domingo, 29 de março de 2015

O gênio da multidão


Três anos atrás reproduzi neste blog trechos da poesia Estupidez, do brasileiro Lars Eriksen, um poeta pouco conhecido em nossas terras, mas um ser humano que transformou profundamente a realidade brasileira e, principalmente, mundial. 


José Galisi Filho, poucas horas atrás, fez um comentário via Facebook, no qual cita uma poesia do alemão (naturalizado norte-americano) Charles Bukowski. Preciso reproduzir aqui tradução do extraordinário texto de Bukowski. Espero que o leitor faça bom proveito.

O gênio da multidão
de Charles Bukowski

Existe suficiente má fé, ódio, violência e absurdo no ser humano médio para abastecer qualquer exército em qualquer dia

E os melhores no assassinato são aqueles que pregam contra ele
E os melhores no ódio são aqueles que pregam o amor
E os melhores na guerra - finalmente - são aqueles que pregam a paz

Aqueles que pregam deus, precisam de deus
Aqueles que pregam paz, não têm paz
Aqueles que pregam paz, não têm amor

Cuidado com os pregadores
Cuidado com os conhecedores
Cuidado com aqueles que sempre leem livros
Cuidado com aqueles que detestam a pobreza
Ou são orgulhosos dela

Cuidado com aqueles que são rápidos para louvar
Pois eles precisam de louvor em troca
Cuidado com aqueles que são rápidos para censurar
Eles temem aquilo que não sabem
Cuidado com aqueles que buscam multidões
Porque eles nada são sozinhos
Cuidado com o homem médio e a mulher média
Cuidado com o seu amor, seu amor é médio
Busca o mediano

Mas existe genialidade em seu ódio
Existe genialidade suficiente em seu ódio para matar você
Para matar qualquer um
Não desejando solidão
Não entendendo solidão
Eles tentarão destruir tudo
Que for diferente do que sabem
Não sendo capazes de criar arte
Eles não entenderão arte
Eles considerarão seu fracasso como criadores
Apenas como um fracasso do mundo
Não sendo capazes de amar plenamente
Eles acreditarão que seu amor é incompleto
E então eles terão ódio de você
E seu ódio será perfeito

Como um brilhante diamante 
Como uma faca
Como uma montanha
Como um tigre
Como cicuta

Sua melhor arte

sábado, 28 de março de 2015

Paulo Freire e a matemática do oprimido


Recentemente um amigo meu mencionou a respeito de uma tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP), sobre a influência de Paulo Freire e Ubiratan D'Ambrosio na formação do professor de matemática no Brasil. Na tese defende-se que "os atuais processos de formação de professor de matemática ainda são fortemente sedimentados numa formação alienada aos ditames de uma sociedade de classes, que não permite ao futuro professor compreender e fazer uso da necessária autonomia inerente à sua atuação, o que o faz atuar como um intelectual orgânico a serviço da consolidação da hegemonia da classe dominante." 

Pois bem. Nesta postagem foco exclusivamente na influência de Paulo Freire sobre a educação brasileira, com ênfase na matemática. Sobre a obra de D'Ambrosio pretendo discutir em outro momento, apesar de haver importantes pontos em comum entre ambos os autores. 

Paulo Freire foi, sem dúvida alguma, um educador e um pensador. Não foi uma pessoa que apenas teorizava a respeito de educação, mas alguém que efetivamente alfabetizou, um indivíduo que fez a diferença em nosso país e fora dele. Além disso, sua extensa obra sobre educação o projetou internacionalmente, como um nome respeitável. 

No entanto, não podemos ignorar a exagerada, deturpada e aparentemente doentia veneração que existe em nosso país, quando o nome de Paulo Freire é lembrado. 

O livro mais famoso de Freire é Pedagogia do Oprimido, com dezenas de milhares de citações, tanto do texto original quanto de suas traduções para inglês, espanhol e hebraico. Neste texto Freire faz uma intrincada discussão sobre reflexos sociais e individuais de relações entre (socialmente) oprimidos e opressores. Seu foco é o processo educacional, o qual é um poderoso agente que pode ser usado tanto para exercer mudanças sociais como para simplesmente manter aquilo que muitos chamam de status quo

Antes de discutirmos de maneira mais detalhada algumas das teses de Freire, é importante esclarecer dois pontos comumente ignorados em nossa nação:

1) Freire deixa claro que Pedagogia do Oprimido é um aprofundamento de discussões promovidas em seu livro Educação Como Prática da Liberdade. No entanto, também deixa claro que o tema abordado é amplo, e que sua obra deve ser entendida como mera introdução

2) Freire também deixa claro que suas teses defendidas em Pedagogia do Oprimido são o resultado de simples observações feitas no Brasil e, posteriormente, no Chile, durante seu período de exílio político. Ou seja, ele não se sustentou em estudos científicos ou filosóficos para qualificar, por exemplo, como é possível "roubar a humanidade" de alguém. Neste sentido Freire combina, em seu livro, pensamento crítico, sobre o que observou, com uma visão pessoal (e, portanto, restrita às suas próprias limitações) sobre humanidade. 

Já chamei atenção, recentemente, para falhas graves de Jean Piaget, quando este importante pensador suíço afirmou que crianças são incapazes de pensar sobre o pensar. Por que Piaget errou? Porque pessoas, por mais inteligentes que sejam, estão sempre sujeitas ao auto-engano. Até mesmo a NASA já foi (coletivamente) vítima do auto-engano, resultando em uma das maiores tragédias da história da exploração do espaço.

Como o nome de Paulo Freire está fortemente associado a marcantes ideologias políticas, o auto-engano se torna ainda mais provável. É neste momento que boas ideias e discussões pertinentes passam a ser possíveis referências para visões preguiçosas e distorcidas sobre sociedade e educação. 

Assim como Piaget, Paulo Freire foi um precursor. Mas suas palavras não devem, em hipótese alguma, ser consideradas como conclusivas. 

O livro em questão, de Paulo Freire, pode ser facilmente interpretado como uma visão dicotômica da sociedade, dividindo-a em duas classes: opressores e oprimidos. Os opressores são violentos (podendo exercer violência até mesmo de forma mascarada por uma falsa generosidade) e os oprimidos temem a liberdade (não poderá a consciência crítica conduzir à desordem?). Esta é a leitura mais usual da obra de Freire. Exemplo disso é a tese acima citada, no primeiro parágrafo. 

No entanto, há uma outra maneira de ler Pedagogia do Oprimido. A relação entre opressor e oprimido, para Paulo Freire, é de notável riqueza. Segundo o próprio autor, "o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos."

Este é um ponto importantíssimo que Freire detalha em várias passagens do livro. 

A aparente dicotomia opressor-oprimido de Freire pode ser entendida como um ponto de partida para despertar atenção, um simbolismo, uma inspiração para apenas iniciar análises críticas sobre o espírito humano e a repercussão deste sobre a sociedade. Caso contrário, a leitura da obra de Freire se torna uma mera caricatura social. Isso porque existe uma riqueza fenomenal de classes sociais em nosso país, que não se reduzem a apenas duas. E isso se deve, em parte, ao fato de que o Brasil se insere em uma realidade maior do que ele próprio, chamada de mundo

Aqueles que estudam em escolas consideradas de elite em nosso país, não fazem parte de qualquer elite mundial. Tanto é verdade que há inúmeros exemplos de conteúdos matemáticos estudados de forma fragmentada e até errada em livros, apostilas e sala de aula, independentemente de classe social. Exemplos são encontrados em trigonometria, cálculo diferencial e integral, aritmética elementar, lógica e até história da matemática, entre muitos outros. Em nossas universidades há também uma resistência aparentemente intransponível para que professores estrangeiros possam lecionar em inglês. E como aprender matemática sem conhecimentos básicos de inglês? 

