quarta-feira, 22 de setembro de 2010

2 + 3 = 5?

Dizem que quem sabe, faz... quem não sabe, ensina...
Veremos adiante que esse ditado popular, ao contrário de tantos outros, encerra uma certa sabedoria.

Já demonstrei em posts anteriores que professores de matemática comumente não sabem sequer somar. Meu argumento se sustentou no fato de que geralmente procedimentos ensinados para as operações usuais entre números inteiros (adição, subtração, multiplicação e divisão) se restringem à base decimal; e se uma pessoa não sabe aplicar os mesmos procedimentos em outras bases (como a binária ou a hexadecimal, entre infinitas possibilidades), está confundindo conceito com notação.

No entanto, quero explorar um pouco melhor essa questão, sob o foco de outra crença comum, mas equivocada: a de que a aquisição de conhecimento se conquista em etapas sucessivas, partindo-se de princípios mais básicos, para que se possa compreender tópicos mais avançados.

Esta crença gera uma espécie de zona de conforto para nossos jovens, nas mãos de nossos queridos mas ignorantes mestres.


No entanto, conhecimento pouco tem a ver com conforto.

Nos anos escolares iniciais costuma-se dizer que números correspondem a quantias. Na prática esse conceito é ensinado por um processo de abstração. Mais especificamente, aquilo que três maçãs, três cães ou três moedas têm em comum é a quantia: três. Neste sentido, procura-se induzir no aluno um processo de abstração do mundo real, para se intuir um conceito matemático chamado número. Mais tarde tais números são chamados de números naturais e - BINGO! - os alunos sabem "naturalmente" contar e até operar tais números "naturais". Estão mergulhando em um mundo encantado que costuma-se dizer que é abstrato, mas exato.
No entanto, se tais alunos forem questionados sobre o que são, afinal de contas, números naturais, eles simplesmente se perdem. O mesmo, aliás, vale para a maioria dos professores. E a escravidão do aprendizado de matemática a partir de exemplos concretos no mundo real revela-se de extrema inconveniência quando posteriormente esses mesmos jovens se deparam com números chamados de "complexos", e cuja compreensão depende de um número muito esquisito, denotado por i, cujo quadrado é negativo e usualmente chamado de "unidade imaginária". A essa altura a matemática mostra-se um mistério aparentemente sem consistência e sem contato com o mundo real.
Apelar a processos de abstração do real, para intuir o conceito de número, é algo que pode ser eficiente nos anos iniciais da escola. Mas essa intuição certamente não define o conceito de número e, com o tempo, gera desconfiança na mente dos escravos da educação que chamamos de alunos. E essa falácia da abstração é algo que adolescentes podem e devem compreender, pelo menos no ensino médio. Devem entender que aquilo que se mostra a eles durante a infância foi algo como um truque, mas não uma conceituação. Do ponto de vista matemático, nada básico foi de fato lecionado. Os jovens foram enganados!
Como no ensino médio brasileiro se leciona noções muito básicas sobre teoria de conjuntos, por que não usar isso para detalhar um pouco melhor os conceitos de número natural e das operações usuais entre eles?

Citemos um exemplo muito simples. Se definirmos o sucessor S(x)de um conjunto x como a união de x com o conjunto unitário que tem como único elemento o conjunto x (S(x) = xU{x}), poderemos então definir o número natural 0 (zero) como o conjunto vazio (aquele que não tem elemento algum), o número natural 1 como o sucessor de 0, o número natural 2 como o sucessor de 1 e assim por diante. Neste sentido, números naturais são conjuntos finitos definidos a partir de uma semente (o zero) e por uma operação conjuntista de união.

É claro que essa estratégia só pode funcionar se a teoria de conjuntos for lecionada de forma responsável, sem qualquer tentativa de atrelar o conceito de conjunto a outro processo falacioso de abstração do real a partir de exemplos concretos.

O ensino de matemática deve ser tratado de maneira responsável ao longo de toda a sua extensão. Caso contrário retornaremos à doutrinação de permanentes erros de visão sobre a natureza da matemática.
Em seguida, o docente de matemática pode definir a adição + entre números naturais da seguinte forma: se n é um número natural, então

n + 0 = n

e

m + S(n) = S (m + n).

Ou seja, quanto é 2 + 3?

2 + 3 = S (2 + 2) = S(S(2 + 1) = S(S(S(2 + 0))) = S(S(S(2))) = S(S(3)) = S(4) = 5. Portanto, 2 + 3 = 5, se 2, 3 e 5 forem números naturais, naturalmente!

É claro que não respondo aqui a uma série de questões naturais: I) Como transpor alguma teoria de conjuntos para alunos de ensino médio? II) Como provar as propriedades usuais da adição de números naturais (comutatividade e associatividade)? III) Como definir multiplicação entre números naturais, bem como suas propriedades usuais? IV) Como explicar aos alunos que até mesmo essa abordagem tem falhas graves do ponto de vista matemático? V) Como estender essas ideias para números inteiros, racionais, irracionais, transcendentes, reais e complexos?

A resposta é uma só: melhor qualificação dos professores de matemática de nosso país e, principalmente, dos autores de material didático de referência e apoio (apostilas e livros). Se isso não acontecer, continuaremos a usar ferramentas inadequadas entregues às mãos incompetentes de docentes que simplesmente não sabem o que estão fazendo.
No atual estado de coisas, alunos do ensino médio ainda são bombardeados com conceituações absurdas, como aquela na qual se afirma que um número complexo z é aquele da forma z = a + bi, sendo a e b números reais e i a tal da unidade imaginária. Ora, já que sabemos que i não é um número real (afinal, seu quadrado é um número real negativo!), como podemos multiplicá-lo por um número real b? E, pior, como podemos somar a esse insólito resultado um outro número real a?

Enquanto o ensino de matemática se mantiver sob a tradição de cópias de textos absurdos e sem uma real preocupação de transposição de conhecimentos matemáticos para uma linguagem acessível aos jovens, continuaremos a alimentar a sensação de que matemática não é terreno seguro para se viver e trabalhar.


Aliás, no atual terreno em que nossos jovens pisam, até mesmo a belíssima estética da matemática é, não apenas ignorada, mas violentada.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Manual Ilustrado da Docência

Este texto é parcialmente baseado em trechos dos livros How to Teach Mathematics (Como Ensinar Matemática), de Steven Krantz, publicado em 1999 pela American Mathematical Society, e O Capelão do Diabo, de Richard Dawkins, publicado no Brasil em 2003, pela Companhia das Letras. O link que ofereço para o livro de Dawkins é transcrito de edição de 2003 da Scientific American Brasil.

Krantz não é um especialista em educação matemática. É tão somente um renomado analista, ou seja, um matemático profissional no sentido estrito do termo. No entanto, considero sua obra leitura obrigatória para qualquer profissional do ensino de matemática. E muito do que ele expõe é perfeitamente aplicável a docentes de outras áreas.

Quanto a Dawkins, trata-se de um zoólogo sul-africano que talvez seja o mais influente divulgador científico vivo. Aqui vão algumas das ideias destes dois importantes autores adaptadas para nossa realidade.


1) O professor deve minimizar a atenção de seus alunos sobre ele mesmo e maximizar a atenção sobre a matéria lecionada. Para isso deve usar roupas discretas, de acordo com o ambiente no qual leciona.


Por mais fascinante que seja o tema estudado, alunos ainda estão sujeitos a distrações. Afinal, os atos de estudar e discutir sobre os temas abordados demandam grande esforço. Por isso o docente deve ser cuidadoso com seu visual.


2) Além disso, o profissional do ensino deve ter em mente que sua linguagem corporal pode dizer mais do que palavras. Analogamente o docente deve estar atento a elementos básicos da linguagem corporal de seus pupilos.

