terça-feira, 17 de março de 2015
Matemática Angelical
Em 1946 um beduíno encontrou, por acaso, sete pergaminhos dentro de jarras escondidas em uma caverna em Qumran, a cerca de dois quilômetros da margem noroeste do Mar Morto, no Oriente Médio. Após passarem por muitas mãos de leigos curiosos e comerciantes céticos, em 1947 esses manuscritos finalmente chegaram ao arqueólogo John C. Trever, o qual rapidamente percebeu a fenomenal importância daquela descoberta. No entanto, a instabilidade política da região dificultou muito a busca por mais manuscritos. Foi somente em 1949 que escavações sistemáticas começaram a ser feitas em Qumran. O resultado foi assombroso. Mais de 900 manuscritos em hebraico, aramaico e grego foram encontrados em onze cavernas em Qumran. São documentos do período que compreende o século 2 a.C. até o primeiro século da Era Cristã.
Esses textos são de incalculável valor histórico, religioso e linguístico, pois eles revelam trechos da Bíblia Hebraica, bem como registros de costumes e considerável diversidade de pensamentos religiosos da época.
Nesta biblioteca digital o leitor pode ter acesso a imagens de milhares de fragmentos dos manuscritos do Mar Morto, incluindo as mais antigas cópias conhecidas de textos bíblicos.
Mas nesta postagem me concentro apenas nos manuscritos 4Q208 e 4Q209. O número 4 nessa codificação se refere ao fato de que tais manuscritos foram encontrados na Caverna 4 de Qumran.
Neste artigo de Helen R. Jacobus, publicado no ano passado em Mediterranean Archaeology and Archaeometry, a autora defende uma tese muito interessante. Segundo ela, os relógios de sol zodiacais que floresceram na cultura greco-romana entre os séculos 2 a.C. e 2 d.C. demonstram coincidências conceituais com um calendário zodiacal lunissolar identificado nos manuscritos 4Q208 e 4Q209. E um dos aspectos mais interessantes sobre o manuscrito 4Q208 reside nos diversos pontos de semelhança com o Livro de Enoch.
Apesar de não fazer parte do cânone hebraico ou cristão (Enoch é apenas citado no Novo Testamento), a Igreja Ortodoxa Etíope reconhece o Livro de Enoch como um dos componentes bíblicos. Mas cristãos em geral assumem que esta obra carece de inspiração divina.
No entanto, o fato é que esta escritura apresenta uma estrutura mitológica muito complexa, na qual se apresenta Enoch como um receptor de mensagens angelicais sobre magia, cosmologia, astronomia, astrologia e... um calendário. Sim, o arcanjo Uriel teria revelado um calendário a Enoch! E este calendário é sustentado por um sistema de doze "portões" celestiais. Apesar de ser praticamente unânime a visão de que esses "portões" celestiais nada têm a ver com os doze signos do zodíaco da cultura greco-romana, Jacobus insiste nesta tese a partir de evidências encontradas nos manuscritos de Qumran, os quais serviriam de ponte de ligação entre o Livro de Enoch e a cultura greco-romana.
Apesar do caráter inevitavelmente especulativo do trabalho de Jacobus, há nestes estudos algumas informações importantes, que podem ajudar a compreender as origens históricas da própria matemática.
Se existe alguma ordem matemática no mundo real, esta é uma questão ainda em aberto. Mas o fato é que o ser humano tem buscado encontrar padrões matemáticos no ambiente em que vive. E os registros mais antigos desta busca por padrões matemáticos se confundem com o nascimento da astronomia, da astrologia e da religião.
Na Idade Média a astrologia era levada muito a sério por alguns estudiosos respeitados no continente europeu. Até mesmo Johannes Kepler chegou a ganhar dinheiro fazendo horóscopo para pessoas ricas (uma curiosa maneira para manter seus estudos de astronomia).
Hoje se sabe que astrologia carece completamente de qualquer fundamentação racional. E também se sabe que religião e ciência são atividades culturais distintas demais para se pensar seriamente em um caráter científico amplo o bastante para abranger todos os aspectos religiosos ou em uma visão teológica abrangente o bastante para abraçar toda a ciência. No entanto, é muito difícil negar a contribuição da religião para o desenvolvimento dos primeiros passos históricos da matemática.
