Um assunto recorrente neste blog é a questão da meritocracia em universidades públicas, com especial ênfase nas instituições federais de ensino superior (IFES). É claro que discussões sobre este tema jamais podem ser realizadas sem a definição de políticas pedagógicas e científicas claras, algo que não existe (e nem pode existir, por enquanto) nas IFES. Por isso fortemente recomendo ao leitor a comparação entre a discussão que segue abaixo e o texto escrito com exclusividade para este blog pelo matemático Steven Krantz. Esta é a primeira parte de uma sequência de postagens que visam tratar de aspectos específicos do problema da meritocracia no ensino superior em nosso país.
O texto abaixo é de autoria de Fabiano R. de Melo, Professor Associado do Curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás e Vice-Presidente Regional para o Brasil e Guianas do Primate Specialist Group, Species Survival Comission, IUCN.
O que Melo coloca em seu excelente texto é um ponto de vista que certamente não pode ser ignorado em discussões responsáveis sobre políticas meritocráticas em universidades públicas, apesar de eu discordar de sua visão sobre órgãos de fomento à pesquisa em nossa nação.
Desejo a todos uma leitura crítica.
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O que é meritocracia nas universidades federais no Brasil?
de Fabiano R. de Melo
Os mecanismos para avaliar o mérito de um professor concursado em uma instituição de ensino superior no Brasil, ainda que em praticamente todas as áreas do conhecimento sejam hoje fortemente dependentes de um sistema baseado em quantidade de artigos produzidos, com uma forte associação ao fator de impacto desses artigos (IF), devem gerar uma mensuração robusta desse mérito. De fato, o uso da produção bibliográfica como critério preponderante constitui um importante indicador de mérito, e ainda que eu concorde plenamente que ele seja a força motriz de qualquer universidade, não posso descartar a inclusão de critérios mais abrangentes na análise final do que cada professor, dentro do seu contexto e realidade de trabalho, consegue obter, para daí sim, considerar o mérito e poder avaliar o resultado obtido entre os pares.
Portanto, reafirmo e concordo em dizer que produzir bons artigos a partir de ideias e hipóteses, especialmente aqueles de maior impacto (1), é a espinha dorsal dessa mensuração de mérito. Porém, minha intenção aqui é considerar ou reforçar a necessidade de se incluir outras atividades na vida acadêmica de um professor de uma IFES que podem e devem ser incorporados ao processo de avaliação. Entendo que, como bom medidor que é, possuir artigos com alto fator de impacto e delimitar isso como ponto de corte, é justo e bastante confiável, pois mantém sempre a "competição" saudável entre os pares (realidade que vivenciamos hoje pela CAPES, CNPq e FAPs para concessão de bolsas produtividade, obtenção de recursos para projetos etc.). Neste quesito, tenho tentado sobreviver ao processo de enquadramento vigente no país, com publicações de artigos completos em periódicos indexados, livros e capítulos de livros, ainda que de forma regular para a minha grande área e sem vínculo direto com o fator de impacto alcançado. Porém, para entender o discurso que me proponho, é fundamental fazer uma resenha dos meus últimos seis anos e meio como professor universitário.
Pensando apenas em números, desde 2006, consegui publicar 15 artigos completos, 16 capítulos de livros, editei 3 coletâneas (entre livros e anais de congressos), publiquei 97 resumos, entre simples, expandidos e/ou completos, trabalhei em 15 diferentes projetos técnicos envolvendo assessoria/consultoria, revisei pelo menos uma centena de artigos científicos, orientei ou co-orientei 09 estudantes de mestrado e 02 de doutorado, 01 de pós-doutorado, 37 alunos de monografia/iniciação científica (PIBIC ou voluntária), participei de 71 eventos (entre locais, regionais, nacionais e internacionais), organizei diretamente pelo menos 07 grandes eventos ou cursos de capacitação (regionais ou nacionais), participei de pelo menos 42 bancas de defesas (entre graduação e pós-graduação) e pelo menos 05 bancas de concursos públicos. Tive até pouco tempo atrás (nos casos de projetos encerrados) e tenho participação direta em cerca de 30 projetos de pesquisa, entre alguns de extensão, nesse período de 6 anos, incluindo pelo menos 2/3 deles com financiamento de diversas agências regionais, nacionais e internacionais. Isso significa escrever dezenas de propostas (incluindo orçamentárias) para conseguir recursos e depois, escrever mais dezenas de relatórios (técnicos e financeiros) e muitos dias de campo por ano, fora das salas de aula ou de seu ambiente de universidade para se treinar seus alunos e coletar seus dados.