Esta semana houve um show em Porto Alegre, RS, de Jack White. Todos os milhares de fãs que acompanharam a apresentação do mestre de cerimônias dispensaram o tradutor. Eram mais de três mil jovens que reagiam instantaneamente à apresentação feita em inglês. Houve momento em que o tradutor se sentiu deslocado, pois todos ali entendiam o que era dito. Por que isso? Porque os fãs de Jack White são realmente fãs. Procuram entender toda a cultura associada à sua imagem artística e não apenas as músicas. É uma questão de motivação. Uma matemática lecionada de forma fragmentada e dogmática (com persistentes erros que causam uma desagradável impressão de arbitrariedade) é uma matemática que não motiva pessoa alguma. E se não há motivação, por que conhecer a cultura matemática mundial? Por que conhecer, por exemplo, inglês?

A condição de opressão, ressaltada por Paulo Freire, somente pode ser combatida, segundo ele mesmo, com a busca pela liberdade. O oprimido de Freire é uma pessoa sem liberdade. Porém, o autor ressalta que o medo da liberdade (comum ao oprimido) não apenas pode manter seu estado social de oprimido como pode, também, conduzi-lo a pretender ser um opressor. E este é um ponto que educadores, professores e pedagogos simplesmente não demonstram entender, quando o objetivo é discutir educação matemática. Isso porque a essência da matemática radica em sua liberdade. E essas palavras não são minhas, mas de Georg Cantor, o criador da teoria de conjuntos. Teoria de conjuntos é provavelmente a teoria mais massacrada pela ignorância de nossos educadores, professores e pedagogos. A prática mostra que a contagiante ignorância de nossos educadores é sim uma opressão contra o espírito livre da matemática. Consequentemente, é uma opressão sobre praticamente todos os inúmeros segmentos sociais de nosso país. Do ponto de vista da educação matemática, o Brasil inteiro é um estado oprimido por ele mesmo. Uma instituição como o IMPA não é um segmento social. É apenas uma instituição que luta para construir um segmento social.

Freire não conhecia matemática. E nem precisava. Mas se educadores pretendem aplicar ideias de Freire no ensino e na educação matemática de nosso país, certamente precisam conhecer muito bem esta área do saber. Caso contrário, estarão desrespeitando o espírito livre defendido pelo próprio Freire, como forma de combate à opressão. Matemática não é aquilo que se ensina em nossas escolas.

Ignorância é um agente de opressão. Mas um agente muito pior é a ilusão de conhecimento, a qual assola nosso país, especialmente as universidades. 

Cito um exemplo de ilusão de conhecimento no próprio livro de Freire. Segundo ele, "Quem melhor, que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão?"

A primeira pergunta, de caráter retórico, sugere que o oprimido está melhor qualificado para compreender o significado de uma sociedade opressora. Isso, claro, é falso. Afinal, o oprimido de Freire pode ser facilmente compreendido como um ignorante, uma pessoa praticamente cega diante de questões sociais, educacionais, culturais, artísticas, científicas, religiosas, históricas. 

Já a segunda pergunta sugere que o oprimido sente de forma mais marcante os efeitos da opressão. Isso sim faz sentido. Afinal, uma pessoa com câncer sente os sintomas de sua doença. Mas isso não a qualifica para compreender o que exatamente é o câncer que invade o seu corpo. 

Freire defende um diálogo crítico e libertador com os oprimidos. Analogamente, um médico deve conversar com seu paciente, para melhor diagnosticá-lo. Mas não pode se limitar ao diálogo. Precisa de muito mais do que uma simples conversa. O médico precisa de ciência do mais alto nível para poder tratar o paciente.

Por um lado, cabe ao oprimido a busca pela liberdade sugerida por Freire. E, por outro, cabe ao opressor o real estímulo à liberdade de todos os segmentos sociais, começando pela sua própria. 

A ilusão que ameaça nosso sistema educacional e, particularmente, o ensino de matemática, é a crença de que noções superficiais sobre sociedade bastam para escrever teses e gritar em favor de movimentos políticos ingênuos e frequentemente mal intencionados. 

Estudemos Paulo Freire sim. Mas filtremos o que ele diz. E, mais importante, avancemos o que ele começou. 

É bem sabido que o conhecimento científico não é ainda acessível de forma democrática, seja no Brasil ou no mundo. Isso porque a indústria de periódicos científicos movimenta bilhões de dólares ao ano, sendo altamente lucrativa. É contra esse tipo de problema que devemos todos lutar. Não importa se uma pessoa estuda mecatrônica na USP ou separação silábica em uma aldeia no meio da floresta amazônica, todos devem ter acesso ao conhecimento. 

Pedagogia matemática sem matemática? Não, por favor. Isso não é conhecimento. 

terça-feira, 24 de março de 2015

Arte no UniBrasil


Recentemente visitei as instalações do UniBrasil, um centro universitário de Curitiba, Paraná, que, no próximo mês, estará completando quinze anos de existência. E a primeira coisa que me despertou real atenção foi a presença de muitas esculturas e quadros permanentemente expostos em diferentes locais do campus
Óleo sobre tela, de Isael M. Caetano

Acompanhado pela professora Adriane Mazola Russ, recém contratada por aquela instituição, conversei com algumas pessoas no local e fui muito bem recebido. Expliquei que administro um blog sobre ciência e educação, com ênfase em matemática e suas relações com a sociedade, e pedi para publicar uma entrevista sobre esta exposição permanente de obras de arte.

Por intermédio de Jane Maria Ribeiro, Secretária da Presidência do UniBrasil, entrevistei a professora Wanda Camargo, assessora da Presidência do UniBrasil e coordenadora de vários projetos culturais naquela instituição. Camargo é professora aposentada da Universidade Federal do Paraná, onde atuou como docente de graduação e de pós-graduação, bem como representante da classe de professores adjuntos no Conselho de Administração, entre outras funções. 
Pintura em seda, de Andréa Castor Kraemer

Quando visitei a Universidade Stanford, no período de 1995-1996, um dos aspectos que mais se destacava no campus era a exposição permanente de esculturas do francês Auguste Rodin, incluindo O Pensador, Os Burgueses de Calais e Os Portões do Inferno. Quaisquer visitantes podem passear livremente entre dezenas de esculturas de bronze, de um dos mais consagrados artistas da história. 

Essas esculturas de Rodin existem principalmente por conta de doações de Bernard Gerald Cantor, um filantropo conhecido por estimular as artes visuais. 

Stanford é uma instituição com mais de 120 anos. UniBrasil ainda está começando. Mesmo assim dá um belo exemplo que deveria ser seguido por outras instituições de ensino superior de nosso país: o estímulo às artes.
Óleo sobre tela, de Cássio Mello

Com obras de artistas que já fizeram exposições fora do Brasil (incluindo o continente europeu), bem como nomes ainda pouco conhecidos, o UniBrasil faz questão de expor e manter um número crescente de obras de arte que podem ser contempladas por quaisquer pessoas, sejam estudantes, professores, funcionários ou meros visitantes. Por enquanto são 26 artistas* com obras expostas no campus. 

Seguem abaixo as perguntas feitas pelo blog Matemática e Sociedade (MeS), bem como as respectivas respostas da professora Wanda Camargo.

MeS: Por que o UniBrasil expõe permanentemente quadros e esculturas em seu campus? Quando essa iniciativa começou?

Camargo: Obras de arte, no acervo da instituição, estão presentes desde o primeiro mês de sua existência, em abril do ano 2000. Cultura é parte inerente da formação universitária. Educação para a arte se faz essencialmente pela inserção das obras artísticas no dia a dia, de tal forma que pensar a instituição seja também pensar a arte.

MeS: Quais são os artistas cujas obras fazem parte deste acervo? Qual é o critério na escolha dos artistas e das obras?

Camargo: Uma boa representação dos artistas paranaenses é indispensável, e em particular dos curitibanos.

MeS: Há alguma iniciativa de restauração de obras expostas?

Camargo: Sim, já está em curso, por exemplo, a restauração de duas esculturas externas, pois, embora embelezem o campus, sempre existe um desgaste natural de obras expostas ao tempo. Já realizamos também algumas restaurações de quadros, pois embora guardados em ambientes internos, periodicamente é necessária uma revisão do estado geral.

MeS: Qual é a receptividade de estudantes, professores e funcionários do UniBrasil a essas obras?

Camargo: Interessante hoje é a requisição de obras para cada novo ambiente da instituição. Ao abrir nova unidade, já não basta enviar mesas, cadeiras, computadores... funcionários e professores solicitam quadros e/ou esculturas!

