O texto abaixo é de autoria de Rolando Almeida, licenciado em filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e especialista em ensino de filosofia. Atualmente leciona na Escola Secundária Jaime Moniz, em Funchal (Ilha da Madeira), Portugal. Além disso, o Professor Rolando Almeida ministra cursos especiais para alunos selecionados como problemáticos, é revisor de material didático, produz material para um grupo editorial português e publica regularmente artigos de opinião em diferentes mídias.
Aqui o autor expõe de forma crítica uma visão histórica e social para compreender a atual situação da educação portuguesa. Leitura absolutamente obrigatória para quaisquer interessados em educação, incluindo brasileiros. Afinal, as semelhanças entre os graves e crônicos problemas educacionais desses dois países (Brasil e Portugal) não são mera coincidência.
Aproveito a oportunidade para avisar que durante esta semana anunciarei os leitores contemplados com livros que estou distribuindo gratuitamente. Além disso, novas postagens estão a caminho. Teremos (i) continuação da lista de referências bibliográficas em matemática, física e filosofia da ciência, (ii) depoimento pessoal de um importante pesquisador brasileiro que decidiu seguir sua carreira nos Estados Unidos, (iii) texto sobre a Comissão de Ética da Universidade Federal do Paraná, (iv) entrevista com o diretor de cinema José Padilha, sobre seu novo filme RoboCop (a ser publicada em 2014), entre outras.
Desejo a todos uma leitura crítica.
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Que ensino se ensina em Portugal?
Rolando Almeida
1) Porque se trata de um blogue com preocupações de divulgação do saber, da ciência e, principalmente, da matemática
2) Porque quem quer que se interesse por 1) remete a sua análise, quase inevitavelmente, para o estado do ensino, já que é o principal canal institucional de divulgação do saber e da ciência em geral, bem como das artes.
Como penso que é sempre bom manter feedback do trabalho que produzimos publicamente, apressei-me a enviar um mail ao autor deste blogue. Dessa troca inicial surgiu o desafio para que eu partilhasse algum conteúdo do que se passa no ensino secundário (médio no Brasil) português em geral e na filosofia em particular, já que é a minha área de interesse e profissional no ensino público português.
Se por um lado agradeço o convite que me foi endereçado para escrever algumas notas sobre o estado da educação ao nível do secundário em Portugal, por outro, o momento é algo perturbador e inquietante já que actualmente Portugal atravessa uma das mais graves crises económicas da sua história recente e tal contexto tem afectado todos os sectores da sociedade, incluindo o da educação e da condição profissional dos professores, bem como do contexto social e familiar dos alunos. Acresce ainda que dissertar sobre temas educativos exige não só concentração como uma forte humildade, pois estamos em terreno onde há poucas certezas e muitas dúvidas. O que aqui escrevo destina-se mais aos leitores brasileiros para que os mesmos entendam pelo menos em linhas gerais algumas das orientações educativas portuguesas. Quero ressalvar no entanto que qualquer ideia minha ou apreciação crítica estará, naturalmente, à disposição para o contraditório. Aceitei ainda o desafio pois entendo que muitos dos problemas abordados neste blogue são, em linhas gerais, semelhantes aos problemas que observo no sistema de ensino português.
Em termos históricos o período a que me reporto nesta minha primeira análise é o que se segue à ditadura, precisamente aquele que vem logo após o 25 de Abril de 1974, data em que por golpe militar se chega à democracia em Portugal, após várias e longas décadas de ditadura.
