns professores universitários chegam a abraçar a seguinte política sobre participação em bancas: "se eu não concordar com o conteúdo da tese, basta não aceitar o convite; o orientador conseguirá alguém que irá em meu lugar."


E essa postura é um fato extremamente comum. Aqui está mais um exemplo das consequências da não existência de um código ético entre docentes.


Ou seja, uma vez que um professor orientador dê seu aval, é muito difícil que a banca crie confusão. Defesas de monografias, dissertações e teses são geralmente meros rituais acadêmicos que pouco têm a ver com qualquer postura científica. Isso significa que teses científicas devem ter caráter científico, mas a avaliação delas não. Por que será, então, que tão poucos leem teses e dissertações que ficam mofando em prateleiras de bibliotecas? Isso não é sintomático? 


Essa situação não ocorre apenas no Brasil, mas também nas melhores universidades do mundo. O próprio Dawkins, em seu livro citado acima, defende a ideia de que jamais devemos confiar no conhecimento que se justifica por revelação, tradição ou autoridade. Faz-se necessária uma argumentação racional para a defesa de qualquer tipo de conhecimento. Pois bem, a formação tradicional de bancas de pós-graduação é algo que tem se mantido por mera tradição. E, pior, se sustenta em absoluta presunção e vaidade intelectual. Opera como uma liturgia de uma antiga sociedade secreta.


Houve época, em algumas universidades europeias, que o professor orientador tinha que defender a tese juntamente com seu orientado. Isso faz um pouco mais de sentido, mas ainda não elimina o problema de comunicação entre os membros da banca. Tal comunicação ocorre, no mínimo, no dia da defesa da tese; pois o avaliado tem que fazer sua apresentação, seguida de uma arguição da banca, realizada na presença de todos. Mas, na prática, muitas vezes a comunicação entre membros da banca acontece antes da defesa, a qual novamente se denuncia como um mero e hipócrita ritual.


É claro que existe uma argumentação não ignorável em favor da troca de ideias entre membros de uma banca de pós-graduação. Uma vez que um trabalho de ordem intelectual está sendo realizado, faz-se necessária a troca de ideias para avaliá-la. Isso porque uma perspectiva pode estar sendo percebida por um membro da banca e não pelos outros. Mas esse argumento não passa de uma ingênua falácia. 


De fato, o desenvolvimento de um trabalho acadêmico demanda interações entre especialistas. Mas o julgamento sobre os méritos de um trabalho concluído que visa preparação para o ato da pesquisa é outra situação. Analisemos, para fins de ilustração, uma prática internacional que se qualifica de maneira muito mais profissional. 


Quando um pesquisador escreve um artigo e o submete para publicação em um periódico, dois especialistas da área são convocados pelo editor para avaliar o texto. Os dois especialistas são completamente independentes, pois são anônimos perante todos, exceto o editor. Cabe ao editor ler os pareceres, para poder tomar uma decisão. Dependendo do caso, o editor pode se sentir obrigado a consultar outros especialistas, que novamente atuarão de forma independente e no anonimato. Já atuei como avaliador para diversas publicações brasileiras e do exterior, e jamais tive conhecimento sobre quem eram os outros avaliadores. Também já atuei como editor e sempre procurei contato com especialistas de instituições geograficamente afastadas entre si. São procedimentos padronizados que têm garantido, salvo raras exceções, uma boa qualidade de publicação de textos acadêmicos. Por que não usar procedimento semelhante no processo de avaliação de monografias, dissertações e teses de pós-graduação? Se o doutorado é uma iniciação às atividades de pesquisa científica, por que não preparar o candidato para a realidade científica mundial? É por isso que existem tantos doutores no Brasil que jamais publicaram em periódicos internacionais? Estamos formando doutores com mentalidade infantil?


As bancas de pós-graduação mais se parecem com uma demonstração de força do orientador e não com um processo de avaliação do orientado. Há até uma anedota muito inspirada e que ilustra bem essa situação.


Uma raposa passeava por um bosque, quando repentinamente encontrou um coelho. Sua fome não tinha limites, mas a raposa ficou intrigada ao perceber que o apetitoso roedor escrevia sem parar, mesmo notando a ameaçadora presença de uma caçadora impiedosa. A raposa não resistiu e teve que alimentar sua curiosidade antes do estômago.


Raposa: "Olá, coelho. Antes de comê-lo, preciso saber o que estás a fazer."


Coelho: "Estou a escrever minha tese de doutorado."


Raposa: "Ah, é? E qual é a sua tese?"


