segunda-feira, 21 de julho de 2014

Veduca


Recentemente foi publicada uma postagem neste blog sobre aulas de cálculo diferencial e integral em vídeo, na qual promovi uma breve análise sobre cinco vídeo-aulas disponibilizadas gratuitamente no YouTube. O objetivo da postagem citada e desta é dar continuidade a uma discussão sobre ensino a distância, iniciada aqui há mais de um ano. Alguns leitores pediram para eu discutir algo sobre programas de ensino a distância como VeducaKhan Academy. Segue abaixo uma discussão a respeito de alguns vídeos de matemática que acessei a partir do site de Veduca. Sobre a Khan Academy será discutido em postagem futura.

Haynes Miller (professor do MIT), em sua vídeo-aula sobre equações diferenciais ordinárias, diz algo que sintetiza com absoluta clareza o valor do ensino a distância na forma de vídeos: "Não vou lhes dizer o que são equações diferenciais ou modelagem. Se ainda não têm certeza sobre essas coisas, o livro tem uma explicação muito longa e muito boa. Basta ler."

Tal vídeo não é exceção em Veduca. Gilbert Strang (também professor do MIT) se refere a algumas de suas vídeo-aulas como "highlights of calculus". E o primeiro vídeo de Strang sobre álgebra linear abre com a apresentação de um livro sobre o tema. Em outras palavras, não é aparente qualquer pretensão de se ensinar matemática nas aulas em vídeo do programa Veduca. Tais ferramentas gratuitas de ensino a distância parecem algo como um mero instrumento de suporte didático. Se alguém deseja realmente aprender matemática, não tem outra opção a não ser ler bons livros de matemática.

Os vídeos que examinei em Veduca são todos meras gravações de aulas tradicionais. Portanto, não apelam para recursos interativos. Quem assiste aos vídeos ainda se encontra em posição passiva, como um tradicional aluno em uma tradicional sala de aula. Mesmo vídeos sobre história ou física, entre outras áreas do saber, seguem este formato. 

Um dos problemas que apontei sobre vídeo-aulas em postagem anterior foi a maior incidência de erros, se compararmos com textos devidamente revisados. Gilbert Strang, por exemplo, deixa claro em seu primeiro vídeo sobre cálculo diferencial e integral que seu principal propósito é esclarecer qual é o objetivo deste ramo do conhecimento. Isso porque muitas vezes alunos podem sentir falta desse tipo de discussão se ficarem limitados a apenas fazer contas. E, tentando caracterizar o que é cálculo diferencial e integral (o que definiria os objetivos desta disciplina), Strang afirma: "para mim cálculo é sobre a relação entre duas funções". Em seguida ele ilustra sua afirmação com exemplos bem conhecidos na literatura.

Pois bem. Teoria de categorias também é um ramo da matemática que poderia ser caracterizado como o estudo de relações entre funções. No entanto, teoria de categorias e cálculo diferencial e integral são assuntos muito diferentes entre si. Assim sendo, cálculo não pode ser definido como o estudo das relações entre funções.

Afirmações sucintas e de caráter geral, como supostas definições sobre o que afinal é cálculo, são sempre questionáveis. Já foi discutido neste blog o problema de avaliações baseadas em respostas. Em um sistema educacional de ótima qualidade, independentemente de ser a distância ou presencial, deveria haver ênfase na visão de alunos e não de professores. Alunos deveriam ser provocados com perguntas de caráter geral: O que é cálculo? O que é álgebra linear? O que é matemática?

Qualquer resposta que seja dada por qualquer aluno estará inevitavelmente errada. E é neste momento que deve entrar o professor. Neste momento o papel do professor é questionar com propriedade as respostas de seus alunos, a partir de exemplos pontuais. Desta forma eles terão a oportunidade de contato com senso crítico. E senso crítico é muito mais importante em matemática do que respostas prontas e entregues de forma não crítica por professores.

Talvez um programa como Veduca tenha algum valor social relevante. No entanto, certamente não serve para fins de efetivo aprendizado de matemática por dois motivos:

1) Não se aprende matemática ouvindo um professor de matemática, da mesma forma que não se aprende a fazer sexo vendo outras pessoas fazendo sexo.

2) Bons livros apresentam conteúdos de matemática de forma tão rica que seria inviável transpor tais conteúdos na forma de vídeo sem torná-los extremamente monótonos.

Aquele que estuda matemática jamais lê um bom livro de matemática da mesma forma que se lê um romance. Trechos precisam ser lidos e relidos inúmeras vezes. Exercícios estratégicos precisam ser resolvidos. Discussões precisam ser promovidas com pares. O aprendizado de matemática é um processo extremamente difícil até mesmo para matemáticos profissionais. Matemática não é assunto que flui naturalmente em pessoa alguma deste nosso planeta. Matemática demanda muito esforço.

