Fale Sobre Você


A partir da data de hoje (16 de janeiro de 2015) o blog Matemática e Sociedade adquire novo formato. Depoimentos pessoais de alunos, professores ou demais pessoas envolvidas direta ou indiretamente com educação, serão divulgados nesta nova página: Fale Sobre Você. Um dos objetivos é concentrar postagens informativas na página principal deste fórum, mantendo espaço exclusivo para aqueles que desejam expor experiências pessoais de sucesso, fracasso e luta no ensino brasileiro. Para contribuir com esta página, procure contato com o administrador em adonai@ufpr.br.

Para iniciar, segue abaixo o primeiro depoimento pessoal desta nova fase. A autora discute sobre o passado recente da Universidade Estadual do Piauí. No entanto, o depoimento abaixo não perdeu atualidade. Para conferir, basta ver o estado atual desta instituição

Desejo a todos uma leitura crítica.
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Crônica Inacabada de uma Estudante
de Jéssica Lira Viana
16 de janeiro de 2015

Sou Jéssica Lira Viana, Bióloga pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) com mestrado em Biologia Vegetal pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Compartilhando minhas experiências, espero que este texto possa inspirar estudantes e que não seja apenas um desabafo meu. Atualmente moro em Recife, Pernambuco, mas sou de uma cidade litorânea ao norte do estado do Piauí, Parnaíba, conhecida por ser a porta de entrada do único delta em todas as Américas que deságua em mar aberto (Delta do Parnaíba). 

Refletir sobre a vida é uma atividade muito útil que faz uma grande diferença, principalmente quando se precisa tomar uma decisão ou fazer uma escolha. Enquanto pensava sobre o que escreveria neste texto, lembrei de coisas vividas durante minha meninice. Não tinha notado que pescar, caçar sapos, procurar por pedras esquisitas e falar com plantas fossem coisas que estavam tão relacionadas com a minha escolha por Biologia. Foi uma escolha feliz apesar de todas as limitações do curso que realizei. Em 2009, ao fim da graduação, tornei-me parte da “elite” brasileira que compõe os 7,9% da população com nível superior completo (IBGE – censo 2010). 

Durante a graduação na UESPI, concentrei esforços para desenvolver habilidades no ensino, na pesquisa e no raciocínio no ambiente acadêmico. Foi uma tarefa difícil devido às condições de infraestrutura, financeiras e educacionais da instituição. Esta, criada em 1991 como uma instituição superior multicampi, deu existência também ao campus da cidade de Parnaíba, onde me formei. Mesmo quase quinze anos depois de sua criação, pouco havia avançado. Investimentos eram escassos. Com isso, muitos setores sofriam privações. A questão financeira sempre foi uma dura realidade na instituição. O laboratório é um bom exemplo disso. Em Biologia são cruciais práticas laboratoriais para disciplinas de Botânica, Zoologia e Bioquímica, dentre outras. O laboratório contava com itens bem particulares para a realização de práticas, como reagentes químicos expirados, os quais punham a saúde de professores e estudantes em risco. Em Biologia Molecular (estudo do DNA, suas estruturas e funções, bem como produtos e expressões), procedimentos e/ou protocolos de extração de DNA ficaram só na imaginação, pois havia carência até mesmo de materiais adequados de multimídias.

Enfim, problemas financeiros, educacionais e de infraestrutura são os pilares de outros problemas. Mesmo com a biblioteca defasada ou laboratórios pouco eficientes, não deixei de aproveitar o máximo que poderia, pois o fato de entrar em uma faculdade não assegura o êxito profissional e educacional de ninguém. O voluntariado como assistente de laboratório para os cursos de Botânica permitiu que eu tivesse minha primeira experiência em ensino. 

Professores qualificados são um dos principais recursos que uma universidade pode oferecer, além de serem parte significativa numa Instituição de Ensino Superior (IES). Quase 80% dos meus professores foram substitutos na minha época. Esta situação pode trazer muitas implicações para estudantes, assim como para a instituição, implicando, por exemplo, em evasão escolar. Hoje o quadro de professores efetivos aumentou. Na verdade começou a mudar durante o meu último ano. Tivemos até alguns docentes doutores de São Paulo e Rio de Janeiro que buscavam espaço para desenvolver suas carreiras nas universidades do Piauí. Mas muitos dos meus professores foram ex-alunos da própria instituição, que se formaram dois anos antes de mim e tinham apenas uma Especialização em Ensino Superior. Não é fácil saber que seus colegas seriam seus professores no próximo semestre.