É como se o “padrão UniBrasil” não pudesse ser mantido sem esta providência. O aluno as encontra em ambientes internos e externos, portanto, fazem parte da paisagem cotidiana.

MeS: O UniBrasil conta com alguma meta, em relação a futuras obras de arte a serem adquiridas e expostas?

Camargo: O sonho é vir a ter muito mais pintores e escultores aqui representados, acompanhando o crescimento da instituição. Representantes de várias técnicas, como pintura em seda, em tela, gravuras e aquarelas, esculturas em mármore, metais diversos, estão no campus, mas é importante mostrar outras, como exemplos da criatividade regional.

MeS: Como o UniBrasil percebe as relações entre arte, vida acadêmica e sociedade?

Camargo: Todas as formas artísticas são valorizadas como parte inerente da formação para a cidadania e a completa formação profissional. As diferentes formas de expressão – vários projetos desenvolvidos, como o Acordes UniBrasil, que traz música para o campus, apresentações teatrais, espetáculos operísticos, palestras com grandes pensadores no UniBrasil Futuro e Academia UniBrasil, e vários outros, além das atividades extensionistas – todas colaboram para com a inserção do estudante na cultura brasileira.
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*Artistas com obras expostas: Ana Procopiak, Andréia Castor Kraemer, Carlos Novaes, Carlus Lisboa, Cássio Mello, Ciro Vidal, Claudia Dias, Clècius Coser, Constância Nery, Erico da Silva, Isael M. Caetano, Lélia Brown, Louise Lobo Kulig, Luciano Corel Corbellini, N. Cordeiro, Nelson Padrella, Otávio Gomide, Paula L. Schmidlin, Pineni Piaci Moaraes, Reginaldo Carvalho, Robson Krieger, Rubens Esmanhotto, Rui Casaril, Rui Castro, Seto – Seishin Koten, Sônia Maria de Mello.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Autoconhecimento e auto-ilusão


Desde a filosofia de René Descartes até estudos neurológicos sobre a formação de falsas memórias, passando pelos estudos pioneiros de Sigmund Freud, filósofos, psicólogos, psicanalistas, neurologistas e demais pesquisadores têm se dedicado a estudos sobre autoconhecimento e auto-ilusão. E o surpreendente é que pouco consenso existe sobre esses temas. 

Nesta postagem quero colocar em discussão o que hoje se sabe sobre autoconhecimento e auto-ilusão. E quero aproveitar para discutir sobre relações naturais entre autoconhecimento e auto-ilusão e fenômenos sociais bem conhecidos: educação, ciência e até tecnologia.

A maioria dos filósofos faz uma distinção entre autoconhecimento e conhecimento a respeito do mundo externo a nós mesmos. Autoconhecimento usualmente se refere ao conhecimento que uma pessoa tem a respeito de seus próprios estados mentais, incluindo crenças, desejos, emoções e sensações em geral. No entanto, não parece haver acordo sobre como se adquire autoconhecimento. Alguns dos mais conhecidos modelos para explicar a aquisição de autoconhecimento são a observação não mediada de Descartes, o sentido interior de Locke, o modelo de transparência de Dretske, o modelo de racionalidade (em suas diferentes formas), bem como demais propostas. Para uma revisão dos principais modelos recomendo a leitura deste link

Associada à definição de autoconhecimento existe inevitavelmente o conceito de auto-ilusão. Em linhas gerais, auto-ilusão (ou auto-engano) é a aquisição e manutenção de uma crença - mesmo diante de fortes evidências contrárias - motivada por desejos ou emoções. No entanto, filósofos não conseguem decidir de forma unânime se o processo de auto-ilusão é voluntário ou não, ou sequer se o indivíduo auto-iludido é moralmente responsável por suas crenças. Uma vez que auto-ilusão pode tornar uma pessoa estranha para ela mesma e cegá-la quanto às suas falhas morais, o tema é naturalmente de grande importância, não apenas filosófica, mas também psicológica e até mesmo social. 

YouGov, por exemplo, é uma empresa de pesquisa de mercado que promove inúmeras avaliações de opinião pública, com escritórios espalhados em diferentes partes do mundo. Em uma pesquisa recentemente divulgada, YouGov apontou que 55% da população dos EUA se considera mais esperta do que a média. Como já foi dito por alguns, o norte-americano médio se considera mais inteligente do que o norte-americano médio. Esta é uma evidência muito forte de que a auto-ilusão é um fenômeno bastante comum. 

E mais preocupante ainda é o fato de que existem estudos sistemáticos sobre auto-ilusão coletiva mas não sobre autoconhecimento coletivo. Uma vez que a auto-ilusão coletiva se refere a grupos de auto-iludidos semelhantes entre si ou até mesmo a coletividades que se auto-enganam, fica aqui a sugestão de que ilusões coletivas são mais prováveis de ocorrer do que o compartilhamento de um mesmo auto-conhecimento. E isso faz muito sentido. Por quê? Porque o processo de autoconhecimento é individual. Cada pessoa deve ter um conhecimento único a respeito de seus próprios processos mentais. No entanto, uma mentira (ou ilusão) certamente pode ser compartilhada por coletividades, como a crença dominante do povo norte-americano de que cada um (em média) é mais inteligente do que a média. 

Neste contexto, quais são as relações entre autoconhecimento e o conhecimento a respeito do mundo externo a nós mesmos? Bem, se uma pessoa se considera mais inteligente do que outros, existe a tendência natural de ignorar opiniões ou até mesmo conhecimentos daqueles tidos como menos inteligentes. 

Um exemplo interessante de auto-ilusão coletiva é relatado por Robert Trivers, neste artigo. O autor argumenta que a auto-ilusão de um indivíduo pode estimular a ilusão em outras pessoas. E coloca a própria NASA (Agência Espacial Americana) como vítima deste processo. Segundo Trivers, foi o auto-engano institucional da NASA que levou à falha de avaliar com precisão os riscos de uma peça de vedação responsável pela tragédia do ônibus espacial Challenger, em 1986.

Um dos possíveis ingredientes para o fomento de auto-ilusão coletiva é lealdade. É justamente a lealdade de um grupo de indivíduos, perante seu líder, que pode desenvolver uma mesma postura coletiva de auto-engano. E indivíduos desprovidos de autoconhecimento estão naturalmente mais sujeitos à auto-ilusão. 

Em outras palavras, apesar de filósofos estabelecerem que autoconhecimento e o conhecimento sobre o mundo externo a nós mesmos sejam de natureza distinta, isso não impede relações íntimas entre ambas as formas de conhecimento. Afinal, por que uma pessoa acredita em uma teoria científica? Existe justificativa independente de seus estados mentais? Questões semelhantes podem ser feitas sobre crenças religiosas ou até mesmo políticas. Por que uma pessoa confia (ou não confia) no governo federal? Essa confiança (ou desconfiança) é decorrente de justificativas independentes de seus estados mentais? Aquele que crê em algo conhece seus estados mentais, bem como aquilo que os estimula?

Em diferentes partes do mundo tem surgido a crescente preocupação com o papel da universidade perante a sociedade. Há aqueles que defendem que universidades estão ensinando jovens no que pensar e não como pensar. Até mesmo nos Estados Unidos já se percebe a formação de ativistas em universidades, no lugar de acadêmicos. Como distanciar o ativismo político do auto-engano coletivo?

No Brasil jovens estão sendo tratados cada vez mais como criaturas frágeis, delicadas, incapazes de qualquer forma de autonomia. Exemplo marcante são as faculdades particulares que promovem reuniões de pais e mestres. Essa fragilidade pode ser assimilada por gerações inteiras de maneira muito rápida. É um auto-engano coletivo sustentado por comodidade garantida pelos pais desses jovens, os quais também demonstram sinais de auto-ilusão. 

