sexta-feira, 15 de maio de 2015

Quando matemática é o horror


William Shakespeare disse: "O mundo inteiro é um palco." 
Oscar Wilde respondeu: "O mundo pode ser um palco. Mas o elenco é um horror."

Como estabelecer uma fronteira entre o erro e aquilo que simplesmente não gostamos? Eu, por exemplo, não gosto de chocolate com mais de 75% de cacau. É um erro existir chocolate com 80% de cacau? Certamente que não. Afinal, há quem goste. 

Eu também não gosto de aulas de matemática definidas por processos de mera doutrinação, sem a exploração de senso crítico, como já deixei claro em várias postagens deste blog. É um erro existirem aulas desse tipo? Bem, assim como há pessoas que não gostam de chocolate realmente amargo, há também aqueles que preferem não pensar muito (pelo menos sobre matemática) e, portanto, têm preferência por aulas de matemática nas quais não seja necessário o emprego de senso crítico. Portanto, se eu insistir que aulas doutrinárias e superficiais de matemática são um erro, especialmente no ensino básico, isso pode soar como mera opinião de uma alma inflexível. E talvez seja mesmo! 

É claro que eu defendo aulas de matemática de alto nível! Eu adoro matemática! Mas e as outras pessoas? 

Treze anos atrás, uma estudante italiana da quarta série, do Liceu Científico Leonardo da Vinci, entrou com uma ação na Justiça por ter sido reprovada em matemática. Ela alegou que simplesmente odeia matemática. A palavra era essa mesma: ódio. Esta disciplina, segunda ela, provoca profundo bloqueio psicológico. Um parecer feito por um renomado psicólogo confirmou: "Viviana L. nutre um medo obsessivo, uma verdadeira patologia psicológica, em relação à matemática." O Tribunal Regional de Trento decidiu, então, que Viviana deveria ser aprovada para a quinta série, apesar dessa decisão violar as regras da escola. 

Quem tem o direito de exigir que alguém estude matemática? Professores? Convenhamos que as opiniões de matemáticos sobre essa disciplina são obviamente tendenciosas. Pais? Raramente estão qualificados para opinar sobre educação. Governos? São impessoais e burocráticos. A sociedade? Bem, a sociedade é o horror de Oscar Wilde.

Vamos admitir, pelo menos por um instante, que não existe uma fronteira clara entre certo e errado e simples gosto pessoal. Recentemente publiquei uma postagem neste blog sobre as belicosas discussões entre pessoas de diferentes tendências políticas em nosso país

Poderíamos encarar tais discussões sob a perspectiva de simples gostos pessoais, na qual indivíduos brigam violentamente sobre "a proporção ideal de cacau em uma barra de chocolate". Soa ridículo sim. Mas soa ridículo pelo simples fato de que o chocolate em si é a questão menor. Em meio a discussões sobre gostos pessoais, comumente domina o desejo de indivíduos imporem suas preferências sobre outros. E esta conclusão não é precipitada, como argumento adiante.

Aspectos comportamentais sobre ansiedade matemática são conhecidos na literatura especializada há mais de meio século. Sabe-se, por exemplo, que ansiedade matemática provoca impacto negativo de longo prazo, atingindo até mesmo o desempenho profissional de pessoas. 

No entanto, foi somente em 2011 que alguém finalmente questionou: existe alguma fundamentação biológica para a ansiedade matemática? A resposta parece ser positiva. 

Em artigo publicado em Psychological Science, pesquisadores da Universidade Stanford finalmente revelaram que ansiedade matemática é um fenômeno neurológico semelhante a outras formas de ansiedade. A revelação foi feita a partir da análise de ressonâncias magnéticas feitas em crianças com idades entre sete e nove anos e que demonstravam sintomas de ansiedade matemática. As ressonâncias, realizadas enquanto essas crianças faziam contas de adição e subtração, revelaram elevada atividade da amígdala, estrutura do lobo temporal responsável pelo instinto de auto-preservação. Ou seja, as crianças estavam simplesmente com medo daquelas contas de adição e subtração. Elas estavam se sentindo ameaçadas.