Na sequência dos fatos, o próximo passo para progredir na educação universitária, foi dado fora dela. Estágio é fundamental durante a graduação. Vi muitas vantagens em realizar um estágio não-remunerado em uma unidade de serviço público – a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SEMAR). O órgão não contava com muitos recursos, e todas as atividades desenvolvidas através de projetos (como palestras, oficinas temáticas e participação na organização de eventos regionais, como aqueles que requerem a ação participativa da comunidade em decisões de planejamento) foram imprescindíveis para entender como funciona toda essa maquinaria. Havia bastante entusiasmo em mim para realizar todas essas atividades. O único problema foi que não havia qualquer ajuda financeira e o transporte, principalmente, ficava por minha conta. Lá aprendi sobre leis, sobre o processo de licenciamento ambiental e todas as suas implicações para o meio ambiente, e a dificuldade de lidar com gente em relação ao meio ambiente. A contundente tensão dos embargos e as viagens foram memoráveis. O importante de tudo isso foi que este estágio me fez enxergar a importância de encontrar soluções para os problemas ambientais e a testemunhar os problemas causados por distúrbios no ambiente. 

Embora tenham sido muitos os motivos para ocorrer evasão, e apesar de eu ter pintado uma paisagem não muito simpática da minha universidade, considero-me uma boa profissional, mas principalmente porque fiz da busca pessoal pelo conhecimento parte essencial do meu aprendizado e formação. Finalmente, durante meu último ano, comecei a lecionar biologia no ensino médio, uma posição obtida através de um processo de seleção do governo. Por dois anos, este trabalho permitiu melhorar minhas habilidades e aumentar a minha confiança sobre o ensino. 

Como professora de jovens no primeiro ano, muitos quase com a minha idade, percebi que eu era inspiração para uns e uma coitada para outros. Mas o mundo é mesmo cheio de opiniões. No início eu sentia que poderia ser um agente de mudança, sentia que tinha essa força, tanto ensinando biologia como incentivando meus alunos. Mas à medida em que as dificuldades foram surgindo, concebi que essas dificuldades advinham de entraves complexos no sistema educacional em si e que isso era maior do que a minha mera determinação. Presenciei alguns absurdos como o fato dos próprios alunos terem que pagar pela fotocópia de suas próprias provas. Cheguei a cobrar dez centavos por prova por aluno, em duas ocasiões. Depois resolvi tirar de meu próprio salário o dinheiro que a escola pedia. Havia alunos muito pobres que às vezes não dispunham de dinheiro nem mesmo para uma passagem de ônibus, e tinham que faltar à aula. Tive alunos estudiosos, desinteressados e medíocres. Um em particular, faltava bastante às aulas e às provas, não era participativo e por várias vezes fugia da escola. Eu o reprovei. Mesmo assim, quando já havia fechado todos os diários de classe e encerrado minhas atividades da escola, o diretor foi até a minha casa, pedir para que eu solicitasse uma atividade domiciliar para esse aluno. Ou seja, eu estava sendo obrigada a aprová-lo. No decurso do segundo ano, fui professora de adultos com mais de trinta anos em uma escola com muitos problemas de gerenciamento. As aulas eram à noite e a escuridão permitia que os alunos levassem drogas para a escola, como álcool e cigarros. Até onde pude perceber, tudo era ignorado. No final das contas, o importante era que todos os alunos passassem de ano e assim a escola poderia receber a verba do próximo ano por isso.

Na graduação só faltava agora trabalhar com pesquisa. Em um momento oportuno, desenvolvi pesquisa de iniciação científica com Botânica, estudando o estrato herbáceo e subarbustivo das fisionomias de Campo Limpo do Cerrado do Parque Nacional de Sete Cidades. Foi apaixonante e decisivo na escolha da minha futura linha de pesquisa. Os resultados foram reportados em seminários regionais, onde havia também a troca de conhecimento entre estudantes e professores. Todas essas experiências na graduação e o interesse em estudar plantas me convenceram a continuar meus estudos e querer ir além.