Demonstrações de insegurança, indiferença, desprezo, raiva, angústia, depressão, desânimo, entre outros estados emocionais, podem afetar o desempenho dos discentes.



Por isso, o acompanhamento psicológico qualificado de professores e alunos é fundamental desde o maternal até a pós-graduação.


3) Diante da falta de recursos institucionais para acompanhamento psicológico competente, pelo menos noções básicas de linguagem corporal podem ser obtidas pelos docentes até mesmo na internet.

Lecionar com as mãos no bolso, por exemplo, pode ser inconscientemente assimilado pelos alunos como sinal de descaso do docente.
Já a carência de contato de olhos sobre um discente pode ser interpretada como falta de atenção. Por outro lado, o excesso de contato de olhos pode ser percebido como assédio.


4) Como estudos exigem grande esforço em termos de concentração, muitas vezes o professor se sente estimulado a fazer comentários sobre assuntos que não estão relacionados aos conteúdos lecionados, com o objetivo de oferecer um breve descanso aos alunos. Mas certos temas devem ser evitados, para não gerarem reações emocionais que prejudiquem o andamento das aulas.

Observações de caráter político ou religioso podem produzir reações de antipatia sobre o docente e também priorizar a posterior atenção voltada ao docente e não à matéria lecionada.
Comentários de caráter sexista ou misógino, ainda que feitos na forma de piadas aparentemente inocentes, também podem ser elementos de distração perigosos ao desenvolvimento intelectual de jovens.


5) Devemos ainda levar em conta as pressões institucionais que estimulam o preconceito em sala de aula, muitas delas já sedimentadas até mesmo em universidades.

Afinal, foram universidades estaduais e federais de nosso próprio país de realidades tão diversificadas que iniciaram a institucionalização de formas cada vez mais usuais de preconceito, com a criação de cotas para negros e estudantes de escolas públicas.


6) Professores, ao contrário de advogados, médicos, psicólogos e arquitetos, não têm código de ética devidamente documentado. Além disso, não contam com treinamento para lidar com certas situações corriqueiras em sala de aula. Por isso, eles devem exigir, das instituições de ensino, políticas internas bem definidas que suportem a prática de ensino.

A "cola", por exemplo, é uma forma de trapaça ou fraude contra o sistema de ensino e não contra um professor. Portanto, não compete ao docente a decisão sobre o quê fazer diante dessa grave irregularidade. É a reputação de uma instituição de ensino que está em jogo diante do caso de fraude escolar.


7) O professor deve perceber que ele é apenas uma célula do processo educacional.

Se não houver um diálogo eficiente entre todos os agentes envolvidos na educação (professores, escola, alunos, famílias, mercado de trabalho, governos), continuaremos nos submetendo a situações ridículas de inversão de papéis.


8) No entanto, o professor é uma célula vital. Enquanto agente educacional, o docente não pode ser substituído por mídias de educação em massa. A ele compete não apenas a discussão crítica de matemática, ciências, línguas, história, geografia, filosofia e artes, mas também o exemplo da conquista intelectual.

Não se deve aceitar o conhecimento sustentado pela autoridade ou tradição. Até mesmo o ensino religioso pode e deve ser realizado criticamente. A titulação de um docente deve se refletir apenas como qualificação que melhore a qualidade de suas aulas e não como discurso autoritário ou tradicional sobre aqueles que supostamente devem aprender.


E conhecimento crítico também descarta a revelação como forma de compreensão. O fato de alguém julgar que suas ideias são adequadas, não significa que realmente o sejam, em um contexto social tão amplo quanto a educação.


9) Professores devem também articular o diálogo com profissionais de diferentes áreas. A educação deve operar como uma rede. Devemos abandonar a ideia absurda de que a formação de futuros cidadãos ocorre por ascenção a degraus cada vez mais altos, sustentados em conhecimentos básicos.

O ensino de filosofia em nosso país, por exemplo, mesmo nas universidades, enfatiza uma abordagem ingenuamente histórica e não o pensamento crítico sobre diferentes áreas do saber.

10) Afinal, a realidade mundial é uma rede de interdependências sociais.

E as instituições de ensino devem estar antenadas a essa realidade. Como enfatiza Krantz, não devemos nos apoiar na ideia de que existe um único caminho otimizado para a prática da docência. O mundo é socialmente diversificado. E o perfil individual de cada aluno, cada professor, cada cidadão, é uma variável que deve ser levada em conta no processo educacional.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Breve História Ilustrada da Educação Brasileira

Fazemos aqui uma breve discussão dos princípios que norteiam a educação em nosso país:

1) Matemática, ciências e línguas são ensinadas dogmaticamente, por meio de mandamentos impostos liturgicamente por professores e autores. Exemplo:


Professores afirmam sem pensar: "Não dividirás por zero!"

2) A visão fragmentada de nosso sistema de ensino não permite que alunos percebam as relações existentes entre diferentes áreas do saber. E mesmo em uma área específica como matemática, cada tópico é tratado de maneira independente dos demais. Exemplo:


Ensina-se teoria de conjuntos nas escolas, mas alunos e professores não têm ideia da importância estratégica dessa disciplina tanto em matemática quanto em português, história, artes e ciências. Consequentemente, nossa visão de mundo é deficiente e esteticamente horrorosa.

3) Nossos alunos não são estimulados a pensar criticamente. São simplesmente moldados à imagem e semelhança de seus mestres, por métodos que nada mais são do que adestramento. Exemplo:


Em tom épico, sustentado institucional e socialmente, docentes propagam: "Faça como eu faço e tudo ficará bem!" A criatividade dos nossos jovens é esmagada.

4) Consequentemente, nossos alunos demonstram um nível intelectual que os torna praticamente incapazes de inserção em uma sociedade cada vez mais globalizada. Exemplo:


Temos um dos piores desempenhos no PISA, teste internacional de educação comparada. Mas ainda temos esperança de que nosso sistema educacional seja melhor do que o etíope.

5) Devido a essa infame realidade, não valorizamos propriedade intelectual. Afinal, não existe tradição brasileira de concepção de ideias. Exemplo:



O Brasil combate a pirataria de forma incipiente, a população sequer sabe o que é pirataria, e o uso de produtos falsos e ilegais é uma prática cultural mais do que aceita pela população. Afinal, por que desenvolver ideias, se outros países o fazem tão bem? Eu mesmo estou fazendo uso de imagens com copyright sem me preocupar. Afinal, sou brasileiro!


6) A língua inglesa é ostensivamente lecionada em nossas escolas, vivemos em constante contato com a cultura norte-americana, nossos vizinhos latino-americanos falam predominantemente espanhol, mas ainda não conseguimos estabelecer comunicação com o mundo que existe além de nossas fronteiras. Exemplo:



Mesmo professores universitários encontram sérias limitações para ler, escrever, falar ou entender inglês e espanhol. Aliás, até mesmo em cursos universitários de letras, com ênfase em inglês e português, há inúmeros docentes que não conhecem sequer o básico da língua que o resto do planeta fala.


7) Não existe política meritocrática em nossas instituições de ensino. Exemplo:



A falta de estímulo real a profissionais de alto nível se reflete como uso extremamente inadequado de recursos. Reconhecimento é considerado elitismo que, por sua vez, é tido como politicamente incorreto. Nem mesmo alunos superdotados são tratados de forma diferenciada, apesar de deficientes físicos e mentais terem acesso cada vez mais sistemático a educação inclusiva.


8) Ainda não percebemos que a família é a base social da educação de nossos jovens. O exemplo familiar de valorização da cultura é fundamental para que nossos filhos se sintam estimulados a exigir cada vez mais de seus mestres. Exemplo:



Se você sabe o nome original dessa escultura, bem como do artista que a concebeu, talvez esteja sintonizado com a cultura mundial e, portanto, pode ser um bom exemplo para seus filhos. Mas se nem o básico você conhece, que pelo menos procure estimular intelectualmente aqueles cujo futuro depende de seu exemplo como ser humano.


