quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
Sorteio de Livro!
Finalmente recebi! Chegaram dez exemplares do livro Newton da Costa, da série Encontros (Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2011).
A organização é minha e a excelente apresentação é do cineasta José Padilha. A série Encontros publica entrevistas concedidas a jornais, revistas, televisão e rádio de nomes importantes da cultura de nosso país. Os lançamentos anteriores incluem pessoas como Milton Santos, Darcy Ribeiro, Fernando Gabeira, Gilberto Freyre, Gilberto Gil, Jorge Luis Borges, Lucio Costa, Sérgio Buarque de Holanda e Vinicius de Moraes. Os próximos volumes contarão com entrevistas de Mario Schoenberg, Chico Buarque, Tom Jobim e muitos outros.
A iniciativa da Azougue é evidentemente louvável, pois entrevistas concedidas à mídia ficam espalhadas em diferentes fontes frequentemente difíceis de serem encontradas.
Destes dez exemplares que recebi, decidi sortear cinco neste blog. O sorteio será feito de forma simples, mas deve ser seguido rigorosamente de acordo com as instruções que se seguem.
Um comentário deve ser publicado nesta postagem, manifestando interesse na obra em questão. Em seguida um e-mail deve ser enviado para adonaisantanna@gmail.com. No campo subject deve constar o nome adotado pelo autor do comentário, podendo ser anônimo. No corpo do e-mail basta colocar o endereço para correspondência, incluindo o nome verdadeiro do autor do pedido.
Assim que eu tiver a lista dos cinco primeiros interessados, envio gratuitamente os exemplares no prazo de uma semana. O endereço para correspondência pode ser brasileiro ou estrangeiro. O critério para definir os cinco primeiros interessados será a ordem cronológica dos comentários e não dos e-mails recebidos.
Está excluída desta promoção a assídua leitora Susan Blum, a qual é amiga pessoal e já conta com um exemplar extra reservado especialmente para ela.
Não divulgarei esta postagem no facebook, pois não estou interessado em oportunistas. Quero oferecer esta chance somente a leitores do blog, sejam membros ou não. É minha forma de agradecer pelo interesse nos textos aqui apresentados.
Aproveito para avisar que amanhã não estarei moderando os comentários. Mas na sexta-feira retornarei às minhas atividades.
Obrigado.
Aplicando Matemática em Metafísica
Existem muitas acepções para o termo "metafísica". Usaremos aquela devida ao físico, filósofo e historiador da ciência Pierre Duhem (1861-1916), que se refere ao estudo de matéria não viva. Ou seja, não estamos interessados aqui em conceitos como a alma humana (apesar deste ser um tema de pesquisa que também emprega a matemática).
Segundo Duhem, a física é o estudo dos fenômenos, cuja fonte é a matéria bruta, e das leis que os regem. Já a metafísica procura conhecer a natureza da matéria bruta, considerada como causa dos fenômenos e razão de ser das leis físicas. Neste sentido, teorias físicas podem ser diretamente testadas através de experimentos que envolvem processos de mensuração. Já teorias metafísicas contam apenas com evidências indiretas para sua verificação.
Provavelmente a mecânica quântica é a teoria física que mais rendeu interpretações metafísicas na literatura: a de de Broglie, a mecânica Bohmiana, a mecânica de Nelson, a interpretação dos múltiplos universos etc. Patrick Suppes, Acacio de Barros e eu também desenvolvemos uma interpretação para a física quântica, apesar de ser aplicável tanto em mecânica quântica quanto em eletrodinâmica quântica.
Usualmente a mecânica quântica, em sua formulação canônica, é matematicamente tratada a partir dos espaços de Hilbert, um tipo especial de espaço vetorial. Os vetores deste espaço correspondem a estados de sistemas físicos. E certos operadores, ditos Hermitianos, são associados aos observáveis (posição, momento linear, spin etc). Esses operadores Hermitianos se aplicam sobre o espaço de Hilbert e admitem auto-valores que usualmente são interpretados como aquilo que o físico efetivamente mede em laboratório. No entanto, a matemática dos espaços de Hilbert (conhecida como análise funcional) não consegue responder a certas questões naturais e fundamentais sobre o que efetivamente ocorre em escalas atômicas. E como existem muitos fenômenos quânticos que desafiam a intuição (se compararmos com nossa visão clássica de mundo), a partir disso surgiu uma miríade de interpretações para tais fenômenos, as quais são essencialmente teorias metafísicas.
Cito aqui um exemplo de matemática aplicada à metafísica do mundo quântico que procurei adaptar para o ensino médio, principalmente entre alunos de clubes de ciência ou de matemática que estão em busca de motivações para seus estudos.
Em mecânica quântica existe o conceito de spin. Toda partícula elementar (aquelas que constituem matéria e campos) é associada a um valor de spin, mesmo que seja nulo. O spin tem a mesma unidade de medida do momento magnético em física clássica. Mas não é momento magnético, pelo menos no sentido clássico da expressão. O momento magnético de uma carga elétrica rotacionando em torno de um eixo imaginário é como um vetor no espaço tridimensional. E, no caso de partículas descritas pela física clássica, o momento magnético pode assumir qualquer valor projetado em uma dada direção do espaço. Já o spin admite uma distribuição discreta de possíveis valores. Se medirmos, por exemplo, o spin de um elétron em uma dada direção u do espaço, ele só pode assumir dois valores, os quais chamamos aqui de "para cima" e "para baixo". Além disso, se o vetor de momento magnético for rotacionado 360 graus, ele retorna ao mesmo ponto de partida. Já o spin é um vetor que precisa de uma rotação de 720 graus para voltar ao ponto inicial. É bizarro, mas é como as coisas funcionam em mecânica quântica.
Além disso, a física clássica é realista. Ou seja, considera-se que o estado de um sistema físico independe do ato da observação. Se observamos que um dado objeto físico está parado em uma determinada posição do espaço (relativamente a um referencial inercial), usualmente assumimos que ele continuaria naquela mesma posição se não o tivéssemos observado. Já em mecânica quântica assume-se teoricamente que o estado de um sistema físico depende do ato da observação. Isso porque existem os chamados estados puros, que são matematicamente descritos como combinações lineares dos possíveis valores que uma medição pode detectar. Intuitivamente falando, um elétron pode estar em vários pontos do espaço simultaneamente, antes do ato da observação. Mas, quando o observamos, ele colapsa para apenas uma dessas possíveis posições. E tudo o que podemos fazer é estimar a probabilidade de que colapse para um ponto específico do espaço. Esse tipo de experimento não permite fazer previsões sem significativas margens para dúvida.
Finalmente, outra diferença fundamental entre mecânica clássica e mecânica quântica é que a última é uma teoria não-local. Enquanto um sistema de partículas descrito pela física clássica invariavelmente pode ser dividido em vários subsistemas, no mundo quântico isso nem sempre é possível. Existem certos sistemas quânticos, de duas ou mais partículas, que se encontram em um estado chamado de emaranhamento. Nem do ponto de vista matemático e nem do ponto de vista físico podemos dividir estes sistemas em subsistemas.
Consideramos a seguir um sistema de dois elétrons que se encontra neste estado de emaranhamento, onde contemplamos também o teste do fenômeno de não-localidade e da hipótese de não-realismo.
Romeu e Julieta repartiram dois elétrons entre si. O problema é que os dois elétrons se encontram em um estado de emaranhamento quântico.
Romeu não sabe se seu elétron tem spin para cima ou para baixo, em alguma direção que ele possa escolher para medir. E Julieta é igualmente ignorante sobre o estado de spin de seu elétron.
Um dia o casal se afasta. Ele vai para a Macedônia e ela viaja para Curitiba, Paraná, Brasil.
O fato do sistema dos dois elétrons estar em estado de emaranhamento significa o seguinte: se Romeu medir o spin de seu elétron em estado puro na direção u do espaço, essa mensuração pode resultar em spin para cima ou para baixo (com a mesma probabilidade de 50% para cada possível evento); mas isso necessariamente implicaria que o elétron de Julieta ficaria com seu spin na mesma direção u com valor para baixo ou para cima, respectivamente e independentemente dela medir ou não o spin na direção u. Ou seja, se Romeu medir o spin de seu elétron na direção u e resultar em spin para cima, automaticamente o elétron de Julieta ficará com spin para baixo na mesma direção u, ainda que ela não faça mensuração alguma nesta direção. Se ela o fizer, apenas confirmará com certeza o valor antecipado por Romeu. Isso porque o emaranhamento é como um caso de amor. Não é possível dividir o sistema de dois elétrons em dois subsistemas distintos. O sistema de dois elétrons se comporta como algo indivisível, como um todo, independente da distância entre Romeu e Julieta. Afinal, o mundo quântico é não-local. Ele parece desdenhar distâncias no espaço. E, assim, o par de elétrons opera como um totem do amor do casal.
Romeu aprendeu com Julieta que, antes de observar seu elétron, o spin na direção u é uma combinação linear de "para cima" com "para baixo". É como se estivesse nos dois estados ao mesmo tempo. Mas quando o observa, este estado puro colapsa para apenas um dos dois possíveis resultados de medição. A probabilidade de colapsar para cima é de 50%, e a probabilidade de colapsar para baixo é de 50%. Ou seja, o spin não está pré-determinado. O comportamento dele é imprevisível diante do processo de medição.
E mais bacana ainda é saber que a medição do spin na direção u não garante a antecipação sobre o resultado de outra medição, se o spin for medido, em seguida, em uma direção v diferente de u. Na verdade, de acordo com a mecânica quântica, se o spin na direção u for medido e resultar para cima, a probabilidade de obter spin para cima na direção v é o quadrado do seno da metade do ângulo entre u e v.