No entanto, neurologistas não conseguem ainda determinar a origem da ansiedade matemática. Esta situação remete ao célebre, fundamental e persistente problema da causalidade em medicina: a hiperatividade da região associada a medo, angústia e fobias é causa ou efeito da sensação de horror? 

Por que neurocientistas demoraram tanto para demonstrar interesse sistemático no problema da ansiedade matemática? Existe algum preconceito social que justifique este atraso? 

Certa vez ouvi um psiquiatra afirmar que uma pessoa é mentalmente saudável quando ela não permite que suas emoções interfiram em seu cotidiano. Se for este o caso, então vivo em um verdadeiro hospício chamado de planeta Terra. 

Os pais da menina italiana que odeia matemática tentaram ajudar a filha, contratando um professor particular... de matemática. Ou seja, ao invés de buscarem um tratamento para a ansiedade da menina, simplesmente pioraram a situação, trazendo a matemática para dentro de casa. É como se uma vítima de aracnofobia fosse jogada em uma cova repleta de aranhas. 

Todo o nosso sistema educacional é fortemente sustentado por imposições aplicáveis a todos. Todos devemos estudar matemática nos ensinos fundamental e médio, independentemente de nossos perfis pessoais. Eu, por exemplo, tive sorte. Gosto de matemática. E tive a sorte de não ter sido obrigado a comer chocolate amargo durante os onze anos de ensino básico que tive. Afinal vivemos em uma sociedade que prioriza matemática sobre o chocolate. 

Os casos extremos de ódio ou fobia contra a matemática apenas ilustram de maneira dramática o fato de que esta ciência não conta com qualquer apelo sedutor universal. Mas e os casos que não são extremos? Devemos simplesmente ignorá-los e insistir na doutrinação de que todos devem ser submetidos a este ramo do conhecimento? 

Não tenho a pretensão de apresentar qualquer conclusão sobre como devemos abordar a matemática no ensino básico, especialmente nos casos de alunos que obviamente não têm interesse algum sobre o tema. Reconheço que pouco sabemos sobre a mente humana. E também reconheço que pouco sabemos sobre o papel da educação na sociedade. Mas isso não significa que devemos continuar a aceitar cegamente nossos processos educacionais e nossa cultura, que insistem em discursar e insinuar que o desgosto pela matemática torna pessoas menos inteligentes e mais facilmente marginalizadas. Matemática, assim como chocolate amargo, não é para todos.

23 comentários:

  1. Muito feliz seu post. Sou estudante de Economia, me identifico com matemática, mas sempre tive muita dificuldade em desenhar mentalmente o conteúdo. Abstrações e arte sou muito bom. Hoje percebo que o Gap existente foi causado pela didática de ensino a qual fui exposto. Hoje, já consigo "desenhar" mentalmente a matemática e assim vou me virando e admirando ainda mais essa matéria que por vezes se torna a cólera dos simples humanos (o Sr. não entra tá!). Acredito que a grande responsabilidade passa sim Estado, mas já é outra questão...
    A Matemática tem vida, é um "organismo vivo", ai sim fica menos difícil entender. Mas para que estou aprendendo isso? De que serve isso em minha vida? essas são perguntas que não se calam durante os anos escolares (básico e médio). Somente encontramos as respostas em um Curso Superior, ai sim a "coisa" vai ganhando forma. Será que se o aluno desde o inicio da caminhada for orientado quanto a "vida ativa" da matemática no contexto de nossas vida, o apreço a matéria seria outro? Será que uma mudança na dinâmica de apresentação do conteúdo traria melhores resultados? Seria um processo moroso, mas quem sabe traria melhores resultados?

    Abrçs

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  2. Prof. Adonai,

    - Me parece que tua postagem, no fundo, trata das aptidões das pessoas. Seria possível, assim, um processo educacional em que o aluno fosse contemplado de acordo com suas aptidões (esporte, música, letras, exatas, biológicas etc)?

    - No modelo de educação atual, seria ainda possível reduzir o conteúdo da matemática, para contemplar o ensino de lógica (que me parece ter uma aplicação para as demais disciplinas)?