Faço o apontamento da queda da ditadura para que se entendam algumas linhas que aqui desenvolvo. A primeira delas e, na minha opinião, a mais relevante é a da democratização do ensino. Na ditadura Portugal era um país de analfabetos. Num país muito pequeno (1*), era quase imperceptível a pronúncia de um nortenho para um habitante do sul do país. Recordo quando era mais pequeno, ainda era mais ou menos habitual usar legendas (2*) quando aparecia algum popular das zonas rurais na TV, tal era a diferença da oralidade. Dois factores mudaram completamente esta realidade:
1) A escola
2) A televisão
Tanto o desenvolvimento dos meios de comunicação áudio visuais como o acesso à escola vieram a esbater muito estas fronteiras dentro de um país tão pequeno geograficamente. Mas há outros factores, entre os quais, a entrada de Portugal na Comunidade Europeia, a globalização, a abertura de fronteiras dentro da Europa e o dinheiro fácil que entretanto foi chegando a Portugal. Nas últimas gerações a Educação tornou-se, em Portugal uma forte arma de combate político. Era necessário apresentar resultados, comparar, analisar. E é um facto que Portugal fez um feito histórico digno de nota. O esforço foi incalculável. Construíram-se imensas escolas e pela primeira vez, na década de 80 do séc. xx, Portugal via filhos da classe economicamente mais desfavorecida a entrar nas universidades, a estudar. No final dos anos 80 e início dos 90, vivia-se em Portugal uma espécie de euforia por estudar nas universidades. Duas razões principais explicam esta procura das universidades:
1) Realização profissional com acesso a empregos melhor pagos.
2) Estatuto social que os cursos superiores em Portugal conferem.
Esta realidade, exposta em 1) e 2) actualmente em Portugal tem-se progressivamente esgotado o que tem conduzido a uma discussão com algumas renovações sobre o papel da escola pública na sociedade e para a vida das pessoas. As novas gerações já muito dificilmente olham para a escola com as razões indicadas em 1) e 2). Em resultado de uma maior abertura ao exterior, de muitos estudantes portugueses terem tido a possibilidade de experiências académicas noutros países mais evoluídos cultural e cientificamente, hoje, um jovem de 15 ou 16 anos jamais espera de um curso superior o estatuto e segurança profissional vitalícia que antes se esperava. Mas ainda há muitos focos de resistência, já que as gerações mais velhas têm visto ao longo dos anos o seu emprego assegurado, mesmo sem serem produtivos, principalmente ao nível universitário. E em Portugal, tal como no Brasil, é quase preciso esperar que os mais velhos morram para renovar a frota. Saliento uma vez mais que o momento que vivemos em Portugal pode ser uma oportunidade de pelo menos alguma mudança, já que devido à crise profunda que estamos a viver, muitos sectores tradicionalmente seguros e vitalícios (o caso dos professores do ensino secundário) estão a ser abalados. Os sectores mais estáveis são os mais expostos à corrupção política e nesse aspecto os professores do ensino secundário perderam muito poder de actuação, já que deixaram de constituir pesados grupos de interesse no país.
Indicava há pouco que a educação no período pós democracia passou a ser usada politicamente como uma das estratégias mais fortes para os partidos políticos fazerem política. A educação estava na ordem do dia, não só politicamente, mas socialmente muito por força dos media. Um Ex ministro português chegou a ter um slogan político que era “a educação é a minha paixão”. Para quem vive em Portugal ou – ao que sei – também no Brasil, sabe que quando algum sector produtivo da sociedade é totalmente entregue ao poder político, é sujeito a uma manipulação quase permanente. E tem sido mais ou menos isso que tem acontecido com o sector educativo português. Para apresentar resultados passamos a ter uma escola mais facilitista. Não podemos de uma assentada considerar que tal pressuposto é corrupção política. Até certo ponto o modelo adoptado - quase que ideologicamente adoptado – no sistema educativo português, baseado no romantismo educativo pode fazer sentido. O que acontece é que muitas vezes essas teorias românticas foram entendidas ideologicamente. E são estas ideias também aquelas que passaram a ser centrais na discussão muito activa sobre educação e sistema educativo em Portugal. A par com os problemas profissionais dos docentes (que falarei brevemente mais à frente) esta questão tem sido até bem recentemente o nervo central da discussão e o que levou a que tivéssemos uma quantidade impressionante de ministros da educação desde que há democracia em Portugal. Nenhum ministério teve tantas alterações de ministro, como o da educação. Ao longo destas gerações democráticas tem sido um vai e vem onde quase ninguém se entende de põe exame, tira exame, põe rigor, tira rigor, facilita mais, facilita menos… visto de fora parece que em Portugal ninguém se entende sobre educação e não conseguimos ter um projecto que tenha continuidade. Creio que qualquer bom advogado formado nas melhores universidades do mundo não se entenderia com a confusão, a selva imensa de leis que se produzem em Portugal para o sistema de ensino. E é curioso que ao longo da minha carreira profissional de quase duas décadas tenho conhecido professores do ensino secundário que são verdadeiros entendidos em legislação, mesmo que não sejam grandes entendidos na sua área de ensino. Mas este é provavelmente o dado mais evidente do nosso sistema de ensino: não há projecto. Há pessoas, normalmente políticos, que quando chegam ao poder impõem as suas ideias e visões pessoais do que pensam ser um sistema educativo.