Como evitar o auto-engano coletivo? A verdade é que ninguém sabe. Mas não pensar sobre essas questões e não discuti-las abertamente, sem dúvida, é uma péssima ideia. 

domingo, 22 de março de 2015

Confissões de um boçal


Recentemente um comentarista neste blog (o qual não quis se identificar) criticou certas afirmações frequentes que faço. Este comentarista, entre outras coisas, critica quando afirmo que o brasileiro é um boçal (pessoa ignorante, rude, grosseira) e que o Brasil não faria falta ao mundo se sumisse do mapa. É claro que muitos brasileiros fizeram grande diferença, com considerável projeção internacional. Exemplos são encontrados nas artes (Heitor Villa-Lobos, Cândido Portinari, entre outros), nas ciências (Carlos Chagas, Newton da Costa, entre outros) e até na tecnologia (Alberto Santos Dumont, Alfredo Moser, entre outros). Mas esses nomes, em geral, conquistaram projeção internacional apesar de terem vivido e trabalhado em nossas terras e não por conta disso. Brasil é um país que não faz questão de dizer ao mundo: "Oi, estamos aqui!" Faz parte da cultura irlandesa, por exemplo, mostrar ao mundo quem foi James Joyce. Já o Brasil faz questão de não lembrar de Peter Medawar, nosso único ganhador do Prêmio Nobel.

O mesmo comentarista acima mencionado perguntou, então, se sou um boçal e se meu eventual desaparecimento faria falta ao mundo. Segue abaixo a minha resposta.

Sim. Nasci um boçal e cresci como um. E, sim. Se eu sumisse agora, minha falta não seria sentida perante o mundo.

Apesar de não ser de minha natureza expor aspectos de caráter pessoal em público, escrevo esta postagem para responder a uma questão que é natural: motivação. Ninguém discursa enfaticamente sobre educação, ciência e cultura se não houver uma motivação. E motivação é algo de caráter inevitavelmente pessoal. Pois bem. Segue abaixo o meu caso específico. 

Apesar de ter nascido em São Paulo (SP), desde a infância vivo em Curitiba (PR). Cheguei a Curitiba na época em que esta cidade tinha 600 mil habitantes. Morei em um bairro marcado por valetas a céu aberto e vizinhos praticamente sem escolaridade. Do lado esquerdo de minha casa morava um policial macumbeiro que adorava esfaquear porcos no quintal de seu lar, fazendo-os gritar e sofrer por muito tempo. Do lado direito morava um rapaz que matava ratazanas dentro do forno do fogão de sua avó. As ratazanas eram capturadas das valetas. E na frente vivia uma mulher que, pontualmente, no final da tarde, gritava com o filho, chamando-o de fdp. 

Meus pais estimulavam muito a leitura. Por conta disso tive meus primeiros contatos com livros de medicina, astronomia, matemática, tecnologia, história mundial e idiomas estrangeiros (inglês e alemão). No entanto, em função de idiossincrasias que prefiro não detalhar, vivi também em um ambiente socialmente muito isolado e dominado por radicais crenças místicas e políticas. Do ponto de vista político, fui criado sob o discurso de que comunismo é sinônimo de estupidez, socialismo é comunismo cor-de-rosa, e que o nazismo só não funcionou porque Hitler foi ambicioso demais. Ouvi muitas vezes a frase "Um dia Hitler será considerado um dos maiores gênios da história." Já do ponto de vista místico fui criado por Rosacruzes que acreditavam que o verdadeiro conhecimento somente é possível através de uma visão esotérica de mundo. Ciência era considerada algo bacana e importante. Mas somente o místico poderia alcançar a suposta sabedoria suprema. 

Diante deste quadro li integralmente todas as edições disponíveis da revista Planeta, um periódico frequentemente dedicado a histórias fantásticas sobre extraterrestres, fantasmas, lobisomens, vampiros e até fadas, narradas como reportagens jornalísticas. Li vários livros de Peter Kolosimo e Erik von Däniken, nomes hoje associados à pseudo-arqueologia, mas cultuados por milhões, décadas atrás.

Bertrand Russell, Platão e Kant eram apenas nomes conhecidos. Nada além disso. Russell, principalmente, mais parecia um velho rabugento do que alguém que tivesse algo importante a dizer.

No entanto, foi justamente em uma edição da revista Planeta que tive meu primeiro contato com a biografia de Nikola Tesla. E aquilo me fascinou muito mais do que qualquer experiência mística ou convicção política. Eu estava, naquele momento, diante de uma breve biografia sobre alguém que efetivamente mudou o mundo, alguém que ajudou a definir o século 20. 

A simples ideia de transformar o mundo era algo que me fascinava. Sem dúvida, Hitler mudou o mundo. Mas a mudança que ele implementou foi uma ideologia. E foi uma ideologia responsável pela morte de milhões. Mas foi uma ideologia que somente se sustentou a partir dela mesma e não do contato com a realidade. Tesla também tinha ideologias. Mas suas ideologias eram sustentadas por aquilo que a própria realidade parece oferecer. Tesla sonhava com eletricidade. Ele queria conhecer a eletricidade. E conheceu. E, em função disso, viabilizou o sistema de distribuição de energia elétrica até hoje empregado no mundo todo. É mais fácil uma pessoa entender o bom uso da eletricidade do que o bom uso do nazismo. 

Mas eu não tinha ideia de por onde começar. Montei laboratórios de eletricidade e de química em um pequeno quarto, a partir do pouco conhecimento que estava à minha disposição. Com tentativas e erros, desenvolvi um telescópio de projeção que permitia acompanhar a dinâmica de manchas solares. O resultado foi uma insolação que me deixou na cama durante uma semana. Mas aproveitei este momento para ler sobre as pirâmides do Egito e descobrir a constante áurea. 

Durante meu ensino médio eu estava determinado a ingressar em uma universidade. Em Curitiba, naquela época, havia apenas duas opções: Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Universidade Católica do Paraná (não era Pontifícia ainda). Por conta do isolamento social que vivi, nem se cogitava a possibilidade de fazer uma graduação fora de Curitiba. A UFPR era a única instituição gratuita de ensino superior e, portanto, acessível para os padrões financeiros de minha família. Eu estava em dúvida entre medicina e matemática. Decidi que medicina era uma ideia ruim, pois eu queria uma carreira na qual eu tivesse liberdade de escolha sobre horário de trabalho. 

Cursei Licenciatura em Matemática, na UFPR. Mas, com apenas duas exceções, tive professores sem compromisso algum com pesquisa. E o que eu queria era ser um pesquisador, alguém que construísse algo relevante. 

Ao término da graduação, iniciei o Mestrado em Física, novamente na UFPR. Tive a sorte de encontrar um prolongado período de greve naquela instituição. Isso porque eu tinha considerável dificuldade para acompanhar o estudo das disciplinas exigidas. Usei o período de greve para estudar. A Licenciatura em Matemática, que fiz, era pouco exigente. 

Durante o mestrado publiquei meu primeiro artigo, em parceria com meu orientador, Germano Bruno Afonso. No entanto, sem a pressão de meu orientador, eu jamais teria conseguido chegar aos resultados alcançados. Faltava em mim a mais importante característica necessária para um pesquisador: autonomia. 

Por que eu não tinha autonomia intelectual? A resposta é simples. Porque eu era um boçal. Autonomia de pensamento é algo que deve ser conquistado muito cedo. O tempo estava passando, e a tal da autonomia simplesmente não surgia. Faltava um lampejo, uma fagulha, uma luz de criatividade. 

Criatividade é a capacidade de lidar com contradições. Eu vivia em uma realidade dominada por certezas (fossem místicas, políticas ou até científicas). E como criar ciência se eu ainda assumisse o preconceito de que a ciência oferece respostas? 

Quando concluí o mestrado, senti-me um vencedor. Senti-me como uma pessoa que tinha vencido o isolamento social e cultural da Curitiba dos anos 1970, para ingressar no amplo mundo da ciência que avançava para o século 21. Afinal, meu primeiro artigo foi escrito em inglês. E inglês, achava eu, era o idioma que o mundo lia. No entanto, ignorei o fato de que não basta escrever em inglês. É necessário escrever algo relevante em inglês. 