    Saudações,

    Rodrigo

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    1. Rodrigo

      Uma pergunta natural: como identificar aptidão para a matemática sem conhecê-la? Um dos problemas é que o atual sistema de ensino básico simplesmente não apresenta matemática para aluno algum. E se incorporarem lógica, sabe Deus o que farão: 1, 2, 3... o próximo número é....

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    2. Tem a OBMEP em mais de 99% das escolas públicas que identifica os talentos e da cerimonia de premiação conhecem o IMPA e a matemática de verdade.

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  3. Essa postagem me lembrou uma ótima entrevista do Simon Schwartzman (recomendo a leitura a todos):

    https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/entrevistas/simon-schwartzman-o-ensino-medio-no-brasil-e-formal-academico-voltado-para-o-vestibular-nao-atende-jovens-com-outros-interesses

    P.S (1): O colega acima é estudante de economia,e isso me lembrou outra coisa: caro Prof. Adonai, o senhor poderia aproveitar seus contatos no meio universitário e fazer um convite a um economista especializado na " economia da educação ", para que este, caso possível, escreva uma postagem para o blog abordando o sistema educacional brasileiro ( do ensino básico ao superior), fazendo concomitantemente um contraste com a situação de outros países.O que acha da ideia, Prof. Adonai?

    P.S (2): Eu sei que ele não é pesquisador, mas o que o senhor acha dos textos do Gustavo Ioschpe sobre educação?

    Adolfo

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    1. Adolfo

      Já tentei, em duas ocasiões, publicar textos escritos por especialistas em economia da educação. Ainda não consegui. Mas um dia, quem sabe.

      Já divulguei alguns textos de Ioschpe na página Facebook deste blog. Há material interessante dele.

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  4. Bom, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Se alguém tem fobia até mesmo de realizar operações aritméticas, é claro que o caso é grave e exige compreensão e cuidados, tanto quanto, por exemplo, casos severos de TDAH. Em ambos os casos, aliás, tais transtornos implicarão grandes dificuldades para a vida desses indivíduos e, no mínimo, é preciso que, no devido tempo, tornem-se conscientes desses fatos. Bem diferentes são o mero não gostar ou ter alguma dificuldade. Processos educacionais, bem ou mal estruturados, sempre se caracterizam por exigir dos indivíduos mais do que aquilo que naturalmente poderia esperar-se deles, na média. Aliás, isso é o que define o termo educação. Assim, uma exigência mínima de "numeracy" não parece conduzir levas de pessoas aos consultórios psiquiátricos, ainda que muitas delas não apenas não gostem como não tenham a menor aptidão para o assunto. Concordo, entretanto, que o ensino de matemática nas escolas equivoca-se, entre outras inúmeras coisas, ao parecer assumir que todo mundo deva ser treinado para ser um cientista. Uma flexibilização, nesse aspecto, seria bem-vinda. P.S.: eu também não gostava de chocolate 80%, mas a insistência me levou a, finalmente, apreciá-los. O que vale, literalmente, para quase tudo na vida que realmente vale a pena.

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    1. Antony

      Um ponto sobre o qual insisti algumas vezes é a necessidade de acompanhamento psicológico sistemático em escolas e universidades, tanto para alunos quanto professores. Porém, aqui no Brasil, em geral, as pessoas não têm a mínima ideia da utilidade disso.

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    2. Dsconheço as práticas institucionais de outros lugares, mas aqui na UnB temos um bom serviço de acompanhamento desses casos de necessidades especiais, inclusive com orientação dos docentes, o que, aliás, talvez seja, de fato, o ponto nevrálgico. Mas, reconheço que todos estamos bastante atrasados nesse campo.

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  5. Mesmo que matemática não for para min continuarei tentando pois eu a amo é tudo para min. F.A

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  6. Acompanho seu blog e suas postagens no face book a algum tempo e venho percebendo que você possuí o mesmo nível de sapiência da maioria dos professoras da UFPR apesar de viver criticando-os.
    Igual a grande maioria dos docentes dessa instituição você aparenta não passar de um ser medíocre e fracassado que se esconde atras de diplomas comprados e do suposto glamour de ser professor universitário de uma instituição falida e mentirosa criada para enganar trouxas...
    Eu não vou me demorar com insultos e ofensas...