Há ainda uma marca identificativa do sistema de ensino português. É que ele depende exclusivamente de um estado paternalista. Pura e simplesmente num país como Portugal não existe liberdade de ensino, pluralidade de formas de ensinar e de escolas. Mesmo o ensino privado está sujeito ao controlo do estado. Não existe qualquer liberdade de escolha. O estado decide programas, currículos, escolas tipo, etc.. e nenhum privado pode algum dia alimentar o sonho de criar uma escola com o currículo X ou Y e vender a sua escola, colocando-a à escolha dos consumidores. Aliás, esta visão nem sequer é muito bem vista em Portugal. Como é um país muito sujeito à corrupção, as pessoas no geral pensam que se o estado não controlar, será ainda pior e que a corrupção aumentará. E sem dúvida que num contexto mental como o português, isso aconteceria. Só que o contrário também aconteceria, isto é, certamente assistiríamos a um surgimento vibrante de escolas verdadeiramente criativas e estimulantes para as comunidades, pensadas de acordo com os interesses das pessoas e não do que o estado pensa que é melhor para todos. Não vou explorar muito este ponto aqui já que ele nem me parece sequer motivo de interesse em Portugal e é até socialmente uma ideia muito mal vista. Por cá atribui-se total responsabilidade em matéria educativa ao estado. Por essa razão também, num país relativamente pobre no contexto europeu, temos um sistema educativo excessivamente caro para os contribuintes. De notar que a opção pelo ensino privado reveste-se da oferta extra curricular, como aulas de apoio ou actividades extra, para além de uma selecção do ambiente social, isto é, os filhos dos pobres, dos ciganos e das comunidades menos favorecidas não vão para as escolas privadas, vão todos para as escolas públicas. Isto nota-se muito mais nos ambientes mais urbanos.
Problemas profissionais
Os problemas profissionais são relevantes pois têm ocupado grande parte da discussão em matéria educativa em Portugal. Após a revolução de Abril (*3), o país precisou de muitos professores. Ainda hoje há muitos desses professores no sistema. Muitos deles entraram para o sistema de ensino quase sem preparação universitária alguma e, para muitos deles, foram criados cursos apressadamente ao sábado de manhã para se integrarem na carreira. Muitos outros ficaram pelo caminho. Nessa altura houve um forte investimento na formação de professores e a carreira era muito bem vista. Tinha uma remuneração razoável (apesar de nada perfeita), com horários laborais apetecíveis. E estávamos na época em que quem não quisesse estudar ia para casa, portanto os problemas de indisciplina resolviam-se com a técnica pouco sofisticada, mas funcional, de chumbar. Curiosamente temos tido imensos críticos do chumbo em Portugal e em muitas escolas a ideia do chumbo é muito mal vista, pelas piores razões, pois acho que há boas razões para ver o chumbo como algo a não desejar no ensino.
Eu próprio pertenço a uma geração em que se formaram muitos professores em Portugal. Estávamos na Europa. O número de licenciados em Portugal era uma vergonha comparada com os nossos pares europeus. Tínhamos de formar pessoas. E fizemo-lo, mais uma vez, com um plano elaborado por políticos em cima do joelho. Chegou dinheiro a rodos da Europa ao país. Nessa altura era normal encontrar alguém sem grande formação, que trabalhava de pequenas tarefas agrícolas no quintal lá de casa e que passou a ser profissional de cursos. O que é um profissional de cursos? É alguém que recebe dinheiro para tirar cursos. Em Portugal pagou-se milhares de euros para as pessoas estudarem. E ainda se paga. Aliás, em Portugal paga-se mais a quem não quer estudar, para estudar, do que a quem quer estudar. Alguém que não queira estudar neste país fica 3 ou 4 vezes mais caro do que alguém responsável e que se aplique afincadamente nos estudos.