Àqueles que assistem aos vídeos do programa Veduca recomendo que continuem a ver tais vídeos, se assim desejarem. Mas assistam a essas aulas de forma crítica. O site Veduca conta com fóruns de discussão. No entanto, em tais fóruns há muitos participantes que conhecem pouca matemática. Portanto, não representam ajuda. É importante que os interessados participem de outros fóruns de discussão em outros ambientes espalhados pela internet. Mas mais desejável ainda é o contato (presencial) com profissionais de reconhecida competência e experiência, para trocas de ideias.

Para que ensino a distância possa funcionar como ferramenta de real aprendizado é necessário que seja realizado um esforço muito maior do que a mera exposição de vídeos, sem oportunidade de interação entre alunos e professores. Assim como o emprego de avançadas tecnologias de computação gráfica no cinema não permite que atores sejam dispensados de produções cinematográficas, o emprego de avançadas tecnologias para aprendizado jamais pode abrir mão da necessidade de bons professores e bons autores. Por mais que a tecnologia avance, as pessoas continuam sendo as mesmas em termos de dificuldades de aprendizado. E matemática é um ramo do conhecimento difícil de aprender. Não há caminho suave.

17 comentários:

  1. Olá professor Adonai.
    Em relação a está postagem, gostaria de dizer que há também uma outra plataforma de ensino a distância, que se chama Coursera, não sei se o senhor já ouviu falar dela. Que se encontra neste link: https://www.coursera.org/courses
    Eu nunca usei muito esta plataforma, mas dizem que é bem interativo, não sei até que ponto é interativo. E parece, não sei se todos os videos são assim, mas não são gravações de aulas em sala de aula. Enfim, se o senhor não o conhecia ainda, vale a pena dar uma olhada, apesar de haver problemas como todo curso a distância. Se o senhor já conhece, gostaria da sua opinião sobre esta plataforma.
    *Obs: Tem uma outra também, que se chama edX, cujo link é este: https://www.edx.org/

    Atenciosamente,
    Everlin.

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    1. Everlin

      Por descuido meu nunca dei muita atenção ao ensino a distância. Estou começando isso agora. De fato eu não conhecia as plataformas que você menciona. Mas examinarei cada uma delas. Muito obrigado pelas recomendações.

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  2. A história é boa: "King Ptolemy once asked Euclid if there was not a shorter way to geometry than through the Elements, and Euclid replied that there is no royal road to geometry."

    Uma provocação: que tal lhe pareceria, Adonai, a seguinte frase?
    "Boas video-aulas apresentam conteúdos de matemática de forma tão rica que seria inviável transpor tais conteúdos na forma de texto sem torná-los extremamente monótonos."

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    1. João Marcos

      Sua pergunta ao final é excelente. Você está fazendo exatamente o que deve ser feito: provocar. Pois bem. Acredito que sua questão é melhor cabível em discussões sobre cinema versus literatura. Neste sentido recomendo a leitura da seguinte postagem:

      http://amortedaluz.blogspot.com.br/2014/06/a-linguagem-do-cinema.html

      Já no caso de ensino, ainda não foi criada outra forma de linguagem (além da escrita) que viabilize o aprendizado crítico de conteúdos da matemática. Ou seja, uma coisa é contar histórias usando diferentes recursos linguísticos (cinema, televisão, literatura, teatro, linguagem oral). Outra situação completamente diferente é o aprendizado de matemática.

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    2. Agradeço a sugestão de leitura, Adonai. Minha pretensão, contudo, não foi exatamente levantar a questão (extremamente interessante) da tradução intersemiótica.

      Veja bem, você defende o papel preponderante da *escrita* no processo de ensino-aprendizagem da matemática. Está claro, por um lado, no caso de deficientes visuais, que a limitada mídia oferecida pelos livros-texto não será suficiente. Por outro lado, não está claro que realmente ainda não existam mídias alternativas que viabilizem o aprendizado crítico de conteúdos de matemática. Você criticou com muita propriedade o material disponível na plataforma Veduca, após conhecê-la em detalhe. Keith Devlin, um colega nosso de Stanford que tem oferecido há alguns semestres no Coursera sua "Introduction to Mathematical Thinking" propõe que *video games* possam ter um papel importante neste processo:

      http://www.maa.org/publications/maa-reviews/mathematics-education-for-a-new-era-video-games-as-a-medium-for-learning

      Que lhe parece?

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    3. João Marcos

      Matemáticos cegos existem desde muito tempo atrás. Ver, por exemplo, o seguinte texto:

      http://adonaisantanna.blogspot.com.br/2012/02/matematicos-cegos.html

      Em um país do tamanho do nosso é surpreendente que não exista um único matemático cego que tenha se destacado. Seria necessário apurar as causas disso. Não acredito que nossos cegos sejam menos competentes (matematicamente falando) do que cegos da Rússia, EUA, França, Inglaterra, Suíça, entre outros exemplos.

      Com relação a Keith Devlin, conheço um pouco de seu trabalho. É um autor que vale a pena ler e refletir. Já que ele é colega seu, há possibilidade de convidá-lo para contribuir com um texto para este blog? Como já deve ser de seu conhecimento, este blog publicou recentemente uma contribuição de Steven Krantz em

      http://adonaisantanna.blogspot.com.br/2014/04/estabilidade-de-emprego-nas.html

      Talvez Devlin pudesse discutir um pouco sobre ensino a distância em países em desenvolvimento, como o Brasil.