Mas, dada a distância entre os dois, Romeu se sente inseguro e questiona o amor de Julieta: "De duas, uma. Pode ser que tudo o que eu fizer com meu elétron se reflita instantaneamente no elétron de minha amada Julieta, ultrapassando as barreiras do espaço clássico, mesmo diante da imprevisibilidade do resultado de uma medição. Mas pode ser também que Julieta tenha me enganado. Ela pode ter preparado os dois elétrons para estarem sempre com os spins trocados em qualquer direção, dando a ilusão de que aquilo que faço com meu elétron se reflete no elétron dela. É como a história do cara que sempre vestia uma meia azul e outra rosa. Se, erguendo a calça, ele mostrava que a meia azul estava no pé direito, automaticamente qualquer um saberia que a meia rosa estava no pé esquerdo. E nem por isso é sensato considerar que, antes de erguer a calça, cada pé tinha uma meia cuja cor era rosa e azul ao mesmo tempo. Como saber se nossos elétrons estão realmente em um estado puro de spin para cima e para baixo ao mesmo tempo, antes de fazer qualquer medição? Se for assim, não há conexão alguma entre nossos elétrons. A não-localidade não passa de um truque matemático. Logo, é possível tratar do mundo quântico de forma realista e local. Consequentemente ela não me ama."
E Romeu testa sua visão realista e local de mundo, assumindo que os spins já estão pré-determinados, para estarem sempre com seus valores trocados em qualquer direção. Ou seja, ele questiona se o spin está realmente em dois estados simultâneos. Afinal, se a observação do spin altera o estado (de puro para um único valor mensurável bem definido), como saber se o tal do estado puro existe? Esta é a grande questão metafísica que Romeu tenta responder. Ele quer saber como se comporta aquele sistema quântico sem observá-lo.
Romeu não consegue pensar em termos de todas as direções possíveis de medição de spin, pois são infinitas. Então escolhe três direções quaisquer: u, v e w. Existem oito possibilidades de valores de spin nestas três direções, conforme a tabela abaixo:
O sinal + significa spin para cima, e o sinal negativo denota spin para baixo. Uma vez que Romeu está desconfiando de Julieta, ele não sabe como a amada teria distribuído os spins nas direções u, v e w. Então Romeu atribui probabilidades para encontrar todos os valores possíveis.
Por exemplo, a probabilidade de Romeu medir spin para cima em seu elétron nas direções u e v e para baixo na direção w (consequentemente Julieta teria seu elétron com spin para baixo nas direções u e v, e para cima na direção w) é P2.
O que Romeu certamente sabe é que a soma das probabilidades deve resultar 100%, ou seja,
P1+P2+P3+P4+P5+P6+P7+P8 = 1
Ele também sabe que cada probabilidade é maior ou igual a zero.
Pois bem. A probabilidade de que Romeu obtenha spin para cima na direção u e que Julieta obtenha spin para cima na direção v é dada por
P(u+,v+) = P3 + P5
Analogamente,
P(u+,w+) = P2 + P5 e P(w+,v+) = P3 + P7
Como as probabilidades jamais são negativas, Romeu conclui, a partir dessas três equações, que
P(u+,v+) é menor ou igual a P(u+,w+) + P(w+,v+),
pois P3 + P5 é menor ou igual a P2 + P5 + P3 + P7.
Esta é uma das famosas desigualdades de Bell.
No entanto, Romeu lembra que cada probabilidade acima é calculada usando a fórmula mencionada acima em termos do seno do ângulo entre as direções. Logo, ele percebe que se o ângulo entre u e v for reto e se w formar um ângulo de 45 graus com u e v, então a desigualdade de Bell é violada. Isso porque o quadrado do seno de 45 graus é maior do que o dobro do quadrado do seno de 22,5 graus.
Portanto, a ideia de Romeu de que os spins estavam pré-determinados é inconsistente com a mecânica quântica. Ou seja, não podemos interpretar a mecânica quântica de forma a considerar que os spins estão pré-determinados. Isso é ponto a favor da ideia do estado puro (a tal da "simultaneidade" de valores distintos).
Romeu ainda insiste na dúvida: "E se a mecânica quântica foi matematicamente construída justamente para evitar a descrença na existência dos estados puros?"
É aí que entra a experimentação. Em experimentos reais de laboratório, nem todas as partículas são detectadas. E as limitações tecnológicas para lidar com pares de elétrons são imensas. Existe alguma evidência experimental que suporte a conclusão de que não posso assumir localidade e realismo no mundo dos elétrons?
Como dissemos acima, a desigualdade que mostramos entre probabilidades é apenas uma das desigualdades de Bell. Optamos por ela por ser a mais acessível aos iniciantes. No entanto, há as desigualdades aplicáveis a experimentos óticos, envolvendo polarização da luz. Nestes experimentos, o fato de que nem todas as partículas emitidas são detectadas não cria problema algum. E, neste contexto, a experiência confirma perfeitamente bem a violação das desigualdades de Bell.
Portanto, temos evidências indiretas, mas muito convincentes, de que o mundo quântico é de fato não-local e que devemos abrir mão do realismo.
Consequentemente, Julieta ama Romeu. Fim da demonstração.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
Memórias
Recentemente mais um ex-aluno meu concluiu o doutoramento. Parte de sua celebração foi divulgada no facebook. Lembrando da grande figura humana desse aluno e de sua capacidade e intensa dedicação, fui remetido ao passado. Isso porque os melhores pupilos que tive são de vários anos atrás.
O período mais feliz de minha vida acadêmica ocorreu entre janeiro de 1991 e maio de 1994. Foi nesta época que realizei o doutorado em filosofia na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação de Newton Carneiro Affonso da Costa e co-orientação de Francisco Antonio Accioly Doria. O grupo que se aglutinava ao redor do Professor Newton era absolutamente notável: Analice Gebauer Volkov, Francisco Doria, Décio Krause, Roque da Costa Caiero, Edelcio Gonçalves de Souza, Mara Gomes Barreto, José Augusto Baeta Segundo, Otávio Augusto Santos Bueno, Marcelo Tsuji, Osvaldo Pessoa Jr., Jean-Yves Béziau, Nelson Papavero, Christian Houzel, David Miller, Antonio Mariano Nogueira Coelho, Jair Minoro Abe e muitos outros de diversos cantos do Brasil e do mundo e de variadas áreas do saber, como filosofia, matemática, física, economia, engenharias e biologia.
Diferente do que vejo em outras universidades, principalmente brasileiras, todos tinham curiosidade em saber o que os demais estavam fazendo em termos de pesquisa. Eu mesmo, por exemplo, paguei passagem aérea Rio - São Paulo - Rio, para o Professor Doria, para que ele pudesse me colocar em contato com teoria-K e as teorias de gauge. Mas não fui o único beneficiado, pois diversos outros membros do grupo aproveitaram para discutir com ele sobre inúmeras questões científicas.
A sala 2007, ocupada pelo Professor Newton no prédio da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH), era pequena. Contava com uma escrivaninha, um quadro negro, estantes de livros e duas ou três cadeiras para visitantes.
Nas manhãs em que havia atividades do grupo (aulas ou seminários) uns poucos ocupavam a sala - se chegassem mais cedo ou se precisassem resolver problemas mais urgentes - e a maioria ficava do lado de fora, conversando e aguardando o início de um novo dia.
Entusiasmado, o Professor Newton sempre trazia novidades do mundo acadêmico: livros ou artigos que acabara de publicar, conquistas de discípulos seus ou avanços recentes e relevantes em lógica ou fundamentos da ciência.
As aulas e palestras ministradas pelo Professor Newton, fossem na FFLCH ou no Instituto de Estudos Avançados (IEA - USP), eram estradas (pavimentadas ou de terra batida, tortuosas ou retilíneas, sinalizadas ou abandonadas pelos outros) que conduziam a ideias, metas e inspirações para pesquisas. Os seminários apresentados por discípulos tinham que ser rigorosamente qualificados, sob pena do extraordinário senso crítico do Mestre. As conversas na lanchonete do Prédio da História eram extremamente provocadoras. O Professor Newton adorava provocar discípulos e pesquisadores brasileiros ou estrangeiros, para que eles saíssem da letargia que normalmente coloca indivíduos do mundo acadêmico na posição de julgarem a si mesmos como conhecedores de suas áreas de interesse.
A primeira coisa que se aprendia naquele grupo era nossa própria ingenuidade científica e filosófica. Lembro que, caminhando com o Professor José Baeta em direção à biblioteca de física da USP, ele me disse: "O que mais me fascina no grupo do Professor Newton é que ninguém ali é arrogante." Respondi: "Se o Professor Newton não é arrogante, quem tem coragem de ser?"
A segunda coisa que se aprendia era como efetivamente trabalhar com seriedade e como reconhecer um trabalho sério. O impacto daquele grupo era tão grande sobre cada um de seus participantes que me obrigo a citar um exemplo realmente significativo: mesmo quatro anos após a prematura e violenta morte de Analice Volkov, ela ainda estava publicando em veículo especializado de circulação internacional.
O Professor Edelcio de Souza parecia o Radar, do filme M.A.S.H., de Robert Altman. Ele sempre organizava a logística das atividades do grupo e invariavelmente sabia o que era necessário para a realização de tais atividades, antes mesmo que o Professor Newton se manifestasse.
Às quatro horas da tarde o Mestre se retirava. Tinha que descansar. No final do dia alguns dos discípulos se reuniam em uma lanchonete para trocas de ideias e simples bate-papos.
Jamais encontrei algo remotamente parecido com aquele grupo, nem no Brasil e nem no exterior. Havia no ar algo de família. Mas não era uma família comum. Era uma família que criticava duramente ideias, sem desmerecer pessoas. Era uma família que buscava criar e desenvolver ideias em favor da paixão por ciência. Era uma família unida não por sangue, mas por sonhos e realizações intelectuais.
Certo dia apareceu no grupo um rapaz, nascido nos Estados Unidos. Ninguém sabia de onde veio aquele sujeito que não falava português. Ninguém sabia o que ele de fato queria ou sequer sua formação. Mas o Professor Newton fez questão de acolhê-lo, pedindo para que eu apresentasse meu seminário semanal sobre teoria-K topológica em inglês. O tal do rapaz não fez pergunta alguma durante a discussão, a qual contava com a presença de várias pessoas, incluindo um professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP. E logo depois ele sumiu. Era um fugitivo procurado pela Interpol.