Em busca de um mestrado mudei-me para Recife. Foi necessário passar por duas seleções: uma em 2008 pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e outra em 2009 pela UFPE, na qual obtive êxito. Deveras, o fato de eu não conseguir o mestrado na primeira tentativa reside na velha prática cultural brasileira de "cartas marcadas". Vãs serão minhas palavras ao tentar explicar essa prática que ocorre oculta e frequentemente em muitas outras pós-graduações de universidades brasileiras, enquanto que na UFPE passei por um processo mais justo.

Em qualquer mestrado acadêmico, o objetivo principal é treinar estudantes para a pesquisa, como também prepará-los para lecionar em faculdades e universidades. Aprendi bastante durante a realização de disciplinas e com os processos em si de realizar pesquisa (coleta e análises de dados, apresentação de resultados, redação de artigos etc.). Em minha perspectiva o mestrado foi uma extensão da graduação, visto que o processo de aprender a fazer ciência é extenso e não é compreendido por completo durante a graduação. Apesar de haver bolsas de iniciação científica, estas têm como finalidade despertar a vocação científica e incentivar talentos potenciais entre estudantes de graduação, de acordo com o CNPq. A experiência vivida durante o mestrado implica em expressivas consequências na vida de muitos estudantes como, por exemplo, o reconhecimento como autor de artigos pelos colegas e, também em meu particular caso, a aproximação com uma língua estrangeira. 

Durante esta fase o inglês é essencial. Eu sempre soube que o seria para a vida acadêmica. Por causa da minha falta de educação em inglês cedo na vida, tive algumas dificuldades durante o mestrado. Mas foi só depois de um estonteante drama durante uma disciplina chamada “Relação planta-abelhas”, que o gatilho estalou em minha consciência e me apressei para obter proficiência na língua. O professor desta disciplina era um alemão que vive no Brasil há mais de vinte anos. Todos os seus alunos participaram da disciplina, além de um estudante alemão estagiando em seu laboratório. Todos falavam inglês, exceto eu. Então as aulas foram em três idiomas: inglês, alemão, e português, apenas por minha causa. O professor peguntou: “Você fala Inglês?” Respondi que não e ele replicou:  “O que está esperando para começar agora?”. Além disso ele me deixava sozinha com o estudante alemão, mas a comunicação entre nós se fazia pelo simples método de comunicação mundial, a mímica. Creio que foi a maior vergonha que já passei em toda minha vida.

Começar a estudar inglês aos 24 anos é um grande embaraço. A não adaptação às invariáveis metodologias de ensino dos cursos de inglês fez deste processo algo pior. Desenvolvi minha própria metodologia e isso foi decisivo para que eu pudesse saber como melhor aprenderia. O Brasil é um país que não fala inglês. A percentagem de pessoas que falam inglês é de apenas 5%, de acordo com o British Council. Não há incentivos para o estudo da língua nas escolas além daquilo que está programado nos parâmetros escolares. Depois do vexame que sofri e com a intenção de estudar no exterior, passei um tempo, após o meu mestrado, viajando para o exterior a fim de melhorar minha proficiência em inglês e espanhol.

Agora mesmo estou no meio de um processo de seleção para uma bolsa de PhD no exterior. As tentativas aqui no Brasil foram frustrantes. Cheguei a trocar e-mail como alguns professores, no entanto, não participei de nenhuma seleção, com o temor de que a mesma ameça ocorrida na primeira tentativa no mestrado viesse custar o meu tempo, expectativa e dinheiro. Embora mais complicado, pelo menos para não-nativos, o processo em universidades fora do Brasil parece-me mais sensato, livre de recomendações inapropriadas. Quero deixar claro que acredito que existem muitas pós-graduações sérias no Brasil, mas a corrupção é uma cultura no país. Não querendo me deparar mais com situações como essas e imaginado que uma experiência fora de casa será de grande valor, estou tentando um doutorado no exterior.

Um doutorado seria valioso para mim de diversas maneiras. Com o grau de doutor, terei a oportunidade de trabalhar na academia e adquirir o conhecimento e treinamento necessários para me tornar um pesquisador autônomo, capaz de coletar dados, formar meu próprio grupo de pesquisa, construir conexões com outros pesquisadores e contribuir para a melhoria da pesquisa no Brasil. Estou ansiosa para saber o resultado desta empreitada e poder construir esta nova fase em minha carreira. Acho que isso é tudo. Obrigada!

2 comentários:

  1. Parabéns Jessica! Pela sua coragem e determinaçao. Seu depoimento eh o retrato da educaçao no nosso Pais. Poucos recursos e muito esforço pessoal.

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