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    1. Bem, acho curioso (e até revelador) você acompanhar há algum tempo um blog e uma página Facebook mantidos por alguém que despreza. Não me parece uma atitude muito saudável. Se permite a recomendação, sugiro que acompanhe algo mais construtivo para o seu desenvolvimento.

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  7. Caro Adonai....

    é no mínimo curiosa sua postagem tendo em vista que moramos num país em que a educação formal nunca foi prioridade, quanto mais o ensino de matemática e português. Discutir sobre habilidades de aprendizagem em terra arrasada é como preparar a população para uma Guerra silenciosa, cujos mortos são zumbis perambulando lado a lado. É óbvio que nem todos possuem habilidades para exatas, mas exigir um "conhecimento mínimo" é essencial para o dia-a-dia de uma sociedade. Por outro lado, também chamo a atenção para aqueles que deveriam ser "proficientes" em exatas mas são uma farsa (vide a maioria de nossos pesquisadores nas universidades públicas). Afinal de contas, resta a questão: quem realmente domina a Matemática nos dias de hoje? Eu não, consider-me um eterno estudante.

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    1. Marcelo

      Não é de hoje que questiono a utilidade deste blog. Não sei se é a idade ou simples fraqueza minha, mas não ando muito adepto de exigências, como você sugere em seu comentário. De forma alguma entenda que critico a sua postura. Mas, cara, educação é assunto realmente exaustivo.

      Com relação à sua pergunta, não creio que alguém neste mundo domine a matemática. Mas isso certamente não me incomoda.

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    2. Oi Adonai....

      concordo contigo: discutir educação é exaustivo e frustrante, entretanto é algo necessário neste país de "faz-de-conta." Também não me incomoda se existe ou não alguém que realmente domine a matemática. Nós, pessoas comuns, lutamos diariamente com nossas limitações, onde a postura de estudante (também incluo os raros bons docentes neste caso) deve ser preservada para o resto de nossas vidas (ao menos tenho esse lema para a minha pessoa). Enfim, manter um blog como este é uma tarefa árdua e nessa qualidade, magnífica. Conviver com as diferentes opiniões já é uma tarefa herculea, um teste de paciência necessário nos dias de hoje; portanto, paciência. Forças, saúde e muita calma (rs).

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  8. Prezado Prof. Adonai,

    Sabendo que meu conhecimento matemático se restringe ao nível do ensino médio (futuro postulante a uma carreira na área de exatas), gostaria que o senhor sanasse as seguintes dúvidas relativas a material de estudo:

    1 - O único contato com a Lógica que eu tive foi através do livro "Aprendendo Lógica" da editora Vozes; no entanto, por se tratar de uma obra bastante básica, gostaria de saber o seguinte: o livro do Elliott Mendelson ( Introduction to Mathematical Logic) é adequado a alguém do meu nível?

    2 - Queria me aprofundar também em teoria dos conjuntos. O senhor indicaria, tomando em consideração o meu caso específico, os livros do Prof. Suppes ( Axiomatic Set Theory) e
    do Vereshchagin ( Basic Set Theory) ?

    Cordialmente,

    Cláudio

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    1. Cláudio

      Os livros que você questiona são excelentes. Dada a sua formação, eu recomendaria começar com a obra de Shen e Vereshchagin, seguida da de Suppes. O livro de Mendelson seria o terceiro passo natural. São textos muito didáticos, claros e precisos. Basta ter paciência.

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    2. Tentarei seguir a sequência ( Shen - Suppes - Mendelson). Muito obrigado pela ajuda, Prof. Adonai! :)

      Cláudio

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    3. Tem o livro do Alfred Tarski, "Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Sciences". Comprei ele junto com o livro do Kleene, "Mathematical Logic". Dois livrinhos bons e baratos.

      Sebastião

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  9. Tem o livro do Alfred Tarski, "Introduction to Logic and to the Methodology of Deductive Sciences". Comprei ele junto com o livro do Kleene, "Mathematical Logic". Dois livrinhos bons e baratos.

    Sebastião

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  10. Me pergunto se a menina não tinha Discalculia (en.wikipedia.org/wiki/Dyscalculia)

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  11. http://cinismoilustrado.com/image/121761541173

    Sebastião

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