9) A cultura da centralização de políticas e estratégias educacionais naturalmente afasta a população de suas responsabilidades nessa área. Com isso não percebemos a contradição de que queremos educação competitiva, mas nada fazemos para conquistá-la. O futuro promissor que tanto se propaga em nossa nação somente é possível se tivermos liberdade para nossas próprias decisões. Exemplo:


O ENEM foi mais um golpe cruel contra o direito à educação. Se nossos filhos querem ingressar em uma universidade, que tenham esse direito por mérito, e não por selvagem e incompetente critério de competição que abstrai toda e qualquer noção de realidade local. Governos devem criar mais universidades e mais vagas! Mas governos não devem assumir a péssima postura superprotetora que isenta a responsabilidade do cidadão.

10) Educação reside na crítica àquilo que se crê já estabelecido. Precisamos questionar até mesmo o que parece adequado. Exemplo:




Se você quer saber mais sobre alguns dos tópicos aqui apresentados, leia os demais posts deste blog. E se compartilha com pelo menos algumas das ideias aqui colocadas, divulgue esta página. Não aceite o país como está, não aceite o que aqui se escreve! Apenas inicie uma discussão e assuma sua responsabilidade social e familiar. Educação é importante demais para ficar nas mãos de professores, autores ou governos. Todos os segmentos sociais devem participar deste processo ativamente, a começar pela família.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Carta Aberta aos Alunos do Curso de Física da UFPR



Apesar de as críticas abaixo serem específicas a um curso, elas certamente se aplicam a inúmeros outros, de diversas instituições brasileiras de ensino superior.


Leciono para o Curso de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) há quase duas décadas. E tenho observado uma série de problemas graves, tanto na formação matemática de nossos alunos, quanto em sua cultura científica, e até mesmo na estrutura do próprio curso. Usualmente questões dessa natureza são discutidas no âmbito do Colegiado. No entanto, como há uma tradicional omissão dos representantes discentes deste órgão e uma falta de sensibilidade tanto de discentes quanto docentes, coloco aqui uma série de impressões pessoais que talvez possam ajudar a alavancar um futuro melhor. Meu objetivo não é esgotar os temas abordados, mas tentar iniciar uma discussão construtiva.


1) Falta, à maioria dos envolvidos, espírito de independência. Física é ciência. Ciência exige independência de pensamento. Se alunos ou professores se escravizam a definições e teoremas de livros-texto, sem sequer saberem qual é a diferença entre um teorema e uma definição, passam a ser meros repetidores de conteúdos comumente equivocados, irresponsáveis. Nossos alunos têm que se acostumar à ideia de que a física deve ser estudada criticamente e não dogmaticamente como forma ditada a partir das palavras de algum autor ou professor. Nossos alunos devem passar por um processo de formação que os permita não apenas fazer contas e experimentos, mas também avaliar criticamente tais contas e experimentos. Exemplo 1: o aluno que acredita que seno de um ângulo agudo, por definição, é a razão entre um cateto de um triângulo retângulo e sua hipotenusa (ou, equivalentemente, uma determinada projeção no círculo trigonométrico), demonstra preocupante falta de senso crítico. Basta perguntar a esse aluno, como se calcula o seno de um radiano a partir dessa alegada definição, e ficará patente que ele jamais pensou sobre a questão. Em geral, tais alunos sentem-se perdidos, sem saberem o quê fazer, quando colocados diante desse problema. Exemplo 2: O aluno que acredita que a Lei da Gravitação Universal estabelece que os corpos se atraem na razão inversa do quadrado da distância que os separa, também demonstra lamentável falta de senso crítico. A Lei da Gravitação Universal refere-se a um princípio de ação a distância. Portanto, não há meio material entre os corpos, que justifique qualquer afirmação de que os corpos efetivamente se atraem. Uma qualificação mais adequada estabelece que tudo se passa como se os corpos se atraíssem. Mas afirmar que efetivamente se atraem é uma afronta ao tirocínio crítico. Se físicos do século 19 discutiram exaustivamente essa questão, por que ainda se insiste nisso nos dias de hoje? Não se nutre espírito de independência de pensamento sem conhecimento de história, fundamentos e filosofia da física.

2) Falta, à maioria dos envolvidos, conteúdo matemático básico. Não são raros aqueles que desconhecem matemática do ensino médio e fundamental. Não sabem o que são conjuntos, funções, números reais, números racionais, funções circulares, funções logarítmicas, probabilidades, a diferença entre equações e funções etc. Na verdade, muitos (muitos mesmo!) sequer sabem somar. Se uma pessoa só sabe somar em base decimal, apenas domina um procedimento mecânico sem entender o quê de fato está fazendo. Saber somar exige no mínimo o domínio do conceito de soma, independente da base na qual se representa os números sob operação. Ou seja, não se pode confundir conceito com notação. E a matemática básica que se enfatiza e pratica é sustentada em vagas lembranças de procedimentos aplicados a meras notações, sem qualquer noção a respeito dos conceitos envolvidos.

3) Falta, à maioria dos alunos, motivação e, conseqüentemente, cultura. Nossos discentes não conhecem revistas como Scientific American, Scientific American Brasil, Nature, Pesquisa FAPESP, Physics Today, Notices of the American Mathematical Society, entre outras publicações não-técnicas. Também desconhecem autores consagrados na divulgação das ciências como Richard Feynman, Murray Guell-Mann, Carl Sagan, Albert Einstein, Henri Poincaré, Werner Heisenberg, Ian Stewart, Niels Bohr, Richard Dawkins, entre outros. Além disso, nossos alunos freqüentemente estudam apenas quando há avaliação agendada. Falta a cultura do trabalho constante, algo fácil para o indivíduo motivado.

4) Falta, ao Curso de Física, Memória. Qual o destino de nossos egressos? Eles exercem atividades profissionais compatíveis com a formação? São felizes com o que fazem? Pessoalmente, acompanho o destino profissional e acadêmico de diversos ex-alunos. E posso garantir que muitos deles enfrentam grandes dificuldades profissionais, mesmo entre os mais talentosos. Se a instituição não oferece uma radiografia daqueles que já se formaram, como nossos atuais estudantes podem avaliar o mercado que os aguarda? É imperativa a criação de uma associação de alumni. Um curso superior não se faz pensando-se apenas na colação de grau. A universidade deve estender seus braços para o passado, para que tenha condições de evitar erros no futuro. O fato de nossos calouros imediatamente se jogarem à lama, como forma de celebração pelo ingresso na UFPR, não deve se caracterizar como antecipação de cena sobre seus futuros profissionais.

5) Falta, ao Curso de Física, consistência nos ensinamentos de sala de aula. Se professores do Departamento de Física ensinam a modelar fenômenos físicos a partir de infinitésimos, estão em franco desacordo com o cálculo diferencial e integral lecionado pelo Departamento de Matemática. No cálculo diferencial e integral usual não há infinitésimos. Infinitésimos são um conceito que se encontra muito bem fundamentado na análise não-standard, na qual derivadas e integrais não são definidas a partir de limites. Ou seja: ou aqueles que lecionam física adaptam seu discurso para o cálculo diferencial e integral lecionado pelo Departamento de Matemática, ou o Curso de Física solicita ao DMAT para que o cálculo diferencial e integral seja adaptado para uma abordagem via análise não-standard. Essa falta de consistência apenas alimenta a visão de arbitrariedade que critico no item 1. E tal arbitrariedade está em desacordo com o espírito crítico que sustenta a atividade científica. Outra inconsistência é a insistente afirmação de que vetores são entes ou trecos que têm módulo, direção e sentido. Alguns ainda afirmam que vetores têm também unidade, algo mais difícil de entender. O tal do módulo (ou norma) somente existe nos espaços vetoriais normados ou munidos de produto interno. Não se pode associar a todo e qualquer vetor uma norma ou módulo. Não é assim que se define vetores. Algo análogo se aplica às tais “direção” e “sentido”. Já a “unidade” é falta de qualificação mesmo. Vetores são elementos de espaços vetoriais, os quais são estruturas matemáticas definidas axiomaticamente. Mesmo em física, o discurso do módulo-direção-sentido não se mostra coerente. No caso da mecânica quântica, por exemplo, o formalismo canônico se faz via casos especiais de espaços de Hilbert, os quais são espaços vetoriais complexos de funções. Qual é a direção e o sentido de uma função-de-onda que descreve o estado de um sistema quântico? Qual o significado físico disso? Tais considerações são usualmente feitas?