Coelho: "O coelho é o predador da raposa!"


Raposa (gargalhando): "Sua tese é empiricamente inconsistente, coelho. Tanto é verdade que eu mesma vou comê-lo."


Coelho: "Tudo bem. Vou demonstrar minha tese. Entremos em minha toca, por favor."


Os dois entraram no buraco e então uma feroz luta é ouvida do lado de fora. Em seguida o coelho sai sozinho da sua morada, sem um único ferimento no corpo e sem qualquer abalo emocional.


Dessa vez um lobo se aproxima, também com fome, e vê o mesmo coelho ainda escrevendo sem parar. O lobo, apesar da fome, age como a saudosa raposa. 


Lobo: "Olá, suculento coelho. Antes que te devores, preciso saber o quê estás a escrever."


Coelho: "Minha tese de doutorado, senhor lobo."


Lobo: "Essa é boa. Nunca comi um intelectual. E qual é a tua tese?"


Coelho: "O coelho é predador do lobo!"


Lobo: "Minha piedade sobre tuas pobres ilusões de vida não me impedirão de comer-te aqui mesmo, ingênuo coelho."


Coelho: "Por favor, acompanha-me para a toca. Posso demonstrar minha tese com prazer."


Os dois entram na pequena morada e logo em seguida é possível ouvir os desesperados gritos do lobo em agonia de morte.


Quando o coelho sai novamente da suspeita residência, está acompanhado de um leão. O rei-das-selvas é seu orientador!


No caso de concursos públicos, para fins de contratação de docentes em universidades federais e estaduais, há umas poucas diferenças em relação a bancas de pós-graduação. Não existe qualquer orientador ou tutor que necessariamente tome partido para o lado do avaliado. No entanto, há mecanismos por vezes mais traiçoeiros.


Não são raros os concursos públicos em nosso país que são obviamente direcionados a um profissional específico. O objetivo da instituição que abre o concurso público é a contratação daquele indivíduo! Isso pode ser facilmente conseguido com a redação do edital, a qual é decidida pela unidade administrativa na qual o aprovado será lotado, em caso de classificação. Consequentemente, eventuais outros interessados em um emprego na instituição passam a ser prejudicados sem que o saibam. É uma maneira de instituições públicas contornarem as limitações de autonomia administrativa impostas por governos. No entanto, é também um ato de covardia, na opinião de muitos. No lugar das instituições públicas lutarem seriamente por autonomia, elas adotam esses subterfúgios que denunciam uma contradição no sistema de ingresso na carreira pública de ensino superior.


Vários foram os movimentos de greve em universidades que reivindicavam autonomia administrativa. Mas todos foram silenciados com uma simples negociação salarial, ainda que a negociação envolvesse uma gratificação que sequer fosse incorporada ao salário base. Outro motivo para que eu não seja sindicalizado.


Ainda em concursos públicos para docentes, devemos lembrar que o presidente da banca é, geralmente, membro da instituição que abriu o edital. Além disso, todos os membros da banca são indicados pela unidade administrativa que se beneficiará com o preenchimento da vaga. Isso também propicia outra situação isenta de critérios científicos. O presidente, normalmente conhecido pelos demais membros, pode secretamente orientar a banca no sentido de não aprovar um determinado candidato. Eu mesmo já testemunhei esse tipo de interferência em diversas ocasiões e instituições de ensino público.


Posso garantir o seguinte: É muito difícil crer na existência de bancas verdadeiramente justas, tanto em concursos públicos ou testes seletivos, quanto em programas de pós-graduação. Eu, por exemplo, já fui convidado por um pesquisador para participar de uma banca de qualificação para doutorado simplesmente porque o presidente da banca considerava o candidato fraco. Durante a arguição os demais membros da banca (exceto o presidente, que evitou interferências) elogiaram o projeto. Eu, porém, não consegui aprovar o projeto do candidato porque era obviamente ridículo. Consequentemente o candidato desistiu de sua intenção para ingressar no programa. Ou seja, bastava ter me substituído por outra pessoa (como aqueles professores doutores de mentalidade medíocre) para que o candidato fosse aprovado.


Outro aspecto importante sobre este cenário é o preconceito racial ou xenófobo, notado principalmente após a aprovação de um candidato. É muito comum a presença de estrangeiros nas universidades públicas brasileiras, vindos de países como Peru, China, Rússia, Argentina, Alemanha e outros. E em muitas ocasiões vi alguns estrangeiros perceberem com estranheza certas características da vida universitária brasileira. Quando eles se manifestavam, testemunhei evidente preconceito diante de frases do seguinte tipo: "Não está satisfeito? Volte pra China!" ou "Aqui não é o Peru. É melhor ir se acostumando com os nossos modos."