Agora, pensando em outros pontos a serem mensurados e, claro, concursado que sou desde 2006, em pleno período de expansão das universidades e de formatação do que ficou conhecido como REUNI (Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), tenho lecionado até 14 horas aula/semana/semestre, incluindo graduação e pós-graduação. Isso se deve, basicamente, por falta de quadro técnico adequado (das vagas prometidas do REUNI, muitas não foram concedidas e o acordado seria que cada professor deveria assumir uma carga mínima de entre 8 e 12 horas semanais, ao se preconizar uma média de 18 alunos por professor), ou por desejo próprio (por que não?). Porém, acaba que esse processo nos massifica como professores ao nos tomar um grande tempo em sala de aula. E quando digo "desejo próprio", é porque podemos e devemos gostar de questões políticas que nos cercam, ao participarmos de comissões e diversos cargos administrativos disponíveis. Cargos que, inclusive, já assumi como vice-coordenador de curso de graduação (01 ano) e de pós-graduação (02 anos), além de ter assumido a assessoria de pesquisa e pós-graduação do campus que estou vinculado (04 anos), sendo que, diga-se de passagem, em nenhum caso tive remuneração ou função gratificada.
Como se não bastasse, participo ativamente de nossas entidades representativas, como sociedades (no meu caso dentro da grande área de Biodiversidade). Assumi a presidência da Sociedade Brasileira de Primatologia no biênio 2005-2007, desde então colaboro revezando entre diretoria e conselho. Sou sócio ativo da Sociedade Brasileira de Mastozoologia e participei por 02 anos do Fórum de Sociedades afins à Zoologia. Desde 2001, colaboro com pelo menos 03 Organizações Não-Governamentais, onde exerço papel ininterrupto na diretoria de uma delas e divido a coordenação, em nível nacional, de um grupo de especialistas em primatologia desde 2010. Tenho participado sistematicamente de reuniões técnicas promovidas pelos distintos órgãos governamentais no âmbito do Ministério do Meio Ambiente – MMA (IBAMA e ICMBio), seja para discutirmos sobre listas de espécies da fauna ameaçadas de extinção, ou para propor a criação de novas Unidades de Conservação (UCs), ou ainda, planejar ações sistematizadas de manejo de espécies ameaçadas. Isso representa dezenas de dias fora de meu ambiente de trabalho e algumas milhares de horas em reuniões longas e, felizmente, muito produtivas. Como mencionado acima, já auxiliei na organização de eventos paralelos (extra-IFES), seja coordenando o evento em si ou abrigando simpósios, palestras ou mesas-redondas, nestes casos, dentro dos congressos nacionais ou regionais ou ainda, coordenando cursos de capacitação de alunos para uma determinada área do conhecimento. Já contribui de forma expressiva na organização de atividades com as secretarias municipais ou estaduais de meio ambiente, auxiliando programas de fiscalização, até mesmo em âmbito federal (IBAMA), estadual (secretárias de meio ambiente dos estados que tenho colaborado, como Goiás e Minas Gerais) ou local (polícia ambiental de cidades onde trabalhei), emitindo dezenas de laudos técnicos, participando de ações de combate e fiscalização in loco por dezenas de vezes.
Enfim, isso só para lembrar do que eu, como professor de uma IFES, consigo fazer. Entendo que meu contrato de trabalho não prevê tudo isso, mas como cidadão responsável, sinto-me bastante orgulhoso de conseguir realizar esse leque de atividades. Provocado recentemente (2), de forma extremamente lúcida e objetiva, senti-me impelido a fazer este meu apontamento, indagando: o que é meritocracia nas universidades federais no Brasil?