Ao iniciar o doutorado, na Universidade de São Paulo, tive contato direto com Newton da Costa e seu grupo interdisciplinar de pesquisa. Esta experiência foi avassaladora. Foi quando percebi que todo o empenho que tive até então era algo simplesmente insignificante. Eu achava ter vencido minha boçalidade, mas ficou claro naquele grupo que este não era o caso. Voltei a ser um boçal, pior do que nunca. Eu desconhecia por completo noções extremamente elementares sobre ciência e até mesmo cultura em geral. Fazer matemática ou física de alto nível não se resumia a fazer contas complicadas. Era necessária uma visão científica, algo que definitivamente eu não tinha. E visão científica nada tem a ver com o compartilhamento de ideias científicas, com pessoas dividindo a mesma opinião. Se eu falasse A, Newton da Costa respondia convincentemente que a verdade era a negação de A. Se eu falasse a negação de A, Newton da Costa respondia de maneira mais convincente ainda que a resposta era A. E se eu falasse que poderia ser A ou a negação de A, ouvia uma inesperada resposta B. O que se aprende com Newton da Costa é jamais repetir o que ele afirma ou defende, mas a desenvolver sua própria visão científica. E a única maneira de alcançar isso é se submetendo a duras críticas, botando a cara para bater. Quanto mais violenta for a pancada contra as suas crenças, mais se aprende que elas não passam de meras crenças. 

Durante meu pós-doutorado em Stanford, publiquei meu primeiro artigo solo. Apresentei os resultados deste trabalho em um congresso internacional na Itália. Conquistei minha tão sonhada autonomia. Mas deixei de ser um boçal? Não. Por quê? Porque ainda faltava algo, algo realmente importante. Faltava real relevância no que eu fazia.

Ao longo de minha carreira descobri que publicar artigos científicos em periódicos de alto nível é algo perfeitamente possível de ser realizado, mesmo para uma pessoa que cresceu entre valetas e ideologias nazistas e místicas, lendo sobre deuses-astronautas e fadas que enganaram Arthur Conan Doyle. Aprendi que publicar em periódicos de alto nível é hoje algo até fácil. Era impossível na minha juventude, mas hoje é algo realista. No entanto, o perigo reside justamente na satisfação com tão pouco. Onde está a relevância?

Vários artigos meus são citados por pesquisadores de diferentes cantos do globo, em diferentes idiomas. Deixei de ser um boçal? Não.

Hoje tenho 50 anos de idade. A história mostra claramente que as grandes conquistas científicas são feitas por jovens. Portanto, a chance de que eu faça algo relevante a esta altura fica, a cada dia, mais remota. No entanto, não consigo desistir. É teimosia pura e simples, herdada de minha primeira leitura sobre a vida e a obra de Nikola Tesla, o transformador. 

Pedi meu desligamento do Programa de Pós-Graduação em Matemática da UFPR, como professor colaborador, por perceber que eu estava caindo na rotina da publicação pela publicação. Uma vez que se aprende a publicar em bons periódicos científicos, é muito fácil o profissional se deixar seduzir pela comodidade da rotina: publicar para receber bolsas de pesquisa e receber bolsas de pesquisa para continuar publicando. Para piorar a situação, colegas estavam colocando meu nome em artigos nos quais não colaborei. Faz parte da cultura acadêmica de nosso país um pernicioso corporativismo, no qual publicações são multiplicadas a partir de amizades e coleguismos. E, estranhamente, essa prática se faz presente até mesmo entre pessoas bem intencionadas. É uma espécie de corrupção ingênua, mas muito arraigada na vida acadêmica (incluindo instituições estrangeiras). Mas ciência não se promove a partir da rotina e política. E o fato é que a realidade acadêmica brasileira está dominada por uma rotina burocrática com pouca sintonia com o desenvolvimento da ciência que transforma o mundo. 

Passei décadas me dedicando ao estudo de física teórica e fundamentos da física. Não consegui os resultados desejados. O que fiz, então? Decidi mudar minha estratégia. Uma vez que não posso fugir do fato de que já tenho 50 anos de idade, decidi pelo rejuvenescimento intelectual. E há alguns anos tenho me dedicado cada vez mais ao estudo de linguística, assunto muito novo para mim. Tenho um projeto de pesquisa nesta área, que iniciei com o filósofo brasileiro Otávio Bueno e que acabou assimilando posteriormente contribuições de Newton da Costa. É um projeto audacioso e que tem encontrado dificuldade de aceitação entre linguistas. Mas é uma proposta realmente nova, na qual se assume que a semântica de uma linguagem é mais fundamental do que a sintática. Essa tese contrasta fortemente com a visão dominante de linguistas do mundo todo. Mas o que temos a perder? De meu lado, nada se perde, em caso de fracasso. Afinal, não estou mais sujeito às normas de órgãos de fomento à pesquisa de nosso país. Seria irresponsabilidade minha impor a um aluno de mestrado ou doutorado um projeto desses, justamente porque alunos de pós-graduação esperam poder concluir com sucesso os cursos que fazem. E não há garantia de sucesso algum neste projeto que desenvolvo. 

Já tive alunos que pediram para ajudá-los a publicar artigos em bons periódicos. Sempre foi possível atender a esses pedidos. Mas qual é a garantia de relevância científica para um projeto com data marcada de apresentação?

Resumidamente, sou ainda um boçal. Mas sou um boçal que ainda luta contra a própria ignorância, contra a própria irrelevância, contra a falta de sintonia com um mundo que vai muito além da UFPR, muito além do Brasil e muito além de minhas limitações humanas.

Quando acuso o povo brasileiro de ser boçal, não tenho a intenção de ofender pessoas. Tenho a intenção de apenas expor um fato. Sem o reconhecimento dessa boçalidade, jamais haverá motivação para mudanças construtivas. 

O que está em jogo não são resultados, mas atitudes. Eventualmente a atitude do claro inconformismo com a própria boçalidade pode trazer resultados realmente bons para o Brasil e para o mundo. Mas certamente o conformismo com a própria boçalidade (que se traduz com uma ilusão da pessoa consigo mesma) jamais trará qualquer resultado remotamente importante.

Em nossas terras fala-se muito de elites intelectuais. Pois bem. Essas elites não são reais, elas não existem. O que existe são estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam. Quem se vê como membro de elite intelectual, deve repensar seu papel perante a sociedade. O intelectual não é uma pessoa que realizou conquistas no domínio das ciências ou das artes, mas alguém que permanentemente busca por essas realizações. 

quinta-feira, 19 de março de 2015

O que você realmente sabe?


Alguma vez você jogou Vish? Quer jogar?

Em seu famoso livro Science: Sense and Nonsense, o matemático dublinense John Lighton Synge descreve um fascinante jogo chamado Vish (abreviação para "círculo vicioso" em inglês). O jogo consiste em encontrar círculos viciosos no significado de palavras dicionarizadas. Vejamos o exemplo da palavra "homem".

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, "homem" é "mamífero da ordem dos primatas [...] caracterizado por ter cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis, inteligência dotada da faculdade de abstração e generalização, e capacidade para produzir linguagem articulada". 

De acordo com o mesmo dicionário, "primata" é "ordem de mamíferos que compreende o homem, os macacos, os lêmures e formas relacionadas". Ou seja, "homem" foi definido a partir de "primata" e "primata" a partir de "homem". Temos assim uma circularidade. Já "linguagem" (termo usado na definição de homem) é colocada como "meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais", sendo que "signos" é plural de "signo" que, por sua vez, é sinônimo de "símbolo". "Símbolo", entre outras coisas, é uma "palavra ou imagem que designa outro objeto ou qualidade". E "palavra" é "unidade da língua escrita", sendo que "língua escrita" é uma "representação de natureza visual de uma língua". "Língua", por sua vez, é um "sistema de representação constituído por palavras". Nova circularidade! Ou seja, temos circularidades dentro de circularidades. 

Não é surpresa que um dicionário apresente circularidades para qualificar o significado de palavras e demais expressões. Afinal, dicionários devem qualificar o significado e o emprego de palavras, usando como referência as próprias palavras. Como linguagens naturais contam com uma quantia limitada de palavras e não adotam metodologias rigorosas de semântica, circularidades são simplesmente inevitáveis. E isso gera uma limitação cognitiva. Não é possível conhecer significados de palavras a partir de dicionários.

É neste momento que entram a matemática, a filosofia e a própria linguística.