6) Falta, ao Curso de Física, consistência entre a ciência lecionada e a prática de sala de aula. Tema obrigatório para qualquer físico é a teoria dos erros, a qual estabelece bases metodológicas e epistemológicas para processos de mensuração. No entanto, quando um docente avalia um aluno, em geral ignora o fato de que tal processo de avaliação é também um processo de medição; medição de conhecimento. Isso se reflete na prática da reprovação por décimos de pontos. Físicos, mais do que qualquer um, deveriam determinar a margem de erro em suas avaliações. Se não o fazem e reprovam alunos sem o uso desse fundamental critério, estão simplesmente dizendo que ciência é algo bonito no papel, mas não realizável na prática. Isso apenas estimula uma visão idealista e dogmática que acaba por se afastar da atividade científica.

7) Falta formação matemática no Curso de Física. Quatro horas semanais de cálculo é pouco. Na verdade, é indecentemente pouco. Não há a possibilidade de os alunos amadurecerem ideias. Também não é possível demonstrar uma série de teoremas, por conta do pouco tempo disponível. No que se refere à álgebra linear (que os discentes carinhosa, mas equivocadamente, chamam de álgebra), a Coordenação deve exigir pelo menos o domínio do teorema espectral, tão fundamental em mecânica quântica. Para isso, uma carga horária maior também se faz necessária. Já o cálculo numérico deve contemplar métodos de integração que se referem a soluções aproximadas de equações diferenciais, algo que na prática não acontece. Não acredito que exista algum físico que discorde dessa necessidade. Mas a grande surpresa na formação matemática dos alunos do Curso de Física é a falta de uma disciplina obrigatória sobre teoria de grupos. Eu gostaria de saber como é possível uma visão abrangente e madura sobre física teórica, sem o reconhecimento do emprego de teoria de grupos. Este tópico não deveria ser optativo, mas obrigatório. Afinal, como comparar os princípios de invariância de teorias relativísticas (como o eletromagnetismo) com as não-relativísticas (como a mecânica clássica)? A base de tapa?

Os temas brevemente tratados acima são por demais extensos para serem discutidos em um só documento por uma só pessoa. Por isso espero suscitar a necessidade de discussões sérias para o melhoramento deste curso, cuja taxa de evasão já se tornou uma tradição que não se questiona mais. No entanto, jamais fez parte do espírito científico a credibilidade ao argumento da tradição. Citando Dawkins, recuso-me a aceitar argumentos sustentados na tradição, autoridade e revelação. Se aceitamos a tradição da reprovação em massa, não estamos adotando espírito científico. Se aceitamos a autoridade daquele que impõe sua formação como argumento, não estamos adotando espírito científico. Se aceitamos a revelação de ideias novas, sem bases diagnósticas e racionais, certamente não merecemos ser chamados de universitários.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Matemática, lógica e misticismo


Pitágoras de Samos está entre os pensadores mais antigos de que se tem registro. Foi um grego que viveu mais de dois mil e quinhentos anos atrás. A ele é atribuída uma escola, hoje conhecida como Escola Pitagórica, cujos ensinamentos eram mantidos em absoluto segredo por seus discípulos. O conhecimento da Escola Pitagórica tinha um caráter hermético. Somente os iniciados tinham acesso. Com isso, muitas lendas surgiram sobre este importante pensador pré-socrático que influenciou tantos outros filósofos gregos, como Heráclito, Parmênides e Zenão. Tais lendas conferiam um ar de misticismo em torno de Pitágoras. E o pouco que se sabe hoje sobre ele apenas alimenta a imaginação dos mais afoitos. Pois aquilo que desconhecemos sempre teve um poder de sedução muito maior do que o conhecido. Esta sedução pode ter efeitos indesejáveis, como a mistificação em torno de pessoas e de idéias. Mas é também uma das forças motrizes que impulsiona o desenvolvimento da própria ciência.


Hoje em dia o conhecimento científico, muito modificado e amadurecido desde os tempos do filósofo de Samos, é produzido em grande parte nas instituições acadêmicas, como universidades e centros de pesquisa. Em geral não há regras impostas de sigilo sobre tal conhecimento, com a óbvia excessão de algumas patentes tecnológicas desenvolvidas em outro segmento importante da produção intelectual: empresas (privadas e estatais) e corporações. No entanto, o conhecimento das bases da ciência de hoje está acessível a praticamente quaisquer indivíduos da sociedade através de livros, revistas, internet, instituições de ensino, palestras e documentários.

Não obstante, mesmo o conhecimento científico básico ainda parece ter um forte caráter hermético e, por isso, às vezes ainda é visto de forma um tanto mística. Exemplos disso estão em documentários como O Segredo, Quem Somos Nós e Ponto de Mutação, nos quais uma disciplina como a mecânica quântica é vista como uma ferramenta de auto-ajuda e sob um prisma não-crítico, mas de revelação. O acesso ao conhecimento científico crítico não tem se mostrado tão democrático, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas. Ainda existem porções significativas da população mundial que desconhecem o fato de que a Terra gira em torno do Sol. Isso acontece até mesmo em nações como os Estados Unidos, que contam com a maioria das melhores instituições de ensino superior do mundo. E pouco se sabe, fora de certos círculos do ambiente acadêmico ou de casos específicos de profissionais, sobre inúmeros outros conhecimentos básicos de ciência e seus respectivos impactos sobre o dia-a-dia do cidadão comum.

Parte da população leiga tem acompanhado pela mídia os avanços em ciências biológicas, como aqueles ligados à genética. Décadas atrás, a era nuclear também despertou a atenção do público leigo, dada a invenção da bomba atômica e o desenvolvimento de tecnologias que permitem dominar a energia associada à fusão e fissão de átomos. Mas uma educação fragmentada, sem uma devida contextualização, na qual uma pessoa estuda sobre epidemias e doenças contagiosas, mas pouco sabe sobre matemática, pode servir de base para preocupações descabidas e ações impensadas, como aquelas que passam pela cabeça da personagem fictícia Sofia da postagem anterior. Em parte, a culpa por esta situação reside no fato de que geralmente é muito difícil divulgar matemática ou mesmo educar em matemática, dado o fato de que a matemática quase sempre usa linguagens próprias que não são familiares para a maior parte da população. Quando um geneticista divulga em um jornal ou na televisão alguma descoberta importante em sua área, ele consegue fazer isso usando linguagens naturais, como o português ou o inglês. É claro que há termos técnicos que podem momentaneamente dificultar o entendimento. Mas a consulta a um bom dicionário técnico pode resolver rapidamente essa dificuldade. Isso porque os termos usados por um geneticista têm significado freqüentemente associável ao dia-a-dia do cidadão comum. O conceito de gene pode ser estranho para muitos. No entanto, as pessoas facilmente se identificam com a idéia de que características genéticas podem ser passadas através de gerações, podendo definir aspectos como cor dos olhos e até temperamento. Afinal, com freqüência as pessoas questionam se o recém nascido herdou os traços do pai ou da mãe. E a ideia de que um gene pode ser fisicamente descrito como uma parte fundamental em um ser vivo também apela para a noção de um todo que é formado por partes, algo muito intuitivo diante das experiências pessoais da maioria.