1- Seria publicar na Nature ou na Science (revistas de topo para qualquer cientista, principalmente, dentro das áreas de Exatas e Biológicas) e ganhar uma cátedra vitalícia ou um prêmio Nobel?
2- Ou, tentar fazer isso de forma mais criteriosa? Neste caso, claro, respeitando o ponto de corte de publicações, mas mesclando ao ranquear, de forma direta, com uma produção bibliográfica e técnica mais difusa, porém, diretamente alinhada com outras questões mais prementes da sociedade que nos cerca.
Entendo que a posição 2, por se tratar de uma posição mais complexa, fatalmente será discutida, debatida e melhorada. Mas como ator e multiplicador que sou, ao atuar em diversas frentes de batalha (representando a minha IFES), especialmente quando considero que auxilio de forma substancial e direta na formação de alunos como cidadãos conscientes, ao aproximar a universidade do grande público que a sustenta (pagando onerosos impostos), que é a nossa sociedade, não tenho dúvida que devemos repensar nossos caminhos.
Até porque entendo que, fazendo isso, estou próximo dos problemas da vida real, do cotidiano e, mesmo que isso não me leve a um artigo de excelência, pelo menos garante um dos pilares da nossa universidade, que é a pluralidade de funções, pensamentos e discussões.
Não quero levar aqui a uma discussão simplista (apesar do tema ser bastante relevante), de que estaria promovendo a Slow Science (3,4), até porque considero minha vida acadêmica extremamente agitada e em nada aproximo-me dessa filosofia. Entendo e considero importante mantermos um ritmo acelerado de publicações (5), em todas as áreas do conhecimento, para aprofundarmos nosso conhecimento, gerar ciência de qualidade e elevar o status quo do Brasil com uma alta competitividade de produção. Até porque, infelizmente, o Brasil tem produzido uma quantidade maior de artigos, mas cada vez com menor fator de impacto (1). O que não é um privilégio nosso, quando percebemos que essa esfera de discussão está tomando dimensões globalizadas (3,4).
Enfim, fica minha análise um pouco mais aprofundada, do que entendo por meritocracia institucional, de forma que possamos ser, pelo menos, mais cuidadosos e criteriosos para avançar em uma discussão tão importante. Discussão essa que pode não só envolver, por exemplo, política institucional, como estabilidade do cargo do servidor público nas IFES, quanto questões bem mais amplas, complexas e sérias, como o avanço da ciência. Até porque temos uma imensa responsabilidade em auxiliar a nossa sociedade em se deslocar pensando num futuro melhor, ao compreender e conhecer melhor o mundo em que vivemos, sabendo e utilizando de forma sempre mais coerente esse conhecimento e, em última instância, ampliando a qualidade de vida de todos nós.
Lembrando que o mérito mensurado não é só meu, mas incluiu, nesse tempo, pelo menos 90 colaboradores diretos e indiretos, entre parceiros e colegas de trabalho institucionais, estudantes, pesquisadores etc. Afinal de contas, estamos falando de UNIVERSIDADE, ou será que eu fiz o concurso errado?
(1) Wainer, J. 2012. A crescente irrelevância da ciência brasileira? JC, e-mail 4577, de 05 de Setembro de 2012. Jornal da Ciência – SBPC.
(2) Sant’Anna, A. 2013. Ciência e Educação (de qualidade) são a Base da Esperança. Scientific American do Brasil 129.
(3) Fischer, J., Ritchie, E. R. & Hanspach, J. 2012. Academia’s obsession with quantity. Trends in Ecology and Evolution 27 (9): 473-472.
(4) Lutz, J. F. 2012. Slow Science. Nature Chemistry 4: 588-589.
(5) Loyola, R. D., Diniz-Filho, J. A. F. & Bini, L. M. 2012. Obsession with quantity: a view from the south. Trends in Ecology and Evolution 27 (11): 585.