No dia anterior à minha defesa de tese, cheguei a São Paulo, na companhia de um velho amigo do tempo de ensino médio, Fabio Filipini. No elevador do hotel ouvi a notícia da morte cerebral de Ayrton Senna, através do rádio portátil do ascensorista. Aquela brutal novidade foi recebida por mim de forma absolutamente superficial. Preocupado, o funcionário do hotel nos perguntou se havia chance do grande e carismático piloto de Fórmula 1 se recuperar. Respondi que normalmente as pessoas precisam do cérebro para viver. Eu estava muito tenso, enquanto o resto do país se encontrava de luto. Mas minha tensão foi injustificada. A defesa foi tranquila. Fui aprovado com louvor e distinção.
Em seguida, como era hábito, fomos todos almoçar no velho Prédio da História. Foi quando Francisco Doria me perguntou de forma simpática mas incisiva: "E então? Quer ir pra Stanford?" Naturalmente eu disse que sim.
Um ano depois eu estava trabalhando com Patrick Suppes (a convite do próprio), em uma universidade que mantém ao ar livre e sem policiamento a segunda maior coleção privada de esculturas de Auguste Rodin do mundo, incluindo O Pensador. Stanford é um lugar belíssimo e responsável por alguns dos mais importantes avanços científicos da história. Mas não encontrei naquele lugar tamanha harmonia intelectual como testemunhei na USP, graças ao Professor Newton. Havia seminários frequentes em Ventura Hall, o prédio onde ficava minha sala em Stanford. Mas o tom do ambiente era definitivamente outro.
Em 2006 participei da banca de doutorado, na USP, de Antonio Mariano Nogueira Coelho, atualmente professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Estavam também na banca Newton da Costa (orientador), José Baeta Segundo, Roque da Costa Caiero e Edelcio Gonçalves de Souza. O tema da tese era indistinguibilidade: uma abordagem por meio de estruturas (assunto com o qual trabalhei em parceria com Krause e Volkov). Durante a arguição da banca, Roque Caiero disse algo que me marcou muito. Não consigo recordar as palavras exatas. Mas a mensagem era a seguinte: "Esta defesa é o fim de uma era." Houve silêncio no local.
De fato, Antonio Coelho foi o último daquele grupo a se titular. Aquela defesa foi o fim de uma era, pelo menos para mim e tantos outros. Se não fiz algo mais relevante durante minha carreira acadêmica, foi por responsabilidade inteiramente minha. Pois a sorte de encontrar as pessoas certas no momento certo eu tive.
Hoje o Professor Newton trabalha na UFSC. Só espero que as pessoas de lá saibam aproveitar esta oportunidade única, pois o entusiasmo e a vitalidade dele são invariantes.
Jabberwocky e o Vestibular
Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898) foi lógico-matemático britânico e professor na Universidade Oxford. Adotou o pseudônimo Lewis Carroll e publicou em 1865 o célebre Alice´s Adventures in Wonderland (Alice no País das Maravilhas), um romance que faz notáveis estrepolias de caráter lógico. Em obra posterior, Through the Looking-Glass, Alice lê uma poesia que é explicada por Humpty Dumpty. Hoje esta poesia é conhecida como Jabberwocky e se encontra entre os quinhentos poemas mais citados em língua inglesa, segundo William Harmon, editor de conhecida coletânea da Universidade de Columbia, Nova York. Seguem as primeiras linhas de Jabberwocky:
"Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe;
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths out grabe.
"Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and the shun
The frumious Bandersnatch!"
Algo muito parecido com essa alucinada alegoria se pratica no Brasil. Estudantes lutam entre si por uma vaga na universidade, durante um feroz campeonato que dura dois ou três dias, sendo que muitos dos aprovados são indivíduos que não têm ideia se estão ingressando no curso certo: aquele que definirá seus futuros profissionais. Cada estudante perdido na universidade é um Dennis de Jabberwocky. No lugar de aproveitarmos a força e ambição dos que sonham por um futuro melhor, impomos um sistema cruelmente seletivo que foi ironizado há décadas por um grupo inglês especializado em comédias de cunho crítico social.
O que exatamente nosso sistema educacional nos ensina? A lição é muito simples: não importa se você foi um excelente aluno durante doze anos de ensinos fundamental e médio; não importa se você realizou atividades extra-curriculares, como participação de grêmios estudantis, estudos de música, xadrez ou ciências; não importa se você foi um grande corredor na maratona de doze anos de educação básica; se você não for um tremendo atleta dos cem metros rasos do vestibular, simplesmente não ingressa na universidade. E, para piorar a situação, ainda se pratica ostensivamente o concurso vestibular que privilegia memória sobre raciocínio.
O lamentável ENEM apenas reforça a lição de que os estudantes são jogados à lama da confusão, uma vez que já testemunhamos diversos casos de corrupção e fraude nesta ridícula prova de critérios obscuros, e até pessoas que conquistaram nota superior à mínima, mesmo deixando a prova completamente em branco.
Por que as conquistas e erros de toda a vida estudantil de nossos jovens são ignorados por completo pelas universidades? Por que nossa mentalidade tem que ser tão imediatista? É por isso que não existem associações de ex-alunos na maioria das instituições de ensino?
A iniciativa do Governo Federal de centralizar o vestibular através do ENEM é uma postura paternalista. É uma forma de dizer que nossas comunidades locais não têm condições de decidir sobre o que é melhor para elas. E isso é triste, simplesmente triste.
O rei do filme Jabberwocky era claramente um pateta, que prometeu à filha aposentos em uma torre que desabou perante os olhos de ambos, enquanto conversavam. E assim tem sido com nossos dirigentes, que nos prometem educação de qualidade em uma nação cujos professores desabam perante a própria incompetência.
O sistema de vestibular brasileiro é um processo que mais produz frustração do que vitória, pois a maioria dos candidadtos é reprovada. E a maioria dos reprovados considera que a culpa pelo fracasso é deles. Até quando vamos aceitar que a maioria de nossos filhos não têm direito ao ensino superior?
sábado, 25 de fevereiro de 2012
Formando Jovens Pesquisadores
Joaquim Gomes de Souza foi o primeiro matemático brasileiro a ter reconhecimento internacional, por conta de seu trabalho de pesquisa. Souzinha, como era conhecido por seus colegas, graduou-se e concluiu o doutorado em ciências matemáticas aos dezenove anos de idade, em 1847. Em 1855 apresentou um trabalho à Academia de Ciências de Paris e teve esta contribuição divulgada pelo físico inglês George Stokes, na Sociedade Real de Londres, no ano seguinte.
Para os padrões brasileiros da época este foi um feito incrível. Se fosse uma história de ficção, estaria evidentemente exagerada. Afinal, as teses de doutorado em matemática no Brasil do século 19 não passavam de meros textos expositivos sobre conteúdos que poderiam ser facilmente encontrados em livros disponíveis em nossas insípidas bibliotecas. Neste sentido, Souzinha talvez tenha sido o mais brilhante matemático que nosso país já produziu, levando em conta suas contribuições em contraste com as condições do ambiente da época.
Este feito só foi repetido mais de um século depois em nosso país. Carlos Matheus Silva Santos se sentia entediado na escola, pois não encontrava desafios. Na oitava série já estava pensando em abandonar os estudos, quando os pais tomaram uma atitude. Eles apresentaram o rapaz para Valdenberg Araújo da Silva, então chefe do Departamento de Matemática da Universidade Federal do Sergipe, que ficou pasmado com o talento matemático de Carlos Matheus. Aos quatorze anos o jovem prodígio se mudou para o Rio de Janeiro, onde começou a estudar no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), o mais importante centro de pesquisas e estudos em matemática do país. Aos dezenove anos concluiu o doutorado em matemática na mesma instituição. Ainda assim foi obrigado a realizar estudos posteriores de graduação em matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro, para ter seu diploma de doutor validado pelo MEC.
Ou seja, a visão de que não há talentos de destaque no Brasil é institucionalizada através das rígidas regras que consideram a educação como algo que deve ser galgado em degraus. Enquanto países como os Estados Unidos não só reconhecem seus jovens intelectualmente precoces como merecedores de apoio, mas também criam condições facilitadoras, o Brasil simplesmente fecha os olhos para seus próprios talentos. A máquina burocrática se impõe sobre o indivíduo, exatamente como aparece no filme Brazil (Brasil, o Filme), de Terry Gilliam. Nosso país vive a realidade da opressão de um Estado que ainda tem a cara-de-pau de se considerar democrático.
Em muitos casos, as contribuições científicas mais importantes da história foram feitas por jovens entre seus dezessete e vinte e poucos anos. Especialmente em matemática, a capacidade de processar muitas informações e resolver complexos problemas é algo que se mostra de forma muito mais evidente na juventude. Mas nosso rígido, burocrático e perverso sistema educacional e social impõe limites que fazem com que, na melhor das hipóteses, o indivíduo obtenha o doutorado quase na casa dos trinta anos de idade, o que representa evidente atraso ao próprio país. Segundo Reinaldo Guimarães e colaboradores, a maioria dos doutores até 2000 no Brasil obtiveram o título quando tinham idade entre 30 e 39 anos.
Logo depois Carlos Matheus fez pós-doutorado no College de France, sob supervisão de Jean-Christophe Yoccoz, um dos nomes mais importantes da matemática mundial e ganhador da Medalha Fields em 1994.
Apresento abaixo recomendações para mudar nossa dura realidade. No primeiro bloco são apresentadas sugestões institucionais. A seguir apresento recomendações dirigidas a jovens que pretendem ser pesquisadores no Brasil, levando em conta o que hoje vivemos.
