Alice no País das Maravilhas é uma das mais célebres obras literárias da história. A Rainha Victoria ficou tão fascinada com aquele magistral livro de Lewis Carroll, que chegou a insistir com o autor para que lhe enviasse sua próxima obra, assim que estivesse pronta. Imagine a surpresa da Rainha do Reino Unido ao receber o livro Um Tratado Elementar Sobre Determinantes.
Acontece que Lewis Carroll era pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, matemático da Universidade de Oxford, que fez contribuições em geometria, álgebra e lógica. No entanto, Dodgson era também poeta, romancista e foi ainda pioneiro na arte de fotografar crianças.
Além disso, Carroll publicou jogos e charadas que, através de versos, procuravam instigar o estudo de matemática entre crianças. Este matemático de Oxford era um mestre na combinação de literatura nonsense com lógica clássica. Ele empregava ideias absurdas para que seus leitores não fossem influenciados por seus próprios preconceitos, no momento em que tentassem resolver charadas. Um exemplo é o enigma abaixo:
Todos os bebês são ilógicos. Ninguém é desprezado, se pode lidar com um crocodilo. Pessoas ilógicas são desprezadas.
Uma avaliação detalhada deste e de outros exemplos da literatura de Lewis Carroll se encontra neste link.
Cai Tianxin, da Universidade Zhejiang (China), publicou em Notices of the American Mathematical Society, um excepcional artigo sobre matemáticos e poetas, traçando inspirados paralelos entre ambos. Ele apresenta matemáticos e poetas como inigualáveis profetas das culturas humanas. Citando William Faulkner, Tianxin defende a tese de que todo romancista é um poeta fracassado. E sugere que físicos são cientistas que gostariam de ser matemáticos. Afinal, apesar de físicos não serem tão modestos quanto Faulkner, eles dependem fundamentalmente de intuições matemáticas para inferir leis físicas a partir de meras observações empíricas.
Tianxin traça também um paralelo histórico entre poesia e matemática. Os Elementos de Euclides e a Poética de Aristóteles nasceram quase simultaneamente, delineando uma nova fronteira cultural na civilização humana. O que Tianxin percebe de elemento comum a essas duas obras é a mimetização do mundo que nos cerca. Euclides reproduzia formalmente (para os padrões da época) uma realidade físico-geométrica. Aristóteles, por outro lado, estabelecia formalmente (para os padrões da época) as bases para a arte e a literatura grega. Essas duas manifestações culturais buscavam por formas de compreensão da realidade através do intelecto, da abstração de exemplos concretos.
Outro exemplo discutido por Tianxin é o nascimento da arte moderna, representada por Poe e Baudelaire, paralelamente ao surgimento das geometrias não-euclidianas de Lobatchevsky e Bolyai. Até mesmo topólogos chegam a citar o poeta Henry Longfellow, em uma alusão a luvas feitas de pele de animais:
Para ter o lado quente por dentro, coloque o lado de dentro (do couro) para fora; para ter o lado frio para fora, coloque o lado quente (do pelo) para dentro.
Outro exemplo muito conhecido é o de Johann Wolfgang von Goethe, que considerava sua própria visão científica não apenas mais importante do que a de Isaac Newton, como também mais importante do que suas criações literárias ficcionais.
E, falando em obras ficcionais, há um site na internet dedicado à compilação de textos de ficção matemática, algo como um ramo da ficção científica. Quaisquer contribuições a este site são bem-vindas pelo seu mantenedor.
Um dos aspectos mais trágicos em comum entre poesia e matemática é o fato de que essas manifestações culturais estão entre as menos apreciadas e compreendidas pelas civilizações humanas. Matemática é notoriamente o ramo menos citado na literatura científica. E, apesar de poesia ser considerada o mais antigo gênero literário, é certamente o gênero menos cobiçado por leitores do mundo todo, os quais usualmente preferem prosa, drama, textos não-ficcionais e mídia.
Então, a grande questão é a seguinte: É possível um indivíduo ser um grande matemático e um grande poeta?
Os matemáticos Lorenzo Mascheroni e Augustin-Louis Cauchy até poderiam ser enquadrados como poetas, apesar de não terem se destacado nesta arte. E, assim como Lewis Carroll, o poeta chileno Nicanor Parra chegou a lecionar matemática, apesar de não ter feito qualquer contribuição remotamente relevante neste ramo do conhecimento. Segundo Cai Tianxin, o único ser humano, em toda a história, a se destacar tanto em matemática quanto em poesia, foi o persa Omar Khayyam, nove séculos atrás. E mesmo assim, qualquer conteúdo matemático nos Rubayiat de Khayyam somente será percebido com muita imaginação de quem lê. Utilizando seus conhecimentos matemáticos, Khayyam conseguiu corrigir o calendário persa. E, procurando por qualquer referência a essa contribuição em seus poemas, o melhor que encontrei foi o seguinte trecho:
Aquele que criou o Universo e as estrelas
exagerou quando inventou a dor.
Lábios vermelhos como rubis, cabelos perfumados,
quantos sois no mundo?
Adonai
ResponderExcluirConheces o livro Poesia Matemática do Millôr? Ele une poesia e matemática epublicado em 2009.
POESIA MATEMÁTICA - Millôr Fernandes
Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base.
Uma figura ímpar:
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo ortogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida Paralela à dela
Até que se encontraram
No infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode chamar-me de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
-- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs
-- Primos entre si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Rectas, curvas, círculos e linhas sinusoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissectriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E casaram-se e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais
Um Todo Uma Unidade.