Uma solução encontrada por filósofos para qualificar o significado de certos termos linguísticos é a noção de definição ostensiva. Filósofos reconheceram que o significado de certos termos empregados em linguagem natural não pode ser qualificado a partir da própria linguagem. Definições ostensivas se aplicam em inúmeras situações como, por exemplo, na qualificação de cores. Para qualificar o conceito de "vermelho" aponta-se objetos que são vermelhos. Definições ostensivas são dadas através de exemplos sensoriais. Tratam-se de uma correspondência entre linguagem e mundo real. Naturalmente, definições ostensivas apresentam consideráveis limitações cognitivas. Afinal, não são raros os exemplos de pessoas que não conseguem concordar entre si sobre a identificação de uma dada cor. Qualquer processo de generalização a partir de exemplos somente pode ser feito de forma indutiva e não dedutiva. Logo, sempre há riscos de múltiplas visões sobre um mesmo conceito definido ostensivamente.

Outra solução encontrada por filósofos é a definição operacional. Percy Williams Bridgman foi um físico que exerceu um papel filosófico importante ao propor definições operacionais em física. Segundo o operacionalismo de Bridgman, todo conceito é sinônimo de um conjunto de operações. E ele teve a pretensão de aplicar este princípio até mesmo em condições coloquiais, não necessariamente comprometidas com física teórica ou experimental. O peso de um objeto, por exemplo, é o número que aparece em uma balança quando este objeto é colocado sobre ela. Ou seja, uma operação é realizada (colocar um objeto sobre uma balança) para qualificar um conceito que se expressa linguisticamente (peso). As críticas às ideias de Bridgman são inúmeras, apontando diversas limitações em sua visão. Detalhes podem ser vistos aqui. Resumidamente, definições operacionais não esclarecem todo e qualquer significado.

Matemáticos adotaram uma estratégia muito diferente. Como matemáticos desenvolvem ideias sem compromisso com o mundo real, eles não poderiam seguir exemplos inspirados em problemas semânticos de linguagens naturais. Foi então que desenvolveram linguagens próprias, chamadas de linguagens formais. Em parceria com o método axiomático, linguagens formais são usadas de modo a se admitir que certos conceitos não são definidos e sequer definíveis, em contextos muito específicos. O significado intuitivo de conceitos não definíveis fica marcado pelas relações existentes entre esses conceitos através de axiomas (postulados).

Um dos problemas dessa estratégia é o fato de que o conceito de linguagem formal não pode ser qualificado a partir da própria linguagem formal, sem cair no velho problema da circularidade. Na prática, o que se faz é qualificar linguagem formal a partir de uma linguagem natural, como ocorre, por exemplo, no livro de Mendelson (página 34). Logo, essa estratégia fragiliza o alcance cognitivo de teorias formais. Sobre o que, afinal, estamos falando quando empregamos linguagens formais?

Outro problema do emprego de linguagens formais é o seu descomprometimento com o mundo real. No entanto, surpreendentemente as linguagens formais da matemática têm sido muito bem sucedidas para modelar fenômenos do mundo real, incluindo até mesmo linguagens naturais. Um exemplo é a teoria semântica de Richard Montague. Montague usa lógicas de ordem superior para explicar semântica em linguagens naturais. Resumidamente, usando linguagem natural para definir linguagem formal, emprega-se linguagem formal para compreender linguagem natural. Divertido, não?

Mas linguistas nem sempre apreciam o emprego de matemática. Muitos preferem visões diferentes, como aquelas que estabelecem de forma intuitiva relações entre semântica, sintática e pragmática. Semântica se refere ao estudo do significado de palavras. Sintática trata da maneira como palavras são ordenadas para formar frases e sentenças. E pragmática se refere ao estudo de contextos sociais nos quais palavras, frases e sentenças são usadas na prática e como esses contextos alteram significados. Para linguistas, não há como conhecer semântica sem levar em conta sintática e pragmática. No entanto, contextos sociais são muito variados, mesmo entre povos que supostamente compartilham a mesma língua. Portanto, temos novamente uma limitação cognitiva na compreensão sobre o que, afinal de contas, realmente sabemos, principalmente quando tentamos expor nossos conhecimentos através de linguagens naturais. 

Ou seja, se você entendeu o que está escrito nesta postagem, possivelmente compreendeu algo muito diferente do que eu gostaria de dizer. Mas será que eu sei o que eu gostaria de dizer?

terça-feira, 17 de março de 2015

Matemática Angelical


Em 1946 um beduíno encontrou, por acaso, sete pergaminhos dentro de jarras escondidas em uma caverna em Qumran, a cerca de dois quilômetros da margem noroeste do Mar Morto, no Oriente Médio. Após passarem por muitas mãos de leigos curiosos e comerciantes céticos, em 1947 esses manuscritos finalmente chegaram ao arqueólogo John C. Trever, o qual rapidamente percebeu a fenomenal importância daquela descoberta. No entanto, a instabilidade política da região dificultou muito a busca por mais manuscritos. Foi somente em 1949 que escavações sistemáticas começaram a ser feitas em Qumran. O resultado foi assombroso. Mais de 900 manuscritos em hebraico, aramaico e grego foram encontrados em onze cavernas em Qumran. São documentos do período que compreende o século 2 a.C. até o primeiro século da Era Cristã. 

Esses textos são de incalculável valor histórico, religioso e linguístico, pois eles revelam trechos da Bíblia Hebraica, bem como registros de costumes e considerável diversidade de pensamentos religiosos da época. 

Nesta biblioteca digital o leitor pode ter acesso a imagens de milhares de fragmentos dos manuscritos do Mar Morto, incluindo as mais antigas cópias conhecidas de textos bíblicos. 

Mas nesta postagem me concentro apenas nos manuscritos 4Q208 e 4Q209. O número 4 nessa codificação se refere ao fato de que tais manuscritos foram encontrados na Caverna 4 de Qumran. 

Neste artigo de Helen R. Jacobus, publicado no ano passado em Mediterranean Archaeology and Archaeometry, a autora defende uma tese muito interessante. Segundo ela, os relógios de sol zodiacais que floresceram na cultura greco-romana entre os séculos 2 a.C. e 2 d.C. demonstram coincidências conceituais com um calendário zodiacal lunissolar identificado nos manuscritos 4Q208 e 4Q209. E um dos aspectos mais interessantes sobre o manuscrito 4Q208 reside nos diversos pontos de semelhança com o Livro de Enoch. 

Apesar de não fazer parte do cânone hebraico ou cristão (Enoch é apenas citado no Novo Testamento), a Igreja Ortodoxa Etíope reconhece o Livro de Enoch como um dos componentes bíblicos. Mas cristãos em geral assumem que esta obra carece de inspiração divina. 

No entanto, o fato é que esta escritura apresenta uma estrutura mitológica muito complexa, na qual se apresenta Enoch como um receptor de mensagens angelicais sobre magia, cosmologia, astronomia, astrologia e... um calendário. Sim, o arcanjo Uriel teria revelado um calendário a Enoch! E este calendário é sustentado por um sistema de doze "portões" celestiais. Apesar de ser praticamente unânime a visão de que esses "portões" celestiais nada têm a ver com os doze signos do zodíaco da cultura greco-romana, Jacobus insiste nesta tese a partir de evidências encontradas nos manuscritos de Qumran, os quais serviriam de ponte de ligação entre o Livro de Enoch e a cultura greco-romana. 

Apesar do caráter inevitavelmente especulativo do trabalho de Jacobus, há nestes estudos algumas informações importantes, que podem ajudar a compreender as origens históricas da própria matemática.

Se existe alguma ordem matemática no mundo real, esta é uma questão ainda em aberto. Mas o fato é que o ser humano tem buscado encontrar padrões matemáticos no ambiente em que vive. E os registros mais antigos desta busca por padrões matemáticos se confundem com o nascimento da astronomia, da astrologia e da religião. 

Na Idade Média a astrologia era levada muito a sério por alguns estudiosos respeitados no continente europeu. Até mesmo Johannes Kepler chegou a ganhar dinheiro fazendo horóscopo para pessoas ricas (uma curiosa maneira para manter seus estudos de astronomia). 