Sugestões Institucionais
1) O Brasil precisa de mais programas escolares voltados a super-dotados, a exemplo do EPGY em Stanford, o qual conheci de perto. A ideia é muito simples. Estudantes cursam, por exemplo, disciplinas de graduação durante o ensino médio ou mesmo o ensino fundamental. Quando ingressarem em um curso superior, podem conquistar equivalência em disciplinas e, desse modo, concluir a graduação em tempo reduzido.
2) Precisamos de programas de honors em cursos de graduação e ensino médio e fundamental. Um estudante de graduação que se destaque em seu curso de forma excepcional, poderia receber um certificado de conclusão com honors. Seria uma espécie de carta de recomendação institucional e permanente, na qual a instituição exalta a inteligência, dedicação, criatividade ou demais características marcantes do estudante em questão. Isso seria um agente facilitador no processo de busca por estudos mais avançados ou mesmo empregos. Se o vestibular fosse abolido ou pelo menos modificado de forma a incluir entrevistas e avaliações de desempenho no passado, um programa de honors também poderia ter efeitos marcantes para o estudante de ensino médio que deseja ingressar em um curso superior. É claro que sempre existe a neurótica preocupação com a possibilidade de fraudes em programas como o que sugerimos, principalmente levando-se em conta o fato de que vivemos em um país no qual a impunidade a crimes é algo rotineiro e manobras ilícitas são comuns. No entanto, a prática pode ser muito diferente, mesmo que estejamos cercados por fraudadores. Fraudes não se propagam por muito tempo. Acabam sendo descobertas, pois se tornam facilmente inconsistentes com outros dados que cercam a vida do estudante fraudador. E instituições que estivessem com seus nomes associados a casos desse tipo perderiam rapidamente credibilidade diante de qualquer contexto social. Os programas de honors não são apenas benéficos para aqueles que recebem tal honraria, mas para as instituições que as emitem também. Jovens que carregam em seus CVs atestados de honors e que correspondem às melhores expectativas de seus empregadores, não deixam de fazer relevante propaganda das instituições escolares de origem. Não há a necessidade de ostensiva fiscalização governamental sobre qualidade de ensino. Instituições seriamente comprometidas com suas reputações são aquelas que têm mais chances de vencer perante a dura e competitiva realidade. Não defendo com isso a ausência do Governo Federal em decisões sobre questões educacionais. Mas certos procedimentos de fiscalização exercidos por órgãos governamentais são exagerados e mal colocados.
3) Precisamos instituir em todos os níveis escolares o reconhecimento do notório saber. Se uma pessoa demonstra conhecer conteúdos escolares dentro de parâmetros toleráveis, não há necessidade dela efetivamente realizar tais estudos, assistindo aulas em uma instituição de ensino reconhecida por governos. Temos que estimular nossos talentos!
Sugestões para Jovens
1) Em uma palestra, o grande físico brasileiro Mario Schoenberg disse que jovens interessados e talentosos devem ter acesso aos grandes centros de pesquisa a partir dos quinze anos. Ou seja, se você está preso a cansativas aulas de ensino básico (fundamental e médio), procure por motivações reais. Matricule-se em disciplinas de graduação (em universidades ou faculdades públicas) e consiga a aprovação. Não há necessidade de ser matriculado em uma universidade para fazer disciplinas isoladas em instituições federais de ensino superior. Quando você finalmente ingressar em qualquer universidade ou faculdade, pode entrar com pedido de equivalência de disciplinas. Mas tome cuidado, pois muitas vezes esses pedidos de equivalência são negados. Procure cursar disciplinas isoladas em instituições respeitadas nacionalmente. E esteja preparado para entrar com ações na Justiça, se necessário. A partir do momento em que existem casos de ações judiciais bem sucedidas de educação domiciliar, pedidos de equivalência se mostram como problemas menores.
2) Se você é aluno de graduação, procure por professores pesquisadores para realizar projetos de iniciação científica. Não importa se o projeto não é reconhecido formalmente pela instituição. O que interessa é que você faça um projeto que renda publicação, preferencialmente em veículo especializado de circulação internacional. Ou seja, você deve ser orientado por um pesquisador que tenha produção relevante e consistente ao longo dos anos. Evite professores que somente publicam em anais de congressos ou periódicos locais. Esse tipo de produção é absolutamente irrelevante ou, pior, espelha um covarde. O que interessa são os pesquisadores que publicam nos melhores periódicos de suas áreas. E não confie em fontes como a plataforma Lattes, para obter informações sobre a produção científica de supostos pesquisadores. Através de computadores cadastrados em universidades federais e estaduais, acesse o Web of Knowledge, disponível a partir de www.periodicos.capes.gov.br. Lá você descobre quem realmente tem produção científica relevante.
3) Use a internet para trocar ideias com os melhores pesquisadores de sua área de interesse. Ou seja, aprenda inglês. Em ciências exatas, por exemplo, português é língua morta.
Em suma, fique longe dos pseudo-intelectuais. Intelectual não é aquele que sabe repetir conteúdos de livros. Intelectual é aquele que produz conhecimento relevante. E a mais confiável forma para reconhecer produção intelectual é através de publicação nos melhores veículos especializados e citações feitas por pares.
Para finalizar, reproduzo abaixo a poesia Estupidez, de Lars Eriksen.
Pela sua natureza, a Humanidade
sempre teve expoentes de estupidez.
De vários tipos, por exemplo,
o que através do riso,
utilizado como sabre,
insiste em ser sarcástico.
(Atitude que implica em olhar sem
expressão,
em cara alvar.)
Qual Mefistófeles da burrice,
só caminhando de cócoras,
só cuspindo para cima.
Embora procure legislar para o mundo,
urina no próprio riso,
indivíduo horizontal,
porco mental,
vivendo ao rés do chão...
Animal que se afoga nas fezes que expele,
desejando defecar nos outros.
Projeto de homem,
repudiado no Inferno
para não o enlamear.
Lingüiça de trapo,
inteligência de comadre.
Homem-verme, de fato minhoca,
no qual não se diferencia
a parte de baixo da de cima.
Proto-homem, indigno
de descender do macaco.
Ave do lodo, de mau agouro.
Sombra da podridão,
o lugar onde se projeta
arruína, cria disputa, divide, imunda.
Imundice física, psíquica e moral
Monstro fétido, nauseabundo,
cujo fedor contamina
o mais puro ambiente.
Espírito deitado,
que não se apóia nos pés,
por não enxergar a linha vertical.
Idiota, de cara lavada,
que nunca aprendeu a ser sério.
Mente sem equilíbrio,
na qual o conhecimento não levou à
sabedoria,
mesmo à sabedoria rudimentar.
...
Eis o intelectual
convencido da própria superioridade,
o troglodita cuja caverna
é sua imensa boçalidade.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
Algumas Curiosidades Lógicas
Nesta postagem não há tema novo algum. Tudo aqui se refere a assuntos muito conhecidos na literatura especializada. No entanto, como vejo inúmeros discursos e textos de matemática no Brasil que fazem consideráveis confusões de caráter lógico, acho interessante prestar alguns esclarecimentos. Então vou responder algumas das questões da página Você sabia que....
1. Todo axioma de qualquer teoria formal axiomática é demonstrável. Para provar isso precisamos qualificar os termos empregados. Uma teoria formal axiomática consiste de dois ingredientes fundamentais: lógica e linguagem. A linguagem é caracterizada por um vocabulário e fórmulas. Vocabulário é um conjunto de símbolos. Fórmulas são sequências (finitas ou não) de elementos do vocabulário. Existem "regras gramaticais", conhecidas como procedimentos efetivos, para determinar quais sequências de elementos do vocabulário são fórmulas. A lógica se estabelece a partir de axiomas e regras de inferência. Axiomas são certas fórmulas, escolhidas pelo próprio matemático, conforme a teoria que pretende desenvolver. E as regras de inferência são relações entre fórmulas que permitem inferir (ou deduzir) uma única fórmula a partir de outras. Por exemplo, no cálculo proposicional clássico, é usual se considerar como regra de inferência uma relação ternária entre fórmulas conhecida como Modus Ponens. Nesta regra, a partir das fórmulas "A implica B" e "A" pode-se inferir "B". Dizemos que "B" é consequência direta das fórmulas "A" e "A implica B". Ou seja, se temos A e sabemos que A implica em B, então podemos deduzir B. Já uma demonstração em uma teoria formal axiomática é uma sequência finita de fórmulas tal que cada fórmula desta sequência é um axioma da teoria ou uma consequência direta de fórmulas anteriores via o emprego de uma regra de inferência. E teorema é a última fórmula de uma demonstração. Isso significa que a primeira fórmula de qualquer demonstração em uma teoria formal axiomática é necessariamente um axioma, pois não há fórmulas anteriores à primeira. Logo, se uma demonstração tem apenas uma fórmula, esta necessariamente é um axioma. Como nesta sequência de uma só fórmula a última é também a primeira, então o axioma ali presente é um teorema. Uma vez que uma fórmula T é demonstrável se, e somente se, existir demonstração tal que T é teorema, podemos concluir que todo axioma é demonstrável.
2. Todo teorema em uma teoria formal axiomática admite infinitas demonstrações. Usando as noções do parágrafo acima, considere que a sequência F1, F2, F3, ..., Fn é uma demonstração em uma teoria formal axiomática cujos axiomas são A1, A2, A3, .... Logo, F1 é um axioma e Fn é um teorema. Isso significa que podemos inserir um axioma na demonstração, entre duas fórmulas quaisquer ou como primeiro elemento, e continuaremos tendo uma demonstração do teorema Fn. Por exemplo, a sequência A1, A2, A1, A2, F1, F2, A3, F3, ..., Fn é também uma demonstração do teorema Fn.