Não vejo motivos para não nos beneficiarmos das experiências que podem ser assimiladas a partir de outras culturas. Mas assim como houve época em que a contratação de estrangeiros era legalmente proibida em universidades públicas brasileiras, essa xenofobia, praticamente diária em nossas universidades, se parece com algo que está nas raízes da cultura brasileira, mesmo em um suposto ambiente de tolerância, compreensão e razão dos acadêmicos tupiniquins. Talvez isso faça parte até mesmo da cultura de igualdade que se sente em nossas universidades. Diversidade é algo que assusta a muitos, o que justificaria em parte a perpetuação até mesmo das políticas de formação e de ação de bancas de concursos e pós-graduação.


Ou seja, até quando manteremos a farsa de nossas universidades? A farsa das bancas é um fenômeno praticamente mundial. Mas o escândalo velado de nossos concursos públicos é uma afronta contra qualquer noção de civilidade. O que é necessário para o Brasil despertar de sua estupidez? Ou será que já estamos imbecis o bastante para não percebermos nossos mais graves e fundamentais erros? Se este for o caso, só vejo uma solução: abrir mão da soberania nacional e entregar o governo do país nas mãos de nações mais competentes. Não me importo de ser governado por japoneses, alemães ou norte-americanos. Só estou cansado dessa inércia brasileira.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ciência e Pseudociência



São muitos os autores que apontam para a miséria intelectual dos fundamentos da astrologia. Outros preferem questionar a cientificidade da homeopatia, da antropologia e da psicanálise. Há ainda aqueles que denunciam as frágeis bases epistemológicas e metodológicas da ufologia e da parapsicologia. Todas essas áreas citadas já foram associadas à pseudociência. Mas não serei capaz de definir claramente o que é pseudociência, pois sequer existe o conceito de ciência, de maneira a ser aceito pela ampla maioria da comunidade científica. O caminho que tento seguir aqui, portanto, para qualificar as diferenças entre ciência e pseudociência, é meramente pragmático. Ou seja, ciência é uma atividade exercida por uma comunidade profissional de pesquisadores e cientistas, os quais veiculam suas descobertas científicas e/ou tecnológicas em periódicos especializados que atendem aos seguintes requisitos básicos: têm que ter corpo editorial, sistema de avaliação promovida por pares, circulação internacional e indexação representativa (preferencialmente no Science Citation Index). No âmbito desta atividade, toda publicação científica está automaticamente sujeita ao espírito crítico e analítico da própria comunidade científica. Se uma dada contribuição publicada frutificar na forma de citações (seja por conta de aplicações, desenvolvimentos de novas ideias e teorias ou meros esclarecimentos), temos então um exemplo de trabalho científico relevante. 


Mesmo que este critério social possa parecer sensato à primeira vista, ainda é possível localizar estranhos focos de atividades suspeitas na rede social científica, mesmo quando se procura atender às exigências básicas citadas. Somos obrigados a perceber que a comunidade científica é uma intrincada rede social, cujos nós fundamentais são pessoas. E pessoas são sempre miseravelmente falíveis.


Cito o exemplo do brasileiro André Koch Torres Assis, professor livre docente de física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é um exemplo muito sutil, ainda que ocasional, daquilo que chamo de pseudo-intelectualismo, e que poucos percebem. Mas é um exemplo de pseudo-intelectualismo que deve ser levado muito a sério, dado o fato da sua influência ser muito mais significativa do que a de um místico que publica uma coluna de astrologia em um jornal ou de um médico homeopata que cura fobias usando gotas de água. Parte do que se segue é parcialmente inspirado em um artigo que publiquei anos atrás na Scientific American Brasil.


Quando se estuda eletrodinâmica clássica na universidade, a abordagem usual é através das equações de Maxwell, um sistema de equações diferenciais que descreve a dinâmica do acoplamento entre campos elétricos e magnéticos. Mas a eletrodinâmica de Weber, também originada no século 19, fornece uma visão alternativa para fenômenos associados à dinâmica de cargas elétricas, e que não é compatível com a teoria de Maxwell. Então, uma pergunta natural é a seguinte: “Por que se estuda eletrodinâmica de Maxwell nas universidades e não a de Weber?”