A minha geração meteu no sistema de ensino milhares de professores, novamente, sem qualquer plano futuro, sem alguma visão de sustentabilidade. E o mais paradoxal é que os bons resultados desse investimento, mesmo após 3 ou 4 décadas, ainda só timidamente aparecem. Os mais críticos alegam que se deu formação às pessoas sem qualquer exigência. Seja como for, de uma forma geral, em Portugal, hoje temos como nunca tivemos, uma imensa geração muitíssimo mais preparada cientificamente e socialmente. Mas o que temos também é outro tipo de exigências sociais e económicas que o peso excessivo do estado controlador e apetecível tende a estrangular. E a própria sociedade vive a ilusão que tem de ser o estado a assegurar toda a vida social e económica.
As coisas parecem lentamente mudar. Hoje em Portugal as novas gerações olham menos para o currículo e mais para as competências de cada um. Hoje começa a ser comum falar-se em analfabetos funcionais, pessoas que apesar de terem estudado muitos anos, são incapazes de pensar pela própria cabeça. Ou seja, há aqui uma mudança do que se passa a valorizar. Mas ao mesmo tempo vive-se intensamente a ilusão de que o estado e os políticos é que têm de decidir e resolver os problemas da vida de cada um. E sempre que as coisas estão nas mãos do poder político voltamos ao mesmo: projectos sem clareza nos objectivos, uma selva de leis, a confusão completa e uma ilusão de estabilidade que nos tempos presentes anda muitíssimo ameaçada. É o caso dos anos mais recentes da tão falada avaliação dos professores. O poder político espalha a notícia que avaliando os professores o sistema de ensino irá melhorar. O problema é que o poder político não quer melhorar o sistema de ensino. Apenas não pode é gastar tanto dinheiro nos salários dos professores e inventou uma forma de o fazer, não se auto penalizando na opinião pública. A ideia de que os professores têm de ser avaliados colou bastante bem na opinião pública, ao ponto dos próprios professores e seus sindicatos representantes aceitarem pacificamente a ideia (como se não houvesse pontos críticos na ideia em si). Mas nos últimos anos caíram ministros precisamente pela forma proposta para avaliar professores. Neste momento os professores do ensino público português têm uma avaliação burocrática que em nada tem que ver com a melhoria do ensino, mas que visivelmente os prejudica muito em termos de carreira profissional. Neste momento teme-se até que a avaliação conjugada com outros factores atire centenas senão milhares de professores para o desemprego.
Numa reflexão pessoal final, pode-se pensar que em Portugal vive-se um momento de viragem e que as coisas estão a acontecer de um modo ou de outro. Mas se o leitor pensar deste modo e fizer uma revisão no meu longo texto, concluirá que em Portugal, neste momento, passa-se o que exactamente se tem sempre passado. O que o sistema educativo português precisa é de estabilidade durante alguns anos. E de maior liberdade de iniciativa individual ou de colectividades. Enquanto isso não acontecer andamos de reforma em reforma de acordo com as vontades das cores dos partidos eleitos pelo povo.
Notas:
(1*) - À volta de 10 milhões de habitantes, metade dos habitantes actuais de uma cidade como S. Paulo, só para ter uma ideia de dimensão.
(2*) - Ao contrário do que é hábito no Brasil, em Portugal usamos muito a legendagem e não a dobragem de filmes ou documentários
(*3) - Assim é conhecido em Portugal o golpe militar contra a ditadura em 1974.
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Rolando Almeida é professor de filosofia no ensino público português e autor do blog:
http://filosofiaes.blogspot.pt/
Conta em breve voltar ao ensino com os seguintes temas:
1. O ensino da filosofia em Portugal
2. A formação científica dos professores