3. Existem definições demonstráveis. Existem certos tipos de definições, em teorias formais axiomáticas, conhecidas como definições ampliativas. Elas simplesmente ampliam a linguagem da teoria, no sentido de incorporar novos elementos ao vocabulário. Acontece que toda definição em matemática deve ser não-criativa. Porém, a prática matemática exige que definições possam ser usadas no processo de demonstração de teoremas. Para que isso ocorra, levando em conta o conceito de demonstração do item 1, o status lógico que essas definições ampliativas assumem é o mesmo de axiomas, se elas forem escritas como fórmulas da teoria. Como provamos acima que todo axioma é demonstrável, logo essas definições ampliativas escritas como fórmulas são também demonstráveis. Afinal, tais definições não apenas incorporam novos elementos à linguagem, como também acrescentam novos axiomas. No entanto, vale reforçar que tais novos axiomas não permitem demonstrar teoremas que antes não poderiam ser demonstrados (que é a condição de não-criatividade).
4. É errado afirmar que o conjunto dos números naturais é subconjunto do conjunto dos números reais. E é igualmente errado afirmar que o conjunto dos números naturais não é subconjunto do conjunto dos números reais. Isso porque existem muitas definições para tais conjuntos na literatura. Alguns autores afirmam que o conjunto dos números naturais é um par ordenado (N,S), onde N é um conjunto não vazio e S é uma operação entre conjuntos, conhecida como sucessor, de modo a satisfazer os conhecidos axiomas de Peano. Os elementos de N são chamados de números naturais. Neste contexto, o sucessor, por exemplo, de 3 é 4 (S(3) = 4). Outros autores afirmam que o corpo dos números reais é uma tripla ordenada (R,+,*), onde R é um conjunto não vazio, + (adição) é uma operação binária entre elementos de R e * (multiplicação) é outra operação binária em R, satisfazendo a uma série de axiomas. Os elementos de R são chamados de números reais. Como o par ordenado (N,S) não é subconjunto da tripla ordenada (R,+,*), então, neste caso, o conjunto dos números naturais não é subconjunto do corpo dos números reais. No entanto, é possível exibir um modelo A para (N,S) e um modelo B para (R,+,*) de modo que A é subconjunto de B. Se chamarmos A de conjunto dos números naturais e B de conjunto dos números reais, então podemos afirmar que o conjunto dos números naturais é subconjunto do conjunto dos números reais. Porém vale lembrar que tanto (N,S) quanto (R,+,*) admitem modelos tais que um não é subconjunto do outro. Ou seja, antes de afirmarmos que o conjunto dos números naturais é (ou não) subconjunto do conjunto dos números reais, precisamos qualificar o quê se entende por números naturais e o quê se entende por números reais. Mesmo no ensino médio essa qualificação se mostra necessária. Com efeito, o número real 2 pode ser representado pela fração 10/5. No entanto, o número natural 2 não pode ser representado por 10/5, pois usualmente não se define razão entre números naturais.
5. Um par ordenado pode ser igual a uma tripla ordenada. Em teorias de conjuntos existem muitas definições para os conceitos de par ordenado e tripla ordenada. A definição de Kuratowski (aplicável a teorias intuitivas e formais usuais), por exemplo, estabelece que o par ordenado (A,B) é igual ao par não-ordenado {{A},{A,B}}. Vale lembrar que um par não-ordenado {A,B} é um conjunto cujos elementos são iguais a A ou B. Neste sentido, o conjunto {A,B} é igual ao conjunto {B,A}, pois a ordem em que os elementos são explicitados na notação extensional é irrelevante. O leitor não pode esquecer que um conjunto é definido única e exclusivamente pelos seus elementos, independentemente de quaisquer outras informações. Logo, todo par não-ordenado {A,B} tem um ou dois elementos. Tem dois elementos se A for diferente de B, e apenas um elemento se A for igual a B. No caso em que A é diferente de B, podemos concluir que, apesar de {A,B} = {B,A}, (A,B) é necessariamente diferente de (B,A). Com efeito, {{A}, {A,B}} é diferente de {{B},{A,B}}. Seguindo as mesmas ideias de Kuratowski, podemos definir a tripla ordenada (A,B,C) como o par ordenado ((A,B),C). Neste contexto, a tripla ordenada (A,B,C) é igual ao par ordenado (D,E) se, e somente se, D = (A,B) e E = C.
As demais questões serão respondidas em postagens futuras.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
Matemáticos no Cinema
Eric Temple Bell, em seu famoso livro Men of Mathematics, explora a vida e a obra de quarenta e um matemáticos, de Zenão a Cantor, ao longo de dois mil anos de história. Entre eles há os religiosos e os ateus, os místicos e os agnósticos, os politicamente conscientes e os alienados, celibatos, pervertidos e casados, doentes e saudáveis, felizes e miseráveis, sociáveis e isolados, ricos e pobres. Acrescento ainda que há também asiáticos e europeus, heterossexuais e homossexuais, conservadores e liberais, homens e mulheres, jovens e idosos.
Ou seja, não parece existir um perfil pessoal, racial, religioso, sexual, político, filosófico, social ou econômico que defina matemáticos. Matemáticos, por mais surpreendente que possa parecer para alguns, são seres humanos. E a diversidade humana é muito grande. O que define matemáticos é sua forma de pensar a matemática e/ou aplicações desta ciência formal. Eventualmente o pensar matemático pode se transportar para outras atividades do cotidiano que podem causar estranheza aos olhos de leigos. Mas isso não os torna aberrações da natureza. Assim como advogados têm uma maneira própria de ver o mundo, o mesmo ocorre com médicos, artistas e matemáticos, entre outras profissões.
No entanto, ainda persiste uma imagem caricata sobre matemáticos em certos segmentos sociais. Discuto brevemente aqui um desses segmentos: o cinema.
Não sou cinéfilo, mas sempre senti forte atração por cinema. Daí o tema desta postagem. Não sigo adiante qualquer critério específico para a escolha da ordem dos exemplos da sétima arte. Apenas discuto sobre alguns filmes que conheço.
Em Straw Dogs (Sob o Domínio do Medo), do sanguinário diretor Sam Peckinpah, Dustin Hoffman faz o papel principal, o de um matemático. Este profissional acadêmico é retratado como um indivíduo ingênuo, desprovido de empatia, alienado, indigno de respeito, egocêntrico, covarde, incapaz de lidar com situações do cotidiano e desatento o bastante com a esposa a ponto de criar condições para que ela seja humilhada e estuprada por dois homens que trabalhavam para ele. Mesmo quando o matemático resolve reagir diante das constantes pressões que sofre, nada faz além de besteiras. A cena de estupro é tão revoltante e agressiva que motivou a censura inglesa a proibir a exibição do filme naquele país.
Admiro muito a filmografia de Peckinpah e entendo que há plena liberdade para a definição de personagens em filmes. Também compreendo que Peckinpah, enquanto diretor, não tinha obrigação alguma de transformar seus filmes em documentários dramatizados com fins educacionais. No entanto, a imagem da personagem de Hoffman certamente contribui para uma visão caricata sobre matemáticos. Principalmente se levarmos em conta a forte influência dos filmes deste diretor ao longo de gerações.
Já no filme A Beautiful Mind (Mente Brilhante), do pouco inspirado ator e diretor Ron Howard, o talentoso ator Russell Crowe faz o papel do matemático John Forbes Nash, Jr., ganhador na vida real do Nobel em Economia. Aqui Nash é retratado como um gênio com dificuldades de entrosamento social e que sofre os horrores de uma grave e incurável doença mental conhecida como esquizofrenia paranóica. Ou seja, nesta película a visão estereotipada do matemático extrapola a de Peckinpah, atingindo um quadro claramente clínico.
Outro exemplo interessante é o filme 21 (Quebrando a Banca), de Robert Luketic, no qual o brilhante ator Kevin Spacey interpreta um matemático do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) (novamente um filme baseado em caso real) que usa a ciência tão bem dominada por ele com o propósito de ganhar dinheiro em jogos de azar na decadente cidade de Las Vegas. Do ponto de vista do tema desta postagem, o primeiro pecado do filme é o retrato de que matemáticos são criaturas habilidosas com números. Levando em conta que habilidades com números não qualificam pessoa alguma a se tornar um matemático, essa abordagem também contribui para uma visão distorcida sobre tais profissionais da ciência. Além disso, o filme de Luketic passa a mensagem de que gênios da matemática são cegamente confiantes em si e que formam uma espécie de clube exclusivo, do qual pessoas menos inteligentes não podem participar. Isso, em parte, justificaria algo como uma reação dos gênios contra uma sociedade que os percebe com estranheza e até desprezo.
No filme Cube (O Cubo), de Vincenzo Natali, a personagem da incompetente atriz Nicole de Boer, é uma estudante de matemática. Novamente se trata de alguém com suposta habilidade para lidar com números. A premissa da produção se sustenta em um pequeno grupo de pessoas que estão presas dentro de um cubo, o qual dá acesso a outros cubos, através de portas em suas faces. Do ponto de vista cinematográfico, o filme é uma fabulosa façanha que ganhou vários prêmios internacionais e duas continuações (infelizmente inferiores), pois consegue sustentar uma história de grande dramaticidade em um cenário minimalista a extremos, ficando atrás apenas do excelente Buried (Enterrado Vivo) de Rodrigo Cortés. No entanto, a tal estudante de matemática exibe claramente na atuação que sua habilidade com números é extremamente limitada. Entre as vítimas do aprisionamento injustificado da história, a personagem que demonstra excepcional habilidade com operações entre números é um rapaz com séria deficiência mental. Ou seja, doentes mentais podem ser melhores matemáticos do que os saudáveis.
Na lamentável obra The Happening (Fim dos Tempos) do decadente diretor indiano M. Night Shyamalan, o matemático (na verdade, um professor de matemática) da trama é surpreendentemente interpretado por John Leguizamo, ator conhecido no cinema por papéis cômicos. Para conferir seriedade à personagem ele usa óculos. E mais uma vez encontramos um profissional da matemática obcecado por números. Na opinião dele, estatísticas e percentuais têm o efeito de tranquilizar pessoas que se encontram diante de crises. Ou seja, mais um indivíduo socialmente alienado.