Alguns anos atrás, André Assis provou um resultado fascinante, do ponto de vista dos fundamentos de teorias físicas. Ele mostrou que, se a eletrodinâmica de Weber estiver correta, então a massa inercial de uma carga elétrica depende da distribuição de cargas ao seu redor. Vale lembrar que a massa inercial é aquela associada à dificuldade de se exercer mudanças no estado de movimento de um corpo com massa de repouso não-nula.


O interessante é que esse efeito previsto por Assis não ocorre no âmbito da teoria de Maxwell. Ou seja, tal conseqüência lógica dos princípios da eletrodinâmica de Weber não deixa de fornecer um fascinante teste de comparação entre as duas formulações que descrevem a dinâmica de corpos com massa inercial e carga elétrica. Além disso, esse conhecimento pode contribuir até mesmo no estudo de história da física, principalmente na eventual comparação entre ideias que se consagraram e aquelas que foram esquecidas.
O surpreendente foi o fato de que V. F. Mikhailov publicou nos Annales de la Fondation Louis de Broglie um artigo no qual se afirma que essa dependência entre massa inercial e distribuição de cargas elétricas se confirma experimentalmente. Um artigo desses, se estivesse correto, estaria colocando em xeque vasta porção do conhecimento tradicional sobre física clássica. Como há, em diversas teorias usuais, uma equivalência entre massa inercial e massa gravitacional (essa última é a massa responsável pelos processos de atração gravitacional), tal resultado estaria fornecendo uma pista valiosa sobre uma possível unificação entre os campos gravitacional, elétrico e magnético, algo sonhado há muito tempo pelos físicos. 


Posteriormente, porém, a revista Canadian Journal of Physics enviou para mim um artigo de Johann E. Junginger e Zoran D. Popovic, no qual os autores não apenas mostram a principal falha no experimento de Mikhailov, como também refazem a experiência corretamente e demonstram que a massa inercial de elétrons independe da distribuição de cargas ao redor, com uma margem de erro inferior a 1%. A revista canadense queria meu parecer sobre o artigo. Imagino que me procuraram porque anos antes eu havia publicado um texto (em parceria com Clóvis Maia) sobre algumas das idiossincráticas ideias de Assis na Foundations of Physics Letters, apontando erros fundamentais em sua obra sobre gravitação à la Weber. Recomendei a publicação do esclarecedor texto de Junginger e Popovic e o artigo acabou sendo veiculado pelo periódico canadense.


As discrepâncias experimentais entre as formulações de Weber e de Maxwell não param por aí. A força eletrodinâmica de Weber dá a direção errada da radiação gerada por uma carga elétrica acelerada e também não explica a luz síncroton, amplamente confirmada em aceleradores de partículas. 


Até aí não há problema algum, do ponto de vista científico. Apesar do fracasso da eletrodinâmica de Weber ser um fato experimental, não deixa de ser uma curiosidade fascinante a comparação entre duas formulações distintas para explicar um mesmo universo de fenômenos físicos, a saber, os que estão associados à dinâmica de cargas elétricas. O interesse filosófico sobre essas distinções epistemológicas é igualmente evidente.


Mas Assis resolveu ir além: abraçou a eletrodinâmica de Weber como projeto de vida em sua carreira, recusando-se a aceitar que eletrodinâmica de Weber é uma teoria que explica bem menos fenômenos do que o eletromagnetismo de Maxwell. E, além disso, desenvolveu um programa de descrição de forças gravitacionais, inspirado nas ideias de Weber para a eletrodinâmica, chamando-a de mecânica relacional. 


Assim como há semelhança em forma entre as leis de Coulomb e da gravitação universal de Newton, Assis investiu fervorosamente em uma proposta de “gravitacionalização” das equações de Weber, insistindo que suas ideias formam um novo mundo que coloca a teoria de relatividade geral de Einstein como ultrapassada. Aliás, pior do que ultrapassada, segundo Assis, a relatividade geral está errada!


Em seu livro Mecânica Relacional (CLE, 1998) Assis escreve à página 193 o seguinte: “Parece-nos que todos esses conceitos teóricos de contração de comprimento, dilatação do tempo, invariância de Lorentz, leis covariantes e invariantes, métrica de Minkowski, espaço-tempo quadridimensional, tensor energia-momento, geometria riemanniana aplicada na física, elemento de Schwarzschild, álgebras tensoriais em espaços quadridimensionais, quadri-vetores, tensor métrico, símbolos de Christoffel, super cordas, curvatura do espaço,..., desempenham o mesmo papel que os epiciclos na teoria ptolomaica.”