Em matemática isso não acontece de forma tão facilmente perceptível. A matemática faz uso constante de linguagens cujos termos não têm significado concreto e cujas regras gramaticais não são facilmente traduzíveis para um idioma como o português. Um exemplo dramático é o teorema de Banach-Tarski, segundo o qual uma esfera pode ser repartida em, digamos, cinco pedaços, os quais podem ser reagrupados sem deformações e sem que se deixem espaços vazios, de maneira a se formar duas esferas do mesmo tamanho da original. Ninguém espera cortar uma laranja em cinco pedaços e reuni-los de forma a se obter duas laranjas. Isso é contra-intuitivo, e qualquer tentativa prática resultará em fracasso. No entanto, no mundo abstrato da matemática esse resultado é uma conseqüência natural de pressupostos muito intuitivos, os quais ajudam a formular teorias que hoje encontram aplicações em ciências que freqüentemente lidam com o concreto, como a física. Mesmo assim, parte da dificuldade de se compreender intuitivamente um teorema como o de Banach-Tarski reside no fato de que não é correto traduzir o conceito de esfera para algo com o qual estamos acostumados em nosso mundo físico, como uma laranja ou mesmo uma bola de futebol. Esferas, em teorias usuais da matemática, não são arredondadas como bolas no mundo real. Elas não têm forma. Por isso, compreender o conceito de esfera na matemática é algo que demanda um esforço que vai além das intuições desenvolvidas a partir de nossas experiências no dia-a-dia.

Há um ramo do conhecimento científico, mais sensível ainda, que freqüentemente é subestimado ou ignorado pela mídia e, portanto, pela população em geral. É um ramo que é subestimado até mesmo em instituições de ensino fundamental, médio e superior, especialmente em nosso país. É uma área do saber que, apesar de extremamente abstrata, permitiu a concepção e o desenvolvimento dos modernos computadores, utensílios concretos que permitem fazer coisas concretas e extremamente relevantes. É uma área do conhecimento que permitiu e permite profundas e surpreendentes análises sobre os fundamentos, os alicerces, de ciências como a física, a economia, a lingüística, e até mesmo a matemática. Essa área do conhecimento fornece respostas sobre o alcance e os limites do próprio conhecimento científico. É uma área de estudo que tem encontrado aplicações em inteligência artificial, engenharia, medicina e mesmo direito. Este ramo do conhecimento científico se chama lógica.

A lógica, enquanto instrumento que ajuda a entender os fundamentos da matemática, pode ser mais abstrata ainda do que vastos ramos da própria matemática. Um teorema como o de Banach-Tarski é algo que não é possível provar em certos tipos de matemática. Mas é demonstrável em outros tipos. Para diferenciar uma situação da outra, faz-se necessária uma análise aprofundada do que se pode fazer e do que não é realizável no domínio da matemática. Este é um dos objetivos do estudo da lógica e dos fundamentos da matemática.

Existe a idéia comumente divulgada em dicionários, e mesmo em livros usados nas universidades, de que a lógica é um ramo da filosofia ou da matemática que trata das formas de pensamento em geral, como dedução e indução. Entre os tópicos abordados há assuntos como sofismas, silogismos, argumentos, entre outros. Mas essa visão é muito pobre nos dias de hoje. Encarar a lógica como o estudo de formas de pensamento é como tentar visualizar um iceberg, olhando somente para a sombra de sua pequena parte que desponta acima da superfície da água.

Tradicionalmente a lógica nasceu, de fato, como uma disciplina que se ocupa da compreensão de formas de inferência em um discurso, independentemente dos conteúdos de tal discurso. Um tipo de inferência bastante comum, conhecido como um caso especial de silogismo, pode ser descrito da seguinte maneira: se todo A é B e se C é A, então C é B. Por exemplo, se todo homem é mortal e se Pitágoras é homem, então Pitágoras é mortal. Outro exemplo seria o seguinte: se todo satélite natural é feito de queijo suíço e se a lua é um satélite natural, então a lua é feita de queijo suíço. As inferências feitas pelo silogismo são válidas (em um sentido que é tornado rigorosamente preciso pelos lógicos) independentemente do conteúdo do discurso. Não importa se é verdade ou não que a lua é feita de queijo suíço ou se Pitágoras era de fato mortal. O fato é que a partir de premissas como “todo satélite natural é feito de queijo suíço” e “a lua é um satélite natural”, pode-se deduzir que “a lua é feita de queijo suíço”. Pelo menos esse é um tipo de argumento ou dedução que é amplamente usado tanto no dia-a-dia de pessoas comuns que querem simplesmente argumentar em favor de suas ideias, quanto em atividades científicas como a defesa em favor de uma dada teoria. Argumentos desse tipo têm sido usados para nos ajudar a compreender o mundo no qual vivemos. E não são apenas cientistas que querem entender o mundo, mas o homem comum, o leigo, também deseja isso.

Com o passar de milênios, porém, a lógica ampliou seus domínios. É uma característica intrínseca do ser humano a busca por domínios cada vez maiores. O homem sempre gostou de conquistar territórios, seja através de guerras, de colonização, ou de outras iniciativas. A eterna insatisfação do ser humano o faz avançar por territórios e o faz sonhar com conquistas mais ousadas. Hoje em dia se sonha com a conquista do espaço, a colonização da Lua e de Marte, o domínio da fusão nuclear, a manipulação do código genético, o conhecimento dos mistérios da mente humana. A ficção científica, seja na literatura, no cinema ou na televisão, é um retrato parcial e poético dessa necessidade de se ampliar territórios, de se conquistar novos mundos. Um exemplo claro na matemática ocorre na história do desenvolvimento dos números. Grosso modo, o primeiro conjunto numérico a surgir foi o dos números naturais, os quais podem ser usados em processos de contagem, como 0, 1, 2, 3 etc. Era possível somá-los e multiplicá-los. E tais operações são úteis justamente no que se refere a contagem. Dez caixas contendo trinta laranjas, cada, correspondem a um total de trezentas laranjas. Mas não era possível subtraí-los. Isso porque um número natural subtraído de outro nem sempre resulta em um número natural. Quantas frutas correspondem a 10 menos 18? Os matemáticos então estenderam o domínio dos números naturais de modo a incluir números inteiros que admitiam sinais positivos e negativos. E assim veio também a interpretação física da operação 10 menos 18? Isso pode ser entendido como uma dívida de 8 frutas. Neste novo conjunto de números inteiros positivos e negativos é possível subtrair, mas ainda não é possível dividir. Algumas divisões entre números inteiros resultam em inteiros, mas nem todas. Foi então que o novo conjunto dos inteiros foi estendido para o dos números racionais, aqueles que podem ser representados na forma de frações com numerador e denominador inteiros, desde que o denominador seja diferente de zero. Para que fosse possível definir novas operações como raiz quadrada, raiz cúbica e outras, os números racionais acabaram sendo estendidos para os números reais e posteriormente para os números complexos. É claro que a história dos números não foi propriamente linear, como aqui se apresenta. Mas uma possível visão sobre seu desenvolvimento é a operacional, no sentido de se estender operações numéricas. O que diferencia um conjunto numérico de outro são essencialmente as operações que podem ser definidas sobre tais conjuntos. E essas operações são definidas por suas propriedades, hoje comumente conhecidas como axiomas, as quais auxiliaram mais ainda a matemática na conquista de domínios que não comprometem necessariamente com o mundo real. Curiosamente, matemáticos precisam definir operações, entre outros motivos, para que suas ideias sejam melhor aplicáveis ao mundo real, o qual tem exigido modelagens matemáticas cada vez mais elaboradas. Há, portanto, um fascinante emaranhamento entre o abstrato e o real no desenvolvimento de teorias matemáticas.