No filme Pi (Pi) do bizarro diretor Darren Aronofsky, a personagem principal é um matemático paranóico obcecado por números e suas relações com a cabala. Na abertura da produção o número pi (a razão entre o perímetro de uma circunferência e seu diâmetro) aparece com o valor errado em sua representação decimal. O que exatamente isso nos diz sobre o diretor?
A única exceção que conheço, em termos da regra de visões distorcidas de matemáticos no cinema, está no filme Jurassic Park (Parque dos Dinossauros), do excepcional diretor Steven Spielberg. Neste filme, o matemático, interpretado pelo excelente Jeff Goldblum, consegue descrever com precisão e de forma perfeitamente acessível para leigos, o conceito de sistemas dinâmicos (teoria do caos). Ou seja, não se fala em números. Além disso, ele tem mentalidade interdisciplinar e pragmática, pois aplica na prática a teoria ao mundo real (no caso, ecossistemas). Também é uma personagem que encontra as mesmas dificuldades de relacionamentos sociais de qualquer ser humano saudável. Por sorte, entre todos os filmes citados, este foi o que teve maior bilheteria e impacto. Mas ainda é uma gota no oceano da cultura popular. Afinal, em um hilário episódio da série de televisão de enorme sucesso The Simpsons (Os Simpsons), um apresentador de programa de TV anuncia a profissão de dois astronautas, dizendo que um deles é um matemático, enquanto o outro é outro tipo de matemático. É claro que isso é cômico e até hoje me delicio com esta cena. Mas convenhamos que os Simpsons são muito mais uma sátira à sociedade do que um retrato fiel dela.
Espero que o leitor entenda que não estou me manifestando contra a postura de diretores de cinema que gostam de retratar matemáticos como pessoas esquisitas. Diretores fazem caricaturas até mesmo com personagens que são também diretores, como nos brilhantes filmes S.O.B. (S.O.B), de Blake Edwards, e Hollywood Ending (Dirigindo no Escuro), de Woody Allen. Escrevo esta postagem apenas como uma informação que pode ser útil para compreender a mentalidade popular sobre pessoas que estudam matemática ou trabalham com ela. E a compreensão dessa mentalidade é instrumento fundamental para desfazer quaisquer incompreensões.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012
Matemáticos Cegos
Assim como há muitos talentos que deixam o Brasil, existem também aqueles que sequer têm a chance de serem reconhecidos. Há vários fatores de ordem social que justificam isso, que vão de questões raciais a sócio-econômicas e até preconceitos contra deficientes físicos. Ilustro aqui o último caso, baseado parcialmente no artigo "The world of blind mathematicians", publicado em Notices of the American Mathematical Society 49 10 1246 – 1251 (2002), por A. Jackson.
Há muitos matemáticos cegos no mundo. E diversos deles são geômetras, talvez até a maioria. Se a geometria, como erroneamente pensam muitos, exige contato com a noção de forma no mundo físico, como explicar então os magníficos trabalhos de pesquisa hoje realizados por matemáticos cegos?
Um dos mais prolíficos matemáticos da história foi o suíço Leonhard Euler, no século 18. Nos últimos dezessete anos de sua vida, Euler ficou completamente cego. E ainda assim, metade de seus oitocentos e cinqüenta artigos foi produzida durante o período de absoluta deficiência visual. Teve o apoio, para escrever seus manuscritos, de dois de seus filhos e de membros da Academia de São Petersburgo.
Alguém poderia alegar que ele era um gênio, uma anormalidade, capaz de proezas que outros não podem realizar. Talvez faça sentido. Mas há demais exemplos de matemáticos profissionais cegos que estão espalhados pelo globo. Euler foi apenas o mais famoso.
Bernard Morin é mundialmente conhecido por um trabalho no qual mostra como virar uma esfera do avesso sem cortá-la. Em seu apartamento há modelos em argila que reproduzem em três dimensões as diferentes etapas dessa inversão da esfera. Ele mesmo esculpiu esses modelos nas décadas de 1960 e 1970, para facilitar a visualização de suas ideias para outras pessoas. Morin é cego.
Lawrence W. Baggett, matemático cego que é professor na Universidade do Colorado, quando questionado sobre como consegue lidar mentalmente com complicadas fórmulas matemáticas, modestamente responde: “Bem, é difícil para qualquer um”.
Mesmo cegos praticamente de nascença têm se destacado na matemática, como foi o caso do inglês Nicholas Saunderson, no século 18. Ele perdeu completamente a visão com um ano de idade por conta de varíola. Isso não o impediu se tornar fluente em francês, grego e latim. Tornou-se professor Lucasiano de Matemática na Universidade Cambridge, ocupando a mesma cátedra que foi de Isaac Newton e, recentemente, de Stephen Hawking, outro deficiente físico, o qual certamente não precisa ser apresentado ao leitor.
Na Rússia temos A. G. Vitushkin, um cego do Instituto Steklov em Moscou. Ele trabalha com análise complexa.
A França já produziu diversos matemáticos cegos, sendo que Louis Antoine é um dos mais ilustres.
Eu poderia dar muitos outros exemplos de matemáticos com deficiências visuais graves, bem como outras deficiências físicas, mas a questão não é essa. O fato é que mesmo uma deficiência física como a cegueira não impede um indivíduo de alcançar notáveis resultados intelectuais. E pergunto: Onde estão nossos matemáticos cegos? Há algum cientista brasileiro cego? Desconheço. Por que? Nossos cegos não têm capacidade intelectual o suficiente, se compararmos com cegos da França, Inglaterra, Estados Unidos ou Rússia? Ou simplesmente estamos dizendo que não precisamos deles? O quê exatamente não estamos vendo diante dessas questões?
A famosa educação inclusiva tem sido conduzida em nossas terras como um processo formativo ou como mero ato de piedade contra deficientes físicos e mentais? É este o motivo para a não existência de cientistas cegos?
É claro que, segundo o IBGE, 90% dos casos de cegueira em nosso país ocorrem em regiões mais pobres. Mas isso justifica o fato de uma nação mais populosa do que França e Inglaterra jamais ter tido um matemático cego?
sábado, 18 de fevereiro de 2012
Erros que funcionam muito bem
Na última postagem discuti um pouco a respeito do papel da intuição para o físico. Apresento aqui um exemplo de intuição que considero emblemático, apesar de pouco conhecido. Trata-se de um determinado modelo, devido ao astrônomo francês François Mignard, para explicar a influência das marés terrestres e oceânicas sobre a órbita da Lua, nosso único satélite natural.
Consideremos inicialmente que o sistema Terra-Lua é isolado. Ou seja, estamos ignorando os efeitos gravitacionais do Sol e de todos os demais corpos celestes do universo. Esta é uma primeira aproximação do modelo. É importante dizer, para evitar o espanto de leitores pouco familiarizados com este procedimento, que físicos adoram aproximações!
Sabe-se que a Lua provoca marés terrestres e oceânicas sobre nosso planeta, devido à atração gravitacional que ela exerce sobre a Terra. Esta já é a segunda aproximação! Afinal, estamos usando gravitação newtoniana. Ou seja, são ignorados efeitos relativísticos que poderiam melhorar o modelo, principalmente em escalas astronômicas de tempo.
A força gravitacional da Lua sobre o ponto mais próximo da Terra é desprezível, se compararmos com a força gravitacional do próprio planeta sobre este ponto. Isso porque a atração gravitacional newtoniana é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre os corpos que interagem. E a Lua está muito distante da Terra (mais de um segundo luz). No entanto, a força gravitacional que a Lua exerce sobre os pontos tangenciais do nosso planeta encontram uma resistência bem menor, devida principalmente ao atrito das águas dos oceanos e da própria crosta terrestre com camadas inferiores do planeta. A componente gravitacional da Terra se torna praticamente desprezível nestes pontos, pois ela forma um ângulo muito próximo de noventa graus com o vetor de força gravitacional da Lua.
Tal atração provocada pela Lua produz os chamados bulbos de marés: dois bulbos altos e dois baixos, conforme a imagem abaixo (as escalas estão naturalmente exageradas, para fins de ilustração). Por isso há quatro mudanças diárias de marés!
Porém, quando os bulbos de marés se formam, a Lua já transladou em sua órbita e a Terra já rotacionou em torno de seu eixo. Desse modo, há um atraso de resposta na formação dos bulbos. Tal atraso é estimado em cerca de dez minutos e está representado pelo ângulo entre os dois segmentos de reta da imagem acima. Um dos segmentos representa a posição anterior da Lua, quando deu-se início à formação dos bulbos. O outro corresponde à posição relativa da Lua após a formação dos bulbos. A importância do atraso de resposta na dinâmica de marés foi antecipada pela primeira vez por George Darwin, filho de Charles Darwin, o criador da teoria da evolução das espécies.
Diante dessa dinâmica, ocorrem então as correntes de marés. Ou seja, esses bulbos circulam ao redor do nosso planeta. As forças de atrito com camadas inferiores à superfície geram calor e consequente perda de energia total do sistema. Mas se há perda de energia, a Terra gira cada vez mais lentamente com o passar de milhões de anos. Logo, ela perde momento angular. Como consideramos o sistema Terra-Lua gravitacionalmente isolado, seu momento angular total deve ser constante. É o mesmo princípio que justifica o funcionamento do giroscópio ou do pião. Isso significa que a Lua ganha momento angular, como forma natural de compensação. Como nosso satélite natural não pode nos orbitar mais rapidamente (pois, para isso, deveria ganhar energia), a maneira natural de ocorrer tal ganho de momento angular é com o aumento do raio orbital. Isso significa que a cada dia a Lua se afasta de nós.
O que se tem aqui, portanto, é o famoso problema de três corpos: Terra, Lua e marés. E, na gravitação newtoniana, não existe solução analítica (expressa na forma de funções polinomiais, trigonométricas, exponenciais ou logarítmicas) para tal problema. A solução prática é apelar para métodos numéricos, os quais são apenas aproximados.