Era o Triângulo.
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fracção
Mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.
O livro eu digitalizei, as ilustrações são de Mariana Newlands. http://portfolio.interludio.net/?portfolio=poesia-matematica-millor
Bem lembrado, Mariia. Sim, eu já conhecia este poema de Millôr. É divertido.
ExcluirO meu contista preferido, Jorge Luis Borges, mesmo não sendo matemático, nutria um grande fascínio pelo tema.
ResponderExcluirUm exemplo contemporâneo é (ou melhor, era) o David Foster Wallace. Ele se formou em filosofia, trabalhando com lógica formal. Na sua obra prima, Infinite Jest, há várias páginas que citam a matemática. Ele chegou até a escrever um livro para uma série de divulgação científica.
E tem o Álvaros de Campos, que era engenheiro e escreveu:
''O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora).''
Otavio
ExcluirAnos atrás li em voz alta o conto O Aleph, de Borges, em uma aula de matemática. A receptividade dos alunos foi lamentável. Nunca mais tentei fazer algo parecido em sala de aula. Mas, de fato, Borges é um contista extraordinário.
Não conheço Wallace. Agradeço pela recomendação.
As pessoas parecem (e talvez sejam) anestesiadas. Poesia e matemática não fazem parte do universo da maioria. Só telenovelas rasas -- e algum livro de autoajuda. O prólogo de Ficciones de Borges que tenho é o seguinte:
ExcluirEl lector que tiene en sus manos Ficciones es una persona en la frontera, un ser humano que está a punto de abandonar el mundo seguro y confortable del que está hecha la vida cotidiana para adentrarse en un territorio absolutamente nuevo.
By the way, Borges e matemática combinam muito bem:
http://en.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges_and_mathematics
Como já disse antes, falta interdisciplinariedade.
Certa vez vi em algum lugar (se não me engano, no documentário "O Universo de Stephen Hawking") alguém traçando um paralelo entre as equações da Física e os Hai-Kai japoneses.
ResponderExcluirSebastião
Sim, Sebastião. Tarahiko Terada foi um físico que fez algo dessa natureza. Lamentável eu não ter lembrado disso, quando escrevi a postagem. Grato pela informação.
Excluir
ResponderExcluirÁLGEBRA LÍRICA\AMOR ALGÉBRICO
EUCLIDES DA CUNHA (20/01/1866 -15/08/1909)
Acabo de estudar - da ciência vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente,
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.
Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz - sem aura, sem manhã,
A Álgebra criou - a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai, sem um sonho virente.
Acabo de estudar e pálido e cansado,
Dumas dez equações os véus hei arrancado,
Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz.
É tempo, é tempo pois, de, trêmulo e amoroso,
Ir dela descansar no seio venturoso
E achar de seu olhar o luminoso X.
Ano da publica c~ao do poema: 1884
Fenomenal! Simplesmente fenomenal! Esse tipo de iniciativa realmente justifica um blog como este. Todos nós, leitores, agradecemos.
ExcluirProf Adonai
ExcluirNa revista Cálculo n° 52, tem uma entrevista com um tal de Jacques Fux, matemático que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura, pelo romance Antiterapias.Conhece algo a respeito dele?
Não, Hugo. Não conheço. Mas parece algo interessante. Tentarei descobrir algo mais a respeito. Grato.
ExcluirTirando os livros infantis, a obra poética (adulta) de Charles Dodgson não é relevante e é pouco consistente, sendo considerada apenas como um dado histórico na biografia dele.
ResponderExcluirLá, como cá, Charles Dodgson reclamava muito do desinteresse dos seus alunos pela matemática, observando que a maioria não tinha afinidade com a matéria.
Pode até ser. Mas Jabberwocky é uma poesia de extraordinário impacto.
ExcluirSabe, professor, eu fazia Ciências Atuariais. Não deu para continuar por causa do trabalho. Fiz planos para Mestrado em Estatística e Doutorado em Ciência da Computação. Bom, o fato é que tenho 42 anos e não vejo que ainda haja tempo para começar de novo. Lendo o que o senhor escreve penso que a Matemática, que foi a matéria que eu ensinava para colegas, a preço de um pastel e um copo de suco, é mais que uma ciência, é o verbo HAVER do Haja Luz, dito pelo Criador. É a matéria da criaçao.
ResponderExcluirMarcelo
ExcluirPoesia e matemática sempre serão pagos com um pastel e um copo de suco, no máximo. Se pelo menos os professores de matemática percebessem o que você percebe, talvez este quadro mudasse.
Mas, com relação ao limitante da idade, peço que reconsidere sua posição. Eu, por exemplo, tenho 50 e ainda não desisti. Meu ex-orientador de doutorado tem mais de 80 e ainda trabalha intensamente. O fato é que nem sempre nos damos conta dos frutos deixados para trás. A vida é curta demais para não insistirmos. Eu, por exemplo, desde os meus dez anos de idade quero apenas uma coisa: olhar para trás e não me arrepender por aquilo que não fiz. Acho uma meta interessante.
Quando eu fazia Letras, meu professor de Latim perguntou à turma o que os levara ao curso. Na minha vez, eu disse que era porque gostava de Matemática e a Gramática tinha uma lógica que, mesmo tão simples, era obscurecida pelas arengas dos professores de Português. Ele me disse: Eu já fui professor de Matemática.
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