A lógica, como todo fenômeno social, não escapa à regra de ampliação de domínios. A lógica não é um agente estranho à sociedade. Ela é um fenômeno social. E assim como a proibição de subtração, divisão e outras operações entre números naturais foi uma tentação aos matemáticos para que eles saíssem daquele paraíso natural e invadissem novos territórios como os dos números inteiros, racionais, reais e complexos, as regras da lógica também despertam desconfianças entre pesquisadores. Lógicos querem saber como brincar com as regras, como transgredi-las em novos universos, como explorar esses novos mundos.

Os filósofos, desde a antiguidade, já haviam percebido que certos modos de pensamento poderiam ser formalizados de maneira independente dos conteúdos de um dado discurso. Estes mesmos filósofos começaram a perceber que havia uma distinção entre linguagem e lógica. As linguagens que foram naturalmente desenvolvidas ao longo de eras tinham conteúdo, tinham significado, tinham semântica. Mas a lógica, através de suas inferências, tinha vida própria. Diferentes povos poderiam raciocinar de maneira análoga, não importando o idioma que falam. Matemáticos perceberam que essas formas de pensamento poderiam ser descritas em linguagens artificiais criadas pelos próprios matemáticos, as quais eram, a princípio, desprovidas de significado concreto, de qualquer semântica usual.

Foi quando surgiram as primeiras propostas de algebrização da lógica, ou seja, a idéia de descrever tais formas de pensamento através de uma linguagem conhecida como álgebra. Muitos avanços importantes foram feitos nesse sentido. Mas com o passar do tempo, outros matemáticos começaram a questionar se a lógica não poderia ir além daquelas simples descrições algébricas de formas específicas de raciocínio. A algebrização da lógica parecia refletir, na opinião de alguns, um espírito de sistematização, de procedimentos efetivos, de algoritmos, pelo menos em certas formas de raciocínio. Será que não haveria a esperança de se criar máquinas que, de algum modo, pensassem?

O século 20 foi marcado por uma explosão de descobertas de extrema relevância na lógica. O matemático inglês Alan Turing, que ajudou o exército inglês a decifrar códigos de guerra nazistas, concebeu uma teoria lógico-matemática que descreve com rigor o que é, afinal, uma máquina capaz de executar um algoritmo. Outros pesquisadores propuseram ideias similares. Mas foi a obra de Turing que encontrou maior receptividade, dada a sua simplicidade e alcance. O trabalho abstrato de Turing viabilizou a concepção do primeiro computador eletrônico da história, protótipo dos modernos computadores que hoje se mostram como indispensáveis na sociedade contemporânea. Não importa se a máquina é um PC, um McIntosh, um videogame, um sistema de controle automatizado, um sistema de identificação eletrônica ou um computador de grande porte, a teoria matemática que justifica seu funcionamento e suas limitações é a mesma: aquela concebida na década de 1930 por Alan Turing, na forma de um artigo que não tinha sequer 40 páginas.

É claro que um texto com menos de 40 páginas não pode ser o responsável por toda a teoria da computação. Desenvolvimentos posteriores foram feitos, no sentido de se criar técnicas lógico-matemáticas, bem como novas tecnologias, que permitissem que máquinas reais conseguissem efetivamente realizar cada vez mais operações em cada vez menos tempo. Afinal, recursos tecnológicos e físicos limitados sempre demandam um processo de otimização de gerenciamento e processamento de dados. Mas o fato é que todas essas técnicas se sustentam nas ideias fundamentais de Turing. Todas as técnicas lógicas usadas para melhorar o desempenho de computadores devem estar contextualizadas nas idéias de Alan Turing sobre algoritmos e máquinas, o qual, diga-se, sonhava também com máquinas que pensam.

O impacto do trabalho de Turing é óbvio, tendo em vista que não se concebe o mundo de hoje sem computadores e micro-processadores.

Quando a revista Time fez, na última virada de milênio, a lista dos cem cientistas mais importantes do século 20, havia apenas dois matemáticos presentes. Um deles era Alan Turing. O outro, o austríaco Kurt Gödel. Os dois foram lógicos. A contribuição de Turing foi no estabelecimento de bases para o sistemático desenvolvimento da ciência da computação. Já a contribuição de Gödel foi algo que causou forte impacto na matemática pura.

Gödel ampliou os domínios da lógica de modo a permitir que certas teorias como a aritmética (teoria que fundamenta o abstrato conceito de número natural) pudessem ser estudadas no sentido de se responder quais eram os limites de dedução (inferência) delas. Ele teve que ser criativo, com técnicas de demonstração novas, mas que eram suficientemente razoáveis a ponto de fazer com que matemáticos rapidamente percebessem o impacto daquele resultado. O que, afinal, estava ao alcance de ser demonstrado em teorias como a aritmética? E o que elas definitivamente não poderiam deduzir? É claro que ninguém espera que uma teoria como a aritmética responda a questões sobre o sentido da vida, como cozinhar um ovo ou como ganhar na loteria. Mas o fato perturbador é que Gödel provou a existência de certas fórmulas da aritmética que a própria aritmética não tinha condições de provar ou refutar. Era como uma pessoa não saber o que fazer em um jogo meticulosamente criado por ela mesma. Matemáticos e lógicos conceberam teorias como a aritmética, esperando um comportamento e observando na prática outro.

Hoje em dia, não é apenas a aritmética que é analisada, no que se refere aos seus limites epistemológicos. Outras teorias também passam por testes similares, incluindo aspectos teóricos da física e da economia. O próprio Turing, com seu conceito lógico de algoritmo, já havia percebido a existência de problemas que poderiam ser formulados em uma linguagem adequada para a máquina, mas que não poderiam ser decididos por esta mesma máquina ou por qualquer outra. A matemática, enquanto sonhada por alguns de seus criadores, como uma ciência de deduções, de demonstrações, estava se revelando uma caixa de surpresas. A matemática foi concebida como um ambiente sob pleno controle, que não dependia da experiência para operar bem. E mesmo assim ela conseguiu surpreender com resultados que iam em desencontro ao desejo ou à intuição de muitos de seus criadores. Era como um filho pródigo a surpreender seus genitores, se revoltando contra seus pais. E essa característica, na prática, acaba tornando a lógica um desafio mais atraente ainda. É como se a investigação da lógica tivesse começado como uma investigação sobre formas de se pensar e, a partir de algum momento, ela começou a revelar aspectos até então ignorados sobre essas formas de se pensar, provocando grande perplexidade. Estudar lógica não parece ser uma atividade muito distante do estudo das entranhas do pensamento dos próprios lógicos e, conseqüentemente, do ser humano. Como a lógica tem se refletido de maneira significativa em nosso dia-a-dia, o estudo dela passa a refletir a intimidade de alguns dos processos mentais de todos nós.