Uma vez estabelecido o modelo qualitativo, o próximo passo é expressar matematicamente o potencial gravitacional perturbador das marés por meio de uma série infinita de polinômios de Legendre (uma ferramenta muito comum em física-matemática). Usando argumentos meramente intuitivos, considera-se apenas a primeira parcela dessa série. Ou seja, as demais infinitas parcelas da série são simplesmente descartadas, sem qualquer preocupação com o valor da soma delas; o que nos leva à terceira aproximação! E este é o tipo de aproximação que assombra qualquer matemático. Afinal, matematicamente falando, "aproximação" aqui significa simplesmente "erro grotesco"! Mas físicos não se importam muito com a opinião de matemáticos.
Em seguida uma versão modificada dessa primeira parcela da expansão infinita em polinômios de Legendre é novamente expandida, mas desta vez na forma de uma série de Taylor, cuja variável é o atraso de resposta já mencionado. Tal série é novamente infinita.
Usando argumentos meramente intuitivos, considera-se apenas a segunda parcela de tal expansão, descartando-se todos os demais infinitos termos positivos. Esta já é a quarta aproximação! E, neste momento, já não é possível compreender a desesperadora angústia do matemático.
A partir dessa nova expressão são obtidas as equações diferenciais que descrevem a dinâmica do raio orbital médio, da excentricidade de órbita e da inclinação do plano orbital de nosso satélite natural relativamente ao plano absoluto (o plano ortogonal ao momento angular total do sistema, o qual é invariante e, portanto, opera como referencial inercial).
Como essas três equações diferenciais são altamente não lineares e bastante complicadas, não existe solução analítica para elas. Então apela-se a um método numérico aproximado, conhecido como Runge-Kutta de quarta ordem. Com este método grosseiro, temos finalmente a quinta aproximação! Lembro que décadas atrás a NASA usava Runge-Kutta de décima segunda ordem para simular vôos espaciais. Mas vale lembrar que uma resposta precisa por Runge-Kutta deveria ter infinitas parcelas; algo impossível de ser processado por computadores.
Enfim, após cinco aproximações injustificadas racionalmente (verdadeiros pesadelos para qualquer matemático), qual é o resultado final dessas contas em comparação com os fatos?
Na superfície da Lua há espelhos de silício instalados pelos astronautas do célebre Projeto Apollo. Observatórios de nosso planeta disparam raios laser na direção desses espelhos e aguardam o retorno. Como a velocidade da luz é conhecida com grande precisão, é possível medir a velocidade com que a Lua se afasta de nós, a qual é um valor entre dois e quatro centímetros por ano. Pois bem. Agora vem a parte dramática da história. Acontece que, após todas aquelas aproximações grosseiras acima mencionadas, este modelo se mostra em perfeito acordo com tais medições de extrema precisão.
Mas esta não é a única forma de verificação do modelo.
Examinando fósseis de corais rugosos do Período Devoniano (que viveram cerca de quatrocentos milhões de anos atrás) paleontólogos conseguem estimar a duração do ano em dias, naquela época remota. Isso porque muitas formas de vida na Terra têm seus ciclos vitais governados por períodos astronômicos, como o mês sinódico e o dia solar. É algo análogo aos anéis que se encontram em muitos troncos de árvores. E a partir desse exame, chegou-se à conclusão de que quase meio bilhão de anos atrás o dia na Terra durava vinte e duas horas, contra as vinte e quatro de hoje. Isso se deve ao fato de que, apesar do ano ser imutável em termos de duração, a Terra girava mais rapidamente em torno de seu eixo. Ou seja, os dias eram mais curtos e, consequentemente, os anos tinham mais dias. E novamente a previsão deste modelo exageradamente aproximado está em pleno acordo com tais observações paleontológicas! Isso porque a integração numérica por Runge-Kutta permite simular o futuro e o passado remoto do sistema Terra-Lua.
A pergunta natural agora é: Como isso é possível? Que raio de magia é essa? Como pode um modelo resultante de cinco aproximações grosseiras estar em pleno acordo com medições tão precisas e tão distantes em escalas de tempo? A única resposta que posso apresentar é aquela dada pela minha ex-colega do Departamento de Matemática, mencionada na última postagem: devemos confiar nos físicos.
Mas o modelo de Mignard tem limitações (surpresa?). Ele considera o atraso de resposta constante. A consequência disso é que a integração numérica para escalas de tempo maiores do que dois bilhões de anos no passado estão em desacordo com teorias modernas sobre a gênese do sistema Terra-Lua. O astrônomo Germano Bruno Afonso e eu elaboramos as ideias de Mignard para incluir um atraso de resposta que diminui com o tempo. Dessa forma conseguimos pleno acordo com o fato de que Terra e Lua nasceram há cerca de 4,5 bilhões de anos. De acordo com nosso modelo, no futuro distante, a Lua não mais se afastará da Terra. Com o passar do tempo o atraso de resposta diminuirá até chegar a zero minutos. Quando isso ocorrer, a Lua estará perfeitamente alinhada com os bulbos altos de marés terrestres e oceânicas. Ou seja, um dia ela será geoestacionária.
Como a Lua tem uma massa inercial muito inferior à da Terra, ela atingiu este ponto de equilíbrio logo no início da formação do sistema solar. A Lua também tem bulbos de maré na superfície, provocados pela gravitação da Terra. Mas como ela atingiu o ponto de equilíbrio em poucos milhões de anos, hoje a Terra está em posição perfeitamente alinhada com os bulbos de marés lunares. Por isso a Lua tem sempre a mesma face voltada para a Terra! Um dia a Terra terá sempre a mesma face voltada para a Lua. Mas até isso acontecer, o Sol já terá expandido na forma de uma gigante vermelha e nenhuma forma de vida existirá em nosso mundo, incluindo naturalmente este blog.
Praticamente toda a física opera dessa forma, que é um misto de razão com uma intuição (mágica?) não qualificada. Nas teorias de gauge (correspondentes às formulações atuais para campos), por exemplo, a matemática é rigorosamente seguida. Em compensação há monumentais lacunas no que se refere à interpretação física de certos conceitos, como as infames cópias de gauge, entre outros. Lembro, por exemplo, que anos atrás publiquei no britânico Journal of Physics A e no americano Journal of K-Theory resultados de pesquisa nos quais mostrei (em parceria com Francisco Doria e Newton da Costa) condições analíticas necessárias e suficientes para a existência das chamadas cópias de gauge. Um dos avaliadores do primeiro trabalho deu um parecer muito curioso. Ele recomendou a publicação justamente porque pouco se sabe sobre esse misterioso fenômeno. Em contrapartida, tive um artigo sobre eletrodinâmica quântica recusado por um periódico de física porque o parecerista alegou que, apesar de as contas estarem certas, ele não acreditava no resultado. Fui obrigado a publicar em uma revista de matemática! Lá me senti compreendido.
Levando em conta a tradição platônica de que conhecimento científico é uma crença verdadeira justificada, o que exatamente seria uma justificativa senão uma ideia cujo único critério de aceitação é o social?
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
Massa e Força
Não são raros os físicos que informalmente definem força como massa vezes aceleração. E quando são questionados sobre o conceito de massa, respondem que é força dividida por aceleração. É claro que, do ponto de vista lógico-matemático, isso parece uma piada, pois a óbvia circularidade soa ingênua (para dizer o mínimo). Mas de todos os profissionais que cometem erros assombrosos, os físicos estão entre aqueles que podem nos ensinar muita coisa com seus bizarros equívocos.
Em função disso, lembro que anos atrás uma ex-colega minha do Departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná me disse algo que jamais esqueci: "Eu confio nos físicos."
A experiência mostra que físicos exageradamente preocupados com a contraparte matemática de suas teorias acabam se afastando da intuição física. E física de boa qualidade definitivamente não se faz sem intuição. Se o leitor tem uma mentalidade mais formal-matemática e, em função disso, encontra dificuldade para entender o que quero dizer, nada posso fazer a não ser lamentar. Trabalhei durante décadas com matemática e física. E posso dizer que a intuição física é algo que me fascina muito mais do que qualquer teoria matemática. Ilustrarei tal afirmação nesta e na próxima postagem.
No entanto, se um físico consegue desenvolver pesquisa de boa qualidade sem saber exatamente o que está fazendo em termos epistemológicos, isso não o qualifica para respostas jocosas, como as alegadas definições de massa e força dadas no primeiro parágrafo. Devemos saber distinguir física de fundamentos da física. Se um físico ignorante sobre fundamentos não sabe o que é força ou massa, que seja honesto e diga a verdade a quem perguntar.
Um dos papéis da matemática na física é conferir parte da epistemologia dessa importante ciência real. Portanto, definir conceitos como massa e força é uma tarefa que carrega uma grande dose de matemática. Ou seja, conferir claramente o caráter epistemológico de uma teoria física é uma tarefa muito mais difícil de ser realizada do que a pesquisa em física, em seu sentido estrito. Isso porque a epistemologia de teorias da física faz parte do estudo dos fundamentos da física, uma área do conhecimento que envolve física, matemática, lógica e filosofia.
Comecemos com o conceito de força.
A rigor, do ponto de vista filosófico, não faz sentido perguntar o que é força. Faz-se necessária uma qualificação da pergunta. Mesmo que questionemos o que é força no contexto da mecânica clássica (corpo do conhecimento no qual usualmente se faz menção a forças), ainda não estamos qualificando a pergunta. Isso porque há inúmeras formulações não equivalentes entre si para a mecânica clássica.
Físicos comumente consideram que existem apenas três formulações: newtoniana, hamiltoniana e lagrangeana. Mas isso é falso. Existem várias formulações hamiltonianas, newtonianas e lagrangeanas para a mecânica. E para dificultar a situação, raras são as vezes que tais formulações são apresentadas axiomaticamente. Afinal, para responder formalmente se algum conceito é definível, em uma dada teoria, faz-se fundamental que ele seja uma componente da linguagem de um sistema axiomático. Então analisemos uma formulação axiomática em especial da mecânica clássica newtoniana.