Hoje se sabe que astrologia carece completamente de qualquer fundamentação racional. E também se sabe que religião e ciência são atividades culturais distintas demais para se pensar seriamente em um caráter científico amplo o bastante para abranger todos os aspectos religiosos ou em uma visão teológica abrangente o bastante para abraçar toda a ciência. No entanto, é muito difícil negar a contribuição da religião para o desenvolvimento dos primeiros passos históricos da matemática.

Matemática se desenvolve a partir de processos de abstração. E anjos, arcanjos e Deus parecem ter um caráter tão intangível quanto as abstrações da matemática. E essa intangibilidade é algo que fascina a humanidade há milênios. É como a cena final do filme A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud. Após monumentais batalhas do personagem principal, para simplesmente sobreviver, ele então descansa ao lado da amada e sonha com a Lua. É a mesma Lua que inspirou aqueles que tentaram compreender o mundo em que vivem, seja por ações divinas ou pela identificação de padrões matemáticos. Assumir que esses padrões matemáticos foram revelados por um arcanjo é simplesmente reconhecer que eles são belos demais para serem concebidos por um limitado e imperfeito ser humano. Ou seja, esta pode ser entendida como uma postura de humildade perante a própria matemática. De tão bela, somente um arcanjo poderia revelá-la.

Não há mais sentido na veneração da matemática, confundindo-a com uma manifestação divina. Mas é ainda natural para um matemático perceber que este ramo do conhecimento age como um ser vivo, de caráter intangível. Se não fosse assim, não haveria como a matemática ainda surpreender mesmo o mais experiente profissional. E quem surpreende, demonstra vida, seja divina ou não. 

segunda-feira, 16 de março de 2015

Usando matemática para combater fanatismo


George Santayana é um dos nomes mais importantes da filosofia da primeira metade do século 20. O foco de sua obra reside nos processos criativos humanos em diferentes manifestações culturais, incluindo artes, filosofia, literatura, religião e ciências. Diferente de Russell, que percebia a religião como algo agressivamente nocivo à sociedade, Santayana entendia a religiosidade como uma postura que poderia ser benéfica.

Na visão de Santayana a ciência oferece explicações para fenômenos naturais. Já a poesia e a religião são celebrações festivas da vida humana. Se poesia ou religião forem confundidas com ciência, a arte da vida se perde junto com a beleza da poesia e da religião. Vale observar que Santayana não era religioso. Alguns até sugerem que ele era agnóstico. Isso demonstra claramente que Santayana tinha uma mente aberta para possíveis modos de percepção do mundo. Para este filósofo espanhol, radicado nos Estados Unidos, fanático é aquele que redobra seus esforços, perdendo de vista seus objetivos. E é esta visão que quero usar nesta postagem.

Uma postura consistente com o fanatismo discutido por Santayana é a adoção de padrões inflexíveis de julgamento, aliados à intolerância por ideias contrárias àquelas defendidas pelo fanático. De forma alguma isso sugere que o fanático seja uma pessoa que tenha a intenção de ser desonesta. Pelo contrário, a prática parece demonstrar que as ideias defendidas por um fanático são comumente expressas de uma maneira que jamais podem ser mostradas como falsas. Isto é, o fanático mergulha em um mundo que ignora a discussão crítica. Aliás, esta percepção sobre fanatismo já foi colocada por Neil Postman, um profissional da educação que defendeu ideias bastante radicais (fanáticas?).

Geralmente, quando se fala em fanatismo, pensa-se em apenas dois aspectos culturais: política e religião. No entanto, defendo aqui que o fanatismo se manifesta até mesmo em atividades culturais que deveriam (por natureza própria) evitá-lo: ciência, filosofia e educação. Neste texto quero dar especial ênfase à ciência e à educação, usando como exemplo crítico a matemática. 

Quando um professor de matemática defende que é impossível dividir um número real por zero, ele está sendo fanático. Isso porque redobra seus esforços (reprovando o aluno que pensa diferente) para impor um preconceito, perdendo de vista seu objetivo. Qual deveria ser o objetivo de um professor de matemática? Ensinar e educar matemática! Até mesmo o excelente site Wolfram erra gravemente, ao discutir sobre divisão por zero, ignorando discussões extremamente pertinentes promovidas em lógica. Veja, por exemplo, a página 163 deste livro

Quando um professor de matemática defende a inquestionabilidade da demonstração por redução ao absurdo, ele está sendo fanático. Isso porque redobra seus esforços (afirmando que matemática é uma ciência exata) para impor um preconceito, perdendo de vista seu objetivo. Afinal, matemática não se faz de uma única maneira. Existem múltiplas posturas filosóficas sobre como matemática deve ser desenvolvida. A lógica intuicionista de Brower, por exemplo, rejeita o princípio do terceiro excluído, fundamental para demonstrações por redução ao absurdo (do ponto de vista da lógica clássica). Brower era contrário ao preconceito de que todo problema matemático admite solução. E esta visão filosófica se confirmou mais de duas décadas depois, com os resultados de incompletude de Gödel

Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Mas creio que isso já basta para o próximo passo desta postagem. 

Matemática lida com conceitos abstratos, tratados por meio de linguagens e lógicas rigorosamente definidas. Matemática, portanto, lida com universos de discurso supostamente controlados por aqueles que a concebem e desenvolvem. No entanto, os próprios matemáticos perceberam que este ramo do conhecimento é extraordinariamente aberto a visões filosóficas conflitantes entre si. Ou seja, por mais que se tente controlar o ambiente matemático com rigor e formalismo, jamais estamos livres da possibilidade de trabalharmos com novos universos, novas matemáticas. Exemplos disso são inúmeros, incluindo principalmente as geometrias não-euclidianas (que romperam com a milenar visão euclidiana sobre geometria) e as lógicas paraconsistentes (que evidenciaram um novo universo de lógicas nas quais contradições não implicam na trivialização de teorias). E mesmo que o matemático tenha a pretensão de ignorar visões alternativas sobre matemática, eventualmente até ele é pego de surpresa em seu próprio universo de estudos. Um exemplo bem conhecido é a postura formalista de Hilbert, que foi abalada pelo segundo teorema de incompletude de Gödel (apesar de alguns matemáticos ainda discordarem disso). Ou seja, matemática não é uma ciência tão exata assim. Ela é tão digna de discussões e controvérsias quanto qualquer outro ramo do conhecimento, apesar de suas controvérsias terem uma natureza ideológica diferente do que normalmente se encontra em política e religião. Usualmente pessoas não matam em nome da matemática. Mas matam em nome da política e da religião. Por quê?

Já um cientista político jamais pode ter a pretensão de lidar com ambientes controlados, como eventualmente o matemático sonha. Um cientista pode estudar matemática sem se preocupar com aspectos de ordem psicológica, social ou até mesmo prática. Já um cientista político não pode ignorar aspectos de caráter interdisciplinar. E, especialmente, não pode deixar de lado fenômenos sociais do mundo real. Neste sentido, a compreensão de política exige uma responsabilidade muito maior do que aquela demandada por uma compreensão da matemática. Tanto é verdade que hoje já se sabe que somente grupos de pessoas treinadas são capazes de fazer previsões políticas precisas. Cientistas políticos e demais especialistas, sozinhos, são incompetentes para prever o futuro político de nações, segundo pesquisas recentes de Philip Tetlock

Já religião toca em aspectos muito mais sutis, supostamente intangíveis pela racionalidade. Enquanto um matemático e um cientista político podem e devem apelar à racionalidade (sob diferentes formas), a fé religiosa não está compromissada com qualquer forma de razão, nos sentidos usuais do termo. Portanto, refletir de maneira responsável e aberta sobre religião é um desafio realmente monumental. 

Agora podemos tratar da questão proposta no título da postagem. Ciência e educação devem caminhar juntas. Cabe à ciência, entre outras coisas, a compreensão e a respectiva divulgação dos processos educacionais e cabe à educação o acompanhamento da ciência. Não se pode lecionar matemática, por exemplo, sem sintonia com a matemática que hoje se pratica. Se alunos forem expostos às incertezas e à multiplicidade de ideias matemáticas, eles deverão perceber que mesmo em universos idealizados não se tem controle absoluto sobre o que se faz. E se em universos sonhados por matemáticos nem sempre sabemos o que estamos fazendo, quem dirá em outras atividades culturais, como política e religião. 