Em outras palavras, Assis simplesmente afirma que a maioria absoluta dos físicos é formada por tolos, mas que ele tem a solução para seus problemas. Pior do que isso, apesar de seu livro propor uma comparação entre sua mecânica relacional e a relatividade geral, o parágrafo acima promove uma confusão muito grande ao incluir o termo “super corda”, que nada tem a ver com qualquer uma das teorias aventadas. 


É claro que ciência não se faz por opinião ou votação entre cientistas. E, a princípio, podemos até admitir o caso de que Assis tenha razão, ou seja, que é um gênio à frente de praticamente todos os demais físicos do planeta, e que Einstein errou. 


Mas no momento em que Assis compara suas ideias próprias sobre gravitação com a teoria da relatividade geral de Einstein, ele claramente demonstra profunda ignorância sobre a última. Não posso me estender sobre todos os detalhes, os quais demandariam um livro inteiramente dedicado ao tema. E no passado troquei inúmeros e-mails e conversas com Assis, o qual sempre se mostrou muito simpático, apesar da mente impenetrável a críticas. Mas posso dar um breve exemplo ilustrativo da estranha mentalidade deste importante físico.  Afirma ele o seguinte: “Nada na física leva à conclusão de que a velocidade da luz deva ser constante qualquer que seja o movimento do observador ou do detector. [... isso] só pode gerar a necessidade de introduzir conceitos estranhos e desnecessários como os de dilatação do tempo, contração de comprimento [...].”


Assis demonstra, desse modo, desconhecer referências básicas de astrofísica e física de partículas, além de aplicações tecnológicas como o GPS (Sistema Global de Posicionamento). Se o sistema de localização global via GPS não levasse em conta efeitos relativísticos de velocidade do satélite relativamente à Terra e efeitos de diferença de potencial gravitacional (relevantes no âmbito da teoria da relatividade geral), jamais teríamos a precisão que este sistema oferece para posicionamento. O GPS funciona e funciona bem. E ele leva em conta efeitos previstos tanto da relatividade restrita quanto da relatividade geral. Contração de comprimento e dilatação do tempo são fenômenos reais, mensuráveis e mensurados em diversos testes independentes realizados ao longo de décadas pelo mundo todo, incluindo aqueles executados em aceleradores de partículas. 


Vale observar que o livro sobre mecânica relacional de Assis tem versão em inglês (publicada pela curiosa editora canadense Apeiron).


O mais incrível é que Assis foi membro notável durante anos da Natural Philosophy Alliance (NPA), uma instituição de dissidência em ciência. Isso mesmo! Dissidência não existe apenas em política, mas em ciência também. Naquela época constava no site oficial que a NPA era “devotada principalmente à ampla crítica, em seus mais fundamentais níveis, contra as doutrinas frequentemente irracionais e não-realistas da física moderna e da cosmologia, mantendo um espírito de mente aberta.” Ela também propunha a “substituição dessas doutrinas por ideias muito mais válidas desenvolvidas com completo respeito à evidência, à lógica e à objetividade.” 


Entre os membros da NPA há físicos e engenheiros, sendo que um dos ex-membros, Ronald Hatch, publicou um artigo em 1995 no qual afirma que o GPS fornece evidências contrárias às teorias de relatividade de Einstein. Duas curiosidades: (i) Hatch é especialista em GPS e (ii) ele publicou esse bizarro artigo na revista dissidente e não indexada Galilean Electrodynamics


Para aqueles que não conhecem física, vale observar que o próprio nome desse periódico é, por si só, uma afronta violenta ao bom senso. Isso porque a eletrodinâmica, como usualmente se entende, é incompatível com a visão galileana de física. As leis da eletrodinâmica clássica não são invariantes sob transformações de Galileu, usualmente empregadas em mecânica newtoniana. E as leis da física, relativamente a algum grupo de transformações de coordenadas, precisam ser invariantes do ponto de vista de diferentes observadores; caso contrário, não seriam leis. Por isso foram concebidas, há mais de um século, as transformações de Lorentz, que mais tarde foram empregadas por Einstein para compatibilizar eletrodinâmica de Maxwell com mecânica, criando-se assim a teoria da relatividade restrita. Ou seja, enquanto pessoas como Einstein procuraram por uma visão mais unificadora para a física, alguns grupos de pessoas tentam simplesmente provocar demais profissionais com periódicos de títulos meramente cômicos, como o Galilean Electrodynamics. Tanto é assim que os membros da NPA chegam a se referir ao conhecimento físico vigente como uma doutrina.