Em 1953 McKinsey, Sugar e Suppes apresentaram uma teoria axiomática para a mecânica newtoniana. Naquela formulação é possível provar, usando uma técnica lógica-matemática conhecida como Método de Padoa, que força é um conceito não-definível a partir dos demais (partícula, posição, tempo e massa). Portanto, não há definição para força neste contexto. E existe uma explicação intuitiva para isso. Afinal, como afirmamos, não se faz física sem intuição. Se uma partícula está em repouso relativamente a um referencial inercial, usualmente se considera que a força resultante (a soma vetorial de todas as forças aplicadas sobre a partícula) é nula. Portanto, o conceito que pode ser definido é o de força resultante sobre a partícula, que, neste caso, é zero. Afinal, força não é igual a massa vezes aceleração. Força resultante é massa multiplicada por aceleração! As forças individuais sobre a partícula não podem ser definidas. Se, para efeitos de contas, o físico opta por considerar forças individuais como sendo a massa da partícula multiplicada por vetores individuais de aceleração, isso não é inconsistente com a teoria (apesar de não estar previsto nos axiomas mencionados). Mas nem por isso ele pode usar tal recurso como definição para força. Assim, de acordo com o que vimos em postagem anterior sobre definições, o conceito de força é não-eliminável na mecânica newtoniana formulada por McKinsey e colaboradores. Comentário análogo pode ser usado mesmo para uma força resultante não-nula.
Em compensação, em 1894 Heinrich Hertz publicou um livro no qual se apresentava uma formulação para a mecânica newtoniana sem o conceito de força. Em função disso, em 1996 publiquei um trabalho no periódico alemão Philosophia Naturalis, onde desenvolvi uma formulação axiomática para a mecânica, inspirado nas ideias de Hertz. Uma versão modificada deste artigo e escrita em português está aqui.
Mais tarde mostrei, em parceria com um ex-aluno (no periódico estadunidense Foundations of Physics Letters), que minha formulação para a mecânica newtoniana sem força permitia deduzir as leis de Kepler dos movimentos planetários. Ou seja, a princípio é possível prescindir de força, dependendo da axiomatização adotada.
Em 2000, Max Jammer publicou o livro Concepts of Mass (Princeton University Press), seguindo o mesmo espírito de seu famoso Concepts of Space (com prefácio de Albert Einstein). Neste livro ele afirma (na página 24) que demonstrei em minha formulação para a mecânica de Hertz que, mesmo em axiomatizações da mecânica que evitam a noção de força, ainda precisamos do conceito de massa como primitivo. Na verdade jamais afirmei isso e sequer foi minha intenção sugerir tal ideia. Afinal, Heinz-Jürgen Schmidt (que Jammer equivocadamente se refere na obra citada como Hans-Jürgen Schmidt) desenvolveu uma axiomatização para a mecânica lagrangeana na qual ele efetivamente define massa inercial em termos de acelerações. O curioso é que na teoria de McKinsey e colaboradores, usando o mesmo Método de Padoa, é facilmente demonstrável que massa não pode ser definida e, portanto, não pode ser eliminada.
No caso do conceito de massa, as discussões na literatura especializada parecem ser bem mais extensas do que aquelas sobre força. Os físicos comumente gostam de diferenciar conceitualmente massa inercial (responsável pela inércia dos corpos) de massa gravitacional (responsável por fenômenos de gravitação). Mesmo a famosa relação entre massa e energia (devida a Einstein) é comumente mal compreendida. Muitos ignoram que a noção de massa na teoria da relatividade restrita não é a mesma empregada nas formulações usuais da mecânica clássica não-relativística.
Ou seja, a definibilidade dos conceitos de massa e força em física simplesmente depende da teoria em tela. Em suma, não se faz ciência sem qualificação de discurso.
Em função disso, lembro que anos atrás uma ex-colega minha do Departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná me disse algo que jamais esqueci: "Eu confio nos físicos."
A experiência mostra que físicos exageradamente preocupados com a contraparte matemática de suas teorias acabam se afastando da intuição física. E física de boa qualidade definitivamente não se faz sem intuição. Se o leitor tem uma mentalidade mais formal-matemática e, em função disso, encontra dificuldade para entender o que quero dizer, nada posso fazer a não ser lamentar. Trabalhei durante décadas com matemática e física. E posso dizer que a intuição física é algo que me fascina muito mais do que qualquer teoria matemática. Ilustrarei tal afirmação nesta e na próxima postagem.
No entanto, se um físico consegue desenvolver pesquisa de boa qualidade sem saber exatamente o que está fazendo em termos epistemológicos, isso não o qualifica para respostas jocosas, como as alegadas definições de massa e força dadas no primeiro parágrafo. Devemos saber distinguir física de fundamentos da física. Se um físico ignorante sobre fundamentos não sabe o que é força ou massa, que seja honesto e diga a verdade a quem perguntar.
Um dos papéis da matemática na física é conferir parte da epistemologia dessa importante ciência real. Portanto, definir conceitos como massa e força é uma tarefa que carrega uma grande dose de matemática. Ou seja, conferir claramente o caráter epistemológico de uma teoria física é uma tarefa muito mais difícil de ser realizada do que a pesquisa em física, em seu sentido estrito. Isso porque a epistemologia de teorias da física faz parte do estudo dos fundamentos da física, uma área do conhecimento que envolve física, matemática, lógica e filosofia.
Comecemos com o conceito de força.
A rigor, do ponto de vista filosófico, não faz sentido perguntar o que é força. Faz-se necessária uma qualificação da pergunta. Mesmo que questionemos o que é força no contexto da mecânica clássica (corpo do conhecimento no qual usualmente se faz menção a forças), ainda não estamos qualificando a pergunta. Isso porque há inúmeras formulações não equivalentes entre si para a mecânica clássica.
Físicos comumente consideram que existem apenas três formulações: newtoniana, hamiltoniana e lagrangeana. Mas isso é falso. Existem várias formulações hamiltonianas, newtonianas e lagrangeanas para a mecânica. E para dificultar a situação, raras são as vezes que tais formulações são apresentadas axiomaticamente. Afinal, para responder formalmente se algum conceito é definível, em uma dada teoria, faz-se fundamental que ele seja uma componente da linguagem de um sistema axiomático. Então analisemos uma formulação axiomática em especial da mecânica clássica newtoniana.
Em 1953 McKinsey, Sugar e Suppes apresentaram uma teoria axiomática para a mecânica newtoniana. Naquela formulação é possível provar, usando uma técnica lógica-matemática conhecida como Método de Padoa, que força é um conceito não-definível a partir dos demais (partícula, posição, tempo e massa). Portanto, não há definição para força neste contexto. E existe uma explicação intuitiva para isso. Afinal, como afirmamos, não se faz física sem intuição. Se uma partícula está em repouso relativamente a um referencial inercial, usualmente se considera que a força resultante (a soma vetorial de todas as forças aplicadas sobre a partícula) é nula. Portanto, o conceito que pode ser definido é o de força resultante sobre a partícula, que, neste caso, é zero. Afinal, força não é igual a massa vezes aceleração. Força resultante é massa multiplicada por aceleração! As forças individuais sobre a partícula não podem ser definidas. Se, para efeitos de contas, o físico opta por considerar forças individuais como sendo a massa da partícula multiplicada por vetores individuais de aceleração, isso não é inconsistente com a teoria (apesar de não estar previsto nos axiomas mencionados). Mas nem por isso ele pode usar tal recurso como definição para força. Assim, de acordo com o que vimos em postagem anterior sobre definições, o conceito de força é não-eliminável na mecânica newtoniana formulada por McKinsey e colaboradores. Comentário análogo pode ser usado mesmo para uma força resultante não-nula.
Em compensação, em 1894 Heinrich Hertz publicou um livro no qual se apresentava uma formulação para a mecânica newtoniana sem o conceito de força. Em função disso, em 1996 publiquei um trabalho no periódico alemão Philosophia Naturalis, onde desenvolvi uma formulação axiomática para a mecânica, inspirado nas ideias de Hertz. Uma versão modificada deste artigo e escrita em português está aqui.
Mais tarde mostrei, em parceria com um ex-aluno (no periódico estadunidense Foundations of Physics Letters), que minha formulação para a mecânica newtoniana sem força permitia deduzir as leis de Kepler dos movimentos planetários. Ou seja, a princípio é possível prescindir de força, dependendo da axiomatização adotada.
Em 2000, Max Jammer publicou o livro Concepts of Mass (Princeton University Press), seguindo o mesmo espírito de seu famoso Concepts of Space (com prefácio de Albert Einstein). Neste livro ele afirma (na página 24) que demonstrei em minha formulação para a mecânica de Hertz que, mesmo em axiomatizações da mecânica que evitam a noção de força, ainda precisamos do conceito de massa como primitivo. Na verdade jamais afirmei isso e sequer foi minha intenção sugerir tal ideia. Afinal, Heinz-Jürgen Schmidt (que Jammer equivocadamente se refere na obra citada como Hans-Jürgen Schmidt) desenvolveu uma axiomatização para a mecânica lagrangeana na qual ele efetivamente define massa inercial em termos de acelerações. O curioso é que na teoria de McKinsey e colaboradores, usando o mesmo Método de Padoa, é facilmente demonstrável que massa não pode ser definida e, portanto, não pode ser eliminada.
No caso do conceito de massa, as discussões na literatura especializada parecem ser bem mais extensas do que aquelas sobre força. Os físicos comumente gostam de diferenciar conceitualmente massa inercial (responsável pela inércia dos corpos) de massa gravitacional (responsável por fenômenos de gravitação). Mesmo a famosa relação entre massa e energia (devida a Einstein) é comumente mal compreendida. Muitos ignoram que a noção de massa na teoria da relatividade restrita não é a mesma empregada nas formulações usuais da mecânica clássica não-relativística.
Ou seja, a definibilidade dos conceitos de massa e força em física simplesmente depende da teoria em tela. Em suma, não se faz ciência sem qualificação de discurso.
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