      A ideia de aprender matemática a partir de video games pode ser interessante, por conta da interatividade entre jogo e jogador. Mas questiono a eficácia deste método para estudos avançados de matemática. Talvez seja uma ferramenta interessante para fins de apoio. Na verdade, mesmo livros são meras ferramentas de apoio. Para aprender matemática é preciso fazer matemática. E isso ninguém ensina, nem professor, nem livro e nem jogos eletrônicos.

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    4. "Para aprender matemática é preciso fazer matemática." Muito bom, Adonai.

      Pode valer a pena tentar convidar o Devlin, sim --- o difícil é o homem arrumar tempo. Ele certamente gosta de blogs:

      http://devlinsangle.blogspot.co.at/
      http://profkeithdevlin.org/

      E este aqui é dedicado justamente às reflexões dele sobre "ensino à distância", na modalidade MOOC:

      http://mooctalk.org/

      Você suspeita que haveria especificidades de particular interesse desta modalidade de ensino no contexto de *países em desenvolvimento*?

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    5. João Marcos

      Grato pela recomendação do MOOC. Não é a primeira vez que alguém indica esta modalidade. Mas ainda não examinei detalhadamente. Falha minha. Com relação a ensino a distância em países em desenvolvimento, talvez seja interessante apresentar o seguinte contexto: (i) a matemática ensinada nos ensinos fundamental e médio no Brasil é insuficiente para iniciar estudos superiores e, no entanto, alunos sem preparo ingressam em universidades; (ii) o jovem brasileiro típico lê pouco e geralmente estuda apenas para realizar avaliações. Esses dois fatores podem ser decisivos na definição de políticas de ensino a distância. Tenho certeza que muita gente gostaria de saber o que Keith Devlin teria a dizer sobre EAD neste tipo de contexto social. Talvez ele mesmo se sinta instigado a discutir sobre o tema. Afinal, esta seria uma maneira para ele contribuir com a educação de um país estrangeiro, a saber, o Brasil. Este foi um dos argumentos que convenceu Krantz a contribuir com o blog. O que acha?

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    1. Sebastião

      Nunca prestei muita atenção neste programa. Mas, em geral, iniciativas da AMS são ótimas. Por que pergunta?

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    3. Sebastião

      Este blog tem servido, entre outras coisas, para mostrar que me descuidei de alguns aspectos importantes sobre o ensino de matemática em nosso país. Nunca prestei atenção nessas olimpíadas de matemática. E agora percebo que preciso examinar isso também. Grato pela dica.

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    5. Sebastião

      Sinceramente não consigo enxergar quais os benefícios desse tipo de competição, que na minha opinião não melhora o ensino de Matemática para a maioria dos alunos. Achava que pelo menos serviria com incentivo para os melhores, mas pelo jeito nem isso. Para mim as provas são meros quebra-cabeças cheios de algebrismos e "pulos do gatos" desnecessários para o aprofundamento do estudo de Matemática.

      Há alguma continuidade para estimular os alunos em estudos posteriores?

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  4. Prof Adonai, sei que o sr não possui muito tempo e tem muitas dúvidas para esclarecer dos leitores, mas qual é a maneira que você julga correta para estudar Matemática?

    Pergunto isto porque na faculdade na realidade não estudamos nada, apenas devoramos conhecimento.

    Como um aluno crítico e curioso resolve estudar o Cálculo com todas as suas nuances se, nas avaliações ele precisa decorar vários métodos de cálculos de limites, derivadas, integrais, com seus inúmeras substituições de variáveis inúteis,para conseguir nota e ser aprovado?

    Há um enorme abismo entre o que se ensina e o que supostamente se entende por avaliação. Para sobreviver ao mundo selvagem da universidade o aluno vai preferir obter aquilo que lhe dá condições de seguir sem delongas em seu caminho. Porém somente no futuro entenderá o prejuízo que levou.

    Enfim será possível estudar para aprender e tirar notas?

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    1. Hugo

      Sua pergunta é realmente difícil de responder. Isso porque estratégias que funcionam para uns não funcionam para outros. Além disso, existe o problema que você aponta: matemática versus instituições de ensino. Por um lado é necessário ser político para lidar com professores de inteligência questionável. Ou seja, assim como jamais devemos brigar com o garçom que serve nossa comida no restaurante, sempre devemos evitar confrontos diretos com professores. Por outro lado, quem ama matemática deve buscar conhecimentos relevantes que cursos não oferecem. Neste sentido, sempre recomendo que o interessado procure contato com pessoas que compartilham os mesmos interesses profissionais. E um bom caminho, neste sentido, é procurar orientação de um professor pesquisador experiente e que tenha uma convivência civilizada com seus discípulos. Por fim, é preciso estabelecer uma meta: a produção de conhecimento matemático.

      Farei o seguinte. Pensarei com cuidado sobre sua questão e talvez eu escreva uma postagem sobre o tema.

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