Uma outra característica da lógica até a primeira metade do século 20 é que ela não sabia como "administrar" contradições. Na aritmética, por exemplo, é possível provar que 1 + 1 = 2. Mas não é possível provar que 1 + 1 = 3. Pelo contrário, é possível provar que 1 + 1 ≠ 3, o que é a negação da fórmula anterior. Se algum matemático quisesse criar uma nova aritmética na qual fosse possível provar que 1 + 1 = 2 e que 1 + 1 ≠ 2, ele teria um problema muito sério. Isso porque um competente colega poderia facilmente provar que qualquer fórmula desta nova teoria pode ser deduzida, ou seja, provada. Este é um resultado bem conhecido do ponto de vista da lógica clássica, a qual historicamente remonta a uma tradição aristotélica: se uma teoria admitir pelo menos uma fórmula F tal que F é teorema (é demonstrável) e a negação de F também é (isso resulta em uma contradição), então todas as fórmulas da teoria passam a ser teoremas também. E teorias nas quais todas as fórmulas ou afirmações podem ser provadas, não se figuram úteis. Afinal, somente se consagram na comunidade científica e na sociedade as teorias que permitem diferenciar o que é possível daquilo que não é possível. Imagine o leitor, qual seria a utilidade de uma teoria de gravitação que dissesse que os corpos caem sob a ação da gravidade, mas também não caem. Sob o prisma da lógica clássica, contradições apresentam efeitos devastadores sobre teorias inteiras. Uma maneira de se lidar com contradições é evitá-las. Mas mesmo essa postura cria dificuldades, pois em geral não há procedimentos efetivos que garantam que uma teoria qualquer é não-contraditória.

Insatisfeitos com essa restrição, alguns matemáticos pensaram em maneiras de mudar a lógica para permitir que certas contradições possam ocorrer sem que isso implique que todas as afirmações da teoria possam ser demonstradas. Ou seja, insatisfeitos com alguns dos limites da lógica que dominou a matemática até a primeira metade do século 20, alguns matemáticos decidiram ampliar os domínios dessa área do saber. Afinal, toda proibição é tentadora. E, na época, contradições eram de fato uma proibição. O que alguns queriam era uma lógica mais abrangente, que permitisse a existência de certas contradições, sem que isso resultasse em uma teoria que não encontre interesse ou aplicações. Essas lógicas passaram a se chamar de lógicas paraconsistentes e foram essencialmente concebidas pelo brasileiro Newton da Costa. Hoje em dia elas têm encontrado aplicações em diversas áreas da ciência e da tecnologia, demonstrando o impacto que um desafio à tradição pode causar.

A lógica tem se expandido no sentido de esclarecer conceitos até então vagos, como os de argumento, algoritmo e verdade, entre outros. Tem também se expandido no sentido de ser empregada como ferramenta para avaliar os limites de certos ramos do conhecimento científico, como ocorreu nos trabalhos de Gödel. Mas outra forma de expansão da lógica é através de sua penetração em demais áreas do conhecimento, e não apenas na matemática em si ou na ciência da computação.

Em 1900 o matemático alemão David Hilbert, o mais importante de sua época, chamou a atenção para uma lista de vinte e três problemas que ele considerava como sendo de extrema relevância para a futura matemática do século 20. Essa lista é muito famosa, sendo lembrada em livros e artigos especializados até os dias de hoje. Tal lista serviu para nortear muitas pesquisas de ponta realizadas no novo século. Alguns dos problemas de sua lista foram resolvidos por lógicos, dado o caráter das questões. O primeiro problema da lista, por exemplo, dizia respeito a teorias de conjuntos, assunto fundamentalmente lógico. O décimo era sobre equações diofantinas, que são equações definidas no domínio dos números inteiros. Apesar de ser assunto normalmente ligado à álgebra ou teoria dos números, acabou sendo resolvido por técnicas da lógica. Mas o sexto problema da lista tem mais a ver com a penetração da lógica e da matemática em outros domínios do conhecimento científico. Segundo o sexto problema de Hilbert, certas teorias da física poderiam passar por uma sistematização lógico-matemática em moldes parecidos com o tratamento que se dava na época à geometria. Era uma sistematização que Hilbert chamava de axiomatização. Ele sugeriu que certas teorias físicas eram candidatas naturais, como a mecânica e a teoria de probabilidades. A visão vigente sobre probabilidades, até então, era mais voltada ao seu significado intuitivo no mundo real, do que a uma devida fundamentação matemática. Décadas depois um matemático russo chamado Andrei Nicolaevich Kolmogorov conseguiu criar um tratamento lógico-matemático, em moldes parecidos com aqueles sugeridos por Hilbert, que fundamentava o conceito de probabilidade a partir de pouquíssimos princípios, os quais, por sinal, tinham um apelo intuitivo muito forte. Esse sistema é até hoje estudado e usado em áreas como matemática, economia, física, engenharias, geografia, estatística e outras.

Físicos, estatísticos, biólogos e demais profissionais que desenvolvem ou aplicam ciência, precisam de uma sólida base para o conceito de probabilidade. Afinal, a qualidade de seus trabalhos depende disso, para que tais profissionais não tirem conclusões equivocadas no momento em que eles mais precisam do conceito de probabilidade. Mas mesmo o cidadão comum, que apesar de não se tratar de alguém que precise saber o que são probabilidades para seu trabalho ou sua vida pessoal, também deve ter um conhecimento básico, porém sólido, sobre o que é uma probabilidade. Esse tipo de formação básica pode ajudar a evitar mal-entendidos e atitudes impensadas.

O que percebemos nas escolas de nosso país é um atraso significativo para acompanhar os desenvolvimentos da matemática. Conteúdos como biologia, geografia, português, inglês, história e química são constantemente atualizados em livros e apostilas. Mas a matemática ainda é tratada nos ensinos fundamental e médio como um conhecimento que se esgotou séculos atrás, como algo indiscutível e uma verdade inquestionável.
 
A própria visão da essência da matemática em nossas escolas não apenas está desatualizada, como também se apresenta na forma de uma colcha de retalhos com conteúdos não relacionados entre si. Esse tipo de postura é reflexo da falta de transposição de conhecimentos matemáticos hodiernos para uma linguagem acessível às nossas crianças e jovens. Isso porque a cultura matemática da maioria de nossos autores de livros e apostilas de matemática é insípida, preconceituosa e dogmática.
 
Matemática não é misticismo. O mirabolante misticismo de Pitágoras é tão somente uma lenda. A concepção de que o mundo é governado pela matemática é apenas mais um caminho para essa irracional mistificação. Precisamos de uma matemática enquanto exercício de tirocínio crítico e não de doutrinação patrocinada e empreendida por professores e autores ignorantes. E uma forma da encaminhar uma educação dessa natureza é através de uma política educacional meritocrática que premie profissionais do ensino de reconhecida competência.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Histórias e probabilidades


Sofia é uma bela jovem que pratica yoga três vezes por semana, é vegetariana, não fuma e só consome bebida alcoólica com moderação. Um dia ela decide realizar um exame clínico. Sofia leu em um jornal que já surgiram vítimas no mundo inteiro - com um caso no Brasil - de uma nova forma de gripe que é rara, mas pode ser fatal. É uma gripe que tem contaminado uma a cada 10.000 pessoas nos países onde a doença está presente, através de verduras e cereais, os quais são agentes transmissores. Como ela está com uma leve, mas insistente, dor de cabeça, decide fazer uma consulta com sua médica, Dr.a Cassandra.


Cassandra: “Não se preocupe por antecipação, Sofia. Essa gripe é rara, e o teste para diagnóstico é muito seguro. Ele tem um índice de acerto de 99%. Mesmo assim, quero que me mantenha o tempo todo informada sobre quaisquer alterações em seu estado de saúde. Por enquanto não vou receitar coisa alguma para sua dor de cabeça, já que ela nem é tão forte assim. Desse modo poderemos acompanhar o desenvolvimento de eventuais sintomas.”

Sofia: “OK. Quando a senhora diz que o índice de acerto do exame é de 99%, isso quer dizer que em 99% dos casos o teste fornece um resultado verdadeiro, seja positivo ou negativo. É isso?”

Cassandra: “É, é isso mesmo. Somente para uma a cada cem pessoas que o teste erra, dando um falso positivo ou um falso negativo. É o exame que o mundo todo está usando. Vou indicá-la para um laboratório muito bom.”