Um mundo aberto a incertezas é um mundo livre de fanatismos. É claro que isso soa como uma utopia. Mas, assim como religiosos buscam o contato com Deus, é natural que busquemos idealizações. O sonho por um mundo livre de ideologias é também uma ideologia. E é justamente com essa contradição que precisamos aprender a lidar. Um professor que impõe conhecimentos supostamente matemáticos está apenas contribuindo para uma sensação gradualmente inserida de que há verdades inquestionáveis. Impossibilidade de dividir por zero não é uma verdade inquestionável. Usualmente não se define divisão por zero (no escopo dos números reais) por mera convenção. Deus não é uma verdade inquestionável, assim como Deus não é uma falsidade irrefutável. Democracia não é infalível, assim como ditadura não é inevitavelmente desastrosa. 

Defender ideologias é natural e fundamental. Mas quando a ideologia se torna irrefutável, com base em argumentos dela mesma, temos aqui a possibilidade muito real de puro fanatismo. E fanatismo é um fenômeno social que isola pessoas ou grupos de pessoas. Fanatismo desestabiliza sociedades. 

Ao contrário do que dita o senso comum, o fanatismo nem sempre está associado a entusiasmo exagerado, mas pode se manifestar também por um zelo irracional ou por simples noções extravagantes a respeito de um assunto. O zelo de um professor de matemática por um conteúdo específico (como a impossibilidade de dividir por zero) pode ser perigosamente confundido com uma atitude racional. Afinal, o professor de matemática usa o argumento de que o número real r não pode ser dividido por zero porque é impossível exibir um número real s tal que s vezes zero resulte em r. Com efeito, s vezes zero é sempre zero. Mas esta estratégia de argumentação ignora a visão da teoria de definições. É neste momento que o professor jamais olha para fora do conteúdo imposto, limitando sua visão e tornando-se um fanático. Não é necessariamente um fanático que grita e briga. Pode ser um fanático que apenas ri do aluno questionador, sugerindo que este seja um mero ignorante. Mas ainda é um fanático.

Nossas escolas, com suas lições de respostas definitivas para questões de múltiplas escolhas, apenas contaminam o senso crítico de nossos jovens. E jovens sem senso crítico se transformam em adultos sem senso crítico. Se existe a ideologia de transformar o Brasil em uma democracia, este sonho jamais será realizado com o atual sistema de ensino. E um ótimo ponto de partida para começar qualquer revolução no ensino brasileiro é a matemática. 

sábado, 14 de março de 2015

Filosofia e Sociedade


Filosofia pode ser útil? Faz sentido falar a respeito de filosofia aplicada?

Em postagem recente fiz uma discussão preliminar sobre algumas das diferenças entre física e filosofia da física. Foi defendida a ideia de que a filosofia da ciência de hoje está perigosamente desatualizada sobre a prática científica, especialmente no caso da física teórica e experimental. Nesta postagem coloca-se uma perspectiva diferente.

Talvez o nome mais importante associado nos dias de hoje à filosofia aplicada seja o de Ayn Rand. Rand foi uma romancista, dramaturga e roteirista (de Hollywood), autora de obras de grande impacto (algumas traduzidas para o português). E no conjunto de seus escritos - os quais incluem não apenas ficção, mas também ensaios - Rand desenvolveu aquilo que hoje se conhece como Objetivismo. Esta linha de pensamento filosófico é reconhecida e discutida detalhadamente, por exemplo, na Stanford Encyclopedia of Philosophy, onde até mesmo uma entrevista à revista Playboy é citada. 

Quando se fala a respeito de aplicações da filosofia nos dias de hoje, normalmente se pensa sobre Ética. Códigos de ética são exemplos muito conhecidos de aplicações da filosofia, pois permitem estabelecer normas de conduta, por exemplo, para profissionais de diferentes áreas. Neste sentido, questões éticas são inevitáveis na visão de Rand sobre política, sociedade e indivíduo. No entanto, a filosofia de Rand trata também das origens metafísicas e epistemológicas de fenômenos sociais como o racismo, a dicotomia entre liberdade pessoal e econômica e visões compartimentalizadas que levam ao dualismo mente-corpo. Rand demonstrava uma forte aversão à compartimentalização do conhecimento, principalmente no que se refere ao desenvolvimento intelectual do indivíduo (outra aplicação!). 

Preciso deixar claro que não estou aqui defendendo qualquer postura filosófica de Rand. Apenas coloco o fato de que, através de obras ficcionais e ensaios, ela conseguiu provocar um impacto social e filosófico inegável em diferentes partes do mundo. Até mesmo um partido político foi concebido nos Estados Unidos, por iniciativa de admiradores. E hoje existe o periódico The Journal of Ayn Rand Studies, publicado pela Pennsylvania State University Press.

Mas o exemplo de Rand e discípulos não é isolado. O periódico Journal of Applied Philosophy, publicado pela Wiley, conta com um fator de impacto de 0,551. Entre as publicações mais recentes encontramos discussões extremamente pertinentes sobre ética e responsabilidade no emprego de robôs na guerra, bem como a atitude comumente justificada em favor da tortura para obter informações que previnam ataques terroristas. O Journal of Applied Philosophy chega a oferecer um prêmio de mil libras esterlinas para o melhor artigo publicado naquele veículo em cada ano. Esta é uma iniciativa muito rara entre periódicos acadêmicos, evidenciando um movimento que busca, com certa urgência, vencer o preconceito de que a filosofia é um ramo do conhecimento não compromissado com aplicações relevantes à sociedade.

Os exemplos históricos do impacto social da filosofia são inúmeros. Na área de ciências, por exemplo, o mais conhecido é a Royal Society. Fundada em 1660, a Royal Society é a mais antiga sociedade científica interdisciplinar ainda em atividade e é conhecida como a instituição que marcou o nascimento da ciência moderna. Concebida a partir dos preceitos filosóficos de Francis Bacon, esta iniciativa estabeleceu a língua inglesa como principal idioma para comunicações científicas e criou os critérios editoriais até hoje empregados por periódicos especializados do mundo todo. Isaac Newton foi um dos presidentes da Royal Society. E isso, por si só, já diz muito.

Portanto, a influência da filosofia sobre a própria ciência tem se demonstrado perene. O que resta, agora, é avaliar como a filosofia pode se manter ainda impactante, sob o ponto de vista social. Não é apenas com os louros do passado que a prática filosófica se manterá viva e relevante. 

Outros exemplos poderiam ser citados, como as concepções filosóficas que deram origem a diferentes formas de governo, incluindo a democracia, a república, o comunismo e a monarquia. As teorias filosóficas do Estado de Platão, Hobbes, Locke e Rousseau, bem como suas repercussões práticas, são bem conhecidas. No entanto, exemplos como o de Ayn Rand devem ser avaliados com especial atenção, principalmente nos dias de hoje. Esta mulher representou um contato direto entre filosofia e sociedade. E o fato é que existe particularmente em nosso país uma mentalidade de que filosofia é a mera exegese de obras consagradas ou a irresponsável reflexão baseada em senso comum e pouca informação. Como o Brasil definitivamente não tem tradição filosófica alguma, precisamos reconhecer com urgência nossos erros e decidir se queremos realmente filosofar em nossas terras ou se apenas queremos posar como pensadores que, na prática, não somos perante o mundo.

Assim como tento promover neste blog discussões sobre matemática e ciência perante a sociedade, por que não encontramos fórum parecido que promova discussões sobre filosofia e sociedade? 

O que encontro em sala de aula são alunos com visão completamente fragmentada de mundo. Lecionar na Universidade Federal do Paraná, por exemplo, é como executar a música Quadros de uma Exposição, de Modest Mussorgsky, para um público cego, incapaz de ver os quadros de Viktor Hartmann. É essa compartimentalização de conhecimentos que está envenenando a capacidade de pensar de nossos jovens, os quais compartimentalizam até mesmo disciplinas muito específicas, como cálculo diferencial e integral: limite é uma coisa e derivada é outra.