No entanto, a postura de Assis é evidentemente doutrinária. Ele afirma em seu livro sobre mecânica relacional que a teoria da relatividade geral de Einstein não é compatível com o princípio de Mach. Em seguida, mostra como sua mecânica relacional demonstra o princípio de Mach na forma de teorema, indicando uma vitória de suas ideias. No entanto, aquilo que Assis entende por princípio de Mach é apenas uma das diversas visões existentes na literatura sobre o tema. 


Ernst Mach foi um dos críticos mais contundentes da mecânica newtoniana. E uma das críticas que ele promovia se referia a fenômenos de inércia. Na opinião de Mach o fenômeno de inércia dos corpos com massa não estava fundamentado de maneira inequívoca na teoria de Newton para os fenômenos mecânicos. No entanto, Mach jamais escreveu explicitamente qualquer princípio físico de inércia que pudesse ser chamado de princípio de Mach, como hoje se insinua na literatura. Este nome se refere a toda uma classe de interpretações das ambíguas ideias de Mach sobre inércia. E Assis adota apenas uma das visões, ignorando as demais. Uma postura como essa é certamente doutrinária, praticamente isenta de crítica.


É surpreendente também saber que este mesmo livro de Assis sobre sua mecânica relacional foi publicado pelo Centro de Lógica e Epistemologia (CLE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a principal referência institucional em lógica e filosofia da ciência do Brasil. Isso novamente ilustra o quão distantes estão os filósofos da ciência em relação à ciência, principalmente aqui no Brasil. 


Mas meu objetivo principal não é simplesmente promover críticas à mecânica relacional ou à NPA, os quais estão sendo citados aqui apenas para firmar um ponto que julgo importante: “Como julgar se uma proposta intelectual está correta?”


O leitor poderia questionar o seguinte: “Tudo bem, Assis, Hatch e outros são meros dissidentes que são contrários às teorias físicas atuais simplesmente porque não as entendem; mas o autor desta postagem que agora leio também está nadando contra a corrente, a partir do momento em que usualmente se coloca contra a maioria dos autores e docentes de ensino médio, bem como uma boa parte de profissionais do ensino superior do Brasil. Não será Sant’Anna tão mal informado quanto os dissidentes da NPA?”


Minha resposta é uma só: “O leitor que decida isso!” 


É claro que só escrevo sobre aquilo que acredito. Se escrevo e publico é porque creio profundamente em tais ideias. Mas ciência e educação com responsabilidade se fazem com trocas de ideias. Ciência e educação são eventos sociais. Tolo é aquele que acha que tenho a pretensão de ditar o que é certo ou errado. Até porque minhas opiniões podem mudar e constantemente mudam, ao contrário do que vejo nos membros da NPA. Meu único propósito desde o início tem sido o de jogar sementes. Se tais sementes germinarem, ótimo. É sinal de que não errei tanto assim.


É claro que a mecânica relacional tem sido estabelecida por Assis e seguidores de maneira quase religiosa ou partidária. Mesmo assim, a experiência tem mostrado que ideias justificadas que funcionam bem são mais fortes do que a oposição de pessoas irracionais. Um exemplo interessante é o da teoria de conjuntos de Georg Cantor. Cantor enfrentou forte resistência durante quase toda a carreira, mas suas ideias apresentavam resultados tão convincentes que os matemáticos não tiveram escolha: passaram a estudar teoria de conjuntos, como disciplina legítima, e aplicá-la em inúmeros ramos da matemática. 


Eu mesmo me dispus a estudar mecânica relacional e até publiquei artigo nos Estados Unidos sobre o tema. Ou seja, não fechei os olhos para algo que apenas cheirava mal. Estudei, conheci, analisei, desenvolvi. Em parceria com um ex-aluno, provei, usando método axiomático, que certas ideias defendidas por Assis a respeito de inércia estavam erradas. Qualquer julgamento sobre qualquer atividade intelectual demanda exatamente o mesmo empenho. Isso porque os conteúdos abordados nesta postagem estão extraordinariamente distantes de se esgotarem. 


Ou seja, para o leitor que deseja genuinamente saber a diferença entre um trabalho intelectual sério e um pseudo-intelectual, só existe uma solução: escolha um tema de interesse e verdadeiramente se aprofunde nele. Não confie nas minhas palavras e nem nas palavras de pessoa alguma. Confie no seu discernimento e submeta suas ideias a críticas realizadas por pares profissionais. Ciência é uma batalha.