Sofia faz o exame no laboratório indicado pela médica e o resultado é positivo. Sofia fica seriamente preocupada. Mais que preocupada, ela fica estressada. Já começa a lamentar por não ter uma dieta limitada a massas, pelo menos enquanto a doença não é controlada pela Saúde Pública. Ela percebe que sua dor de cabeça voltou mais forte. Retorna à Dra. Cassandra, a qual a examina e diz que Sofia não tem sintoma algum da gripe, com exceção da dor de cabeça.

Cassandra: “Se você estivesse com o vírus, a essa altura outros sintomas já teriam se desenvolvido. O vírus, uma vez no corpo, provoca alguns dos sintomas mais graves em poucos dias.”

Sofia conversa com um amigo, Pascal, sobre uma possível ação judicial contra o laboratório, por danos morais. Afinal, o estresse que ela sofreu com o falso positivo, prejudicou seu trabalho e sua vida pessoal. Dra. Cassandra diagnosticou a dor de cabeça de Sofia como somatização das excessivas preocupações de Sofia. Já na opinião de Sofia, o Brasil é um país que não conhece direito a nova gripe e, por isso, o laboratório deve ter sido incompetente ao se propor a fazer um exame sobre o qual não estava qualificado a fazer. Afinal, não são tantas as pessoas que fazem esse exame, uma vez que a doença praticamente inexiste no país. Não é possível que justamente com ela o laboratório foi cair na margem de erro do teste, pensou Sofia.

Pascal percebe que Sofia está sendo irracional.

...

Essa história de Sofia é bastante parecida com muitas outras que conhecemos, testemunhamos ou até vivenciamos. Estamos mergulhados em um mundo no qual inúmeras ações e julgamentos admitem margem de erro inerente, como um campeonato de tiro ao alvo, o testemunho de pessoas sobre algum evento supostamente real, exame de DNA para fins de determinação de paternidade ou um diagnóstico médico.

No entanto, mesmo o conhecimento científico básico, como as noções elementares de probabilidade obviamente pouco dominadas pela jovem Sofia, ainda parece ter um forte caráter hermético e, por isso, às vezes ainda é visto de forma um tanto confusa.

...

Pascal explica a Sofia.

Pascal: “Não acho uma boa idéia essa ação na Justiça. O laboratório não foi necessariamente negligente ou incompetente, se seu único argumento é apenas o falso positivo. Se quiser processar o laboratório, precisará de alguma base argumentativa mais sólida. Em primeiro lugar, você sabia que havia a probabilidade de erro na análise. Isso, por si só, já é motivo para repensar qualquer ação judicial. Mesmo assim, você deve ponderar com muito cuidado o que realmente significa uma margem de erro de 1%, em um país como o Brasil, no qual a doença praticamente não existe. Segundo dados internacionais, uma em cada 10.000 pessoas fica contaminada nos países onde a doença se mostra presente, certo? Isso significa que apenas cerca de cem pessoas em cada milhão têm o vírus no corpo, em tais países. E com 1% de probabilidade de erro, o teste aplicado a um milhão de pessoas falhará para cerca de dez mil pessoas, sejam contaminadas ou não. Dessas dez mil pessoas, apenas uma, em média, tem o vírus. Ou seja, cerca de 9.999 pessoas a cada milhão diagnosticado terão falsos positivos. Em um país praticamente livre da doença, como o nosso, o total de falsos positivos pode chegar a dez mil. Ou seja, a proporção de falsos positivos seria maior do que a de falsos negativos. Uma coisa é a probabilidade de o teste dizer que você está com o vírus, quando realmente está. Outra é a probabilidade de você estar com o vírus, quando o teste disser que está. São dois números calculados de formas diferentes. Você precisaria conhecer um pouco sobre probabilidades, antes de emitir julgamentos precipitados. Os mais precisos testes freqüentemente fornecem falsos positivos em populações saudáveis nas quais a doença é muito rara. Por mais preciso que seja um teste, ele é muito mais confiável em populações de risco do que em populações saudáveis, como é o caso do Brasil, que teve apenas um registro oficial de pessoa contaminada. De maneira análoga, testemunhos idôneos sobre eventos raros são muito menos confiáveis do que testemunhos sobre fenômenos comuns, ainda que fornecidos pelas mesmas pessoas; assim como as chances de um profissional do tiro se destacar entre amigos não-profissionais são muito maiores do que as chances de ele se destacar entre outros profissionais do tiro. Margens de erro em testemunhos de cidadãos idôneos jamais podem ser avaliadas separadamente da probabilidade de real ocorrência do evento testemunhado. Por isso, se um indivíduo confiável diz ter avistado no céu uma nave extraterrestre ou a Virgem Maria, fica muito difícil considerar tal testemunho como realmente confiável, uma vez que não se conhece a probabilidade de real ocorrência de eventos como esses. Isso é muito diferente da confiabilidade de um testemunho de assalto ou assassinato, eventos cujas probabilidades de ocorrência são mais ou menos conhecidas. Margens de erro em diagnósticos jamais podem ser avaliadas separadamente da probabilidade de incidência real de doenças. Você, Sofia, foi vítima de um falso positivo em um país no qual a tal da gripe é raríssima.”

...
Se Sofia entendeu os argumentos de Pascal, deixo isso a cargo do leitor. Para tanto basta se colocar no lugar dela. Ou seja, coloco o leitor no papel de Sofia.

Se Sofia pensar somente em termos de probabilidade de erro de diagnóstico de apenas 1%, ela pode ainda insistir que as chances de erro de exame laboratorial extrapolam o fato de que justamente com ela o exame foi falhar. Como no Brasil não há acompanhamento estatístico sistemático de erros médicos e laboratoriais, qualquer sensação de desconforto pode facilmente se transformar em paranóia. No entanto, se Sofia perceber que teoria de probabilidades não é um luxo intelectual, mas que encontra aplicações fundamentais na vida diária de todos nós, ela poderá compreender que um processo judicial com base em seu raciocínio anterior só pode causar danos a todos os envolvidos.

Em teoria das decisões sabe-se que a boa decisão não é aquela que gera bons resultados, mas aquela que foi tomada em bases racionais. Se uma loteria, por exemplo, paga um milhão de reais para cada real investido, mas com probabilidades de acerto de apenas uma a cada cinqüenta milhões de tentativas, percebe-se que jogar em loteria não é uma boa decisão. Mesmo que um apostador ganhe o tão sonhado prêmio, ainda foi uma decisão ruim. E, na prática, todos os apostadores tomam decisões ruins. Daí o ditado “a casa sempre vence.” Ou seja, o fato de ocasionalmente haver ganhadores de prêmios de loterias apenas alimenta o sonho irracional de ficar milionário do dia para a noite, fazendo com que milhões de apostadores tomem decisões com bases emocionais e não racionais. Um governo federal que alimente tal sistema não apenas está iludindo seu próprio povo, como está em franco desencontro àquilo que deveria ser ensinado nas escolas de maneira ostensiva e competente: teoria de probabilidades.

Para o leitor deste blog que estiver interessado em uma abordagem suave, mas altamente precisa e profunda do uso de probabilidades no dia-a-dia, recomendo o livro de Ian Hacking, An Introduction to Probability and Inductive Logic (Cambridge, Cambridge University Press, 2001).

Teoria de probabilidades é assunto extremamente complicado e demanda conhecimento profundo de matemática. No entanto, a obra de Hacking consegue viabilizar noções elementares, úteis e aprofundadas mesmo para o leitor com pouca familiaridade em matemática. A transposição competente de teoria de probabilidades para o ensino médio ainda não aconteceu de forma sistemática em nosso país. No entanto, noções precisas e úteis sobre probabilidades deveriam ser lecionadas em nossas escolas para que tenhamos chances de contar com novas gerações de cidadãos mais independentes, críticos e capazes de construir um país melhor.