Matemática se desenvolve a partir de processos de abstração. E anjos, arcanjos e Deus parecem ter um caráter tão intangível quanto as abstrações da matemática. E essa intangibilidade é algo que fascina a humanidade há milênios. É como a cena final do filme A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud. Após monumentais batalhas do personagem principal, para simplesmente sobreviver, ele então descansa ao lado da amada e sonha com a Lua. É a mesma Lua que inspirou aqueles que tentaram compreender o mundo em que vivem, seja por ações divinas ou pela identificação de padrões matemáticos. Assumir que esses padrões matemáticos foram revelados por um arcanjo é simplesmente reconhecer que eles são belos demais para serem concebidos por um limitado e imperfeito ser humano. Ou seja, esta pode ser entendida como uma postura de humildade perante a própria matemática. De tão bela, somente um arcanjo poderia revelá-la.
Não há mais sentido na veneração da matemática, confundindo-a com uma manifestação divina. Mas é ainda natural para um matemático perceber que este ramo do conhecimento age como um ser vivo, de caráter intangível. Se não fosse assim, não haveria como a matemática ainda surpreender mesmo o mais experiente profissional. E quem surpreende, demonstra vida, seja divina ou não.
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Prof. Adonai,
ResponderExcluirTexto bem bacana.
A questão da religião e afins têm rendido aqui no blog, não?
Saudações,
Rodrigo
Rodrigo
ExcluirReligião é algo que sempre me interessou. Mas fica tranquilo. Pretendo publicar textos até mesmo sobre mercado de ações, entre outros assuntos.
Adonai, sou um jovem estudante e sempre tive interesse em descobrir formas de usar a matemática para investimentos financeiros. O senhor pode me indicar livros/professores ou materiais interessantes para desbravar esse caminho?
ExcluirGrato por manter esse Blog, graças a ele, estou aprendendo a amar ciências exatas.
Amigo, não sou o Adonai, mas acho que aqueles que sabem usar matemática para investimentos financeiros (o americano James Harris Simons é um exemplo) não escrevem livros ensinando os outros, porque seria tolice ajudar os concorrentes nisso... Geralmente os que vendem cursos ensinando a ganhar bastante dinheiro na bolsa (por exemplo), sobrevivem na verdade é de vender esses cursos! É provável que bons livros de estatística e economia possam te ajudar, mas nenhum deles vai te ensinar passo-a-passo como fazer bons investimentos. Isso você vai ter que descobrir por si só. :)
ExcluirCaros
ExcluirEstou iniciando uma parceria que pode resultar em uma postagem sobre o mundo dos investimentos. Mas como sempre procuro oferecer conteúdos e discussões que não se encontram em outras fontes, esse trabalho pode demorar alguns meses para ficar pronto.
O livro Beyond Measure, do Jay Kappraff, pode ser uma leitura interessante para quem se interessa por esses aspectos da Matemática.
ResponderExcluirhttp://en.bookfi.org/book/1321995
Sebastião
Grato pela dica, Sebastião.
ExcluirPor muito tempo ficou cristalizado em minha mente a idéia de que a Matemática teve como origem a necessidade de se criar regras de contagem e comparação, hoje em dia não tenho mais tanta certeza disso.
ExcluirA tendência é nos ensinarem a evolução das coisa de uma maneira muito bitolada. Pegue por exemplo a evolução das formas de vida: em livros geralmente se vê a figura de um bicho saindo de dentro do mar, mas será que nem mesmo uma pequena parcela dos seres vivos na Terra não tenha "saído de um rio", com ancestrais que viviam em água doce?...
Sebastião
Sebastião
"...esta pode ser entendida como uma postura de humildade perante a própria matemática. De tão bela, somente um arcanjo poderia revelá-la."
ResponderExcluirPenso que achar que o ser humano não pode elaborar pensamentos belos ou tão belos, é equivocado. Me parece mais submissão do que humildade. Na minha maneira de entender, humildade tem sentido humano e não angelical.
João Luiz
ExcluirConfesso que minha afirmação acima citada é mera opinião resultante de entusiasmo sobre as origens históricas da matemática.
Prof. Adonai,se o senhor puder,gostaria que comentasse a seguinte bibliografia de livros sobre Matemática: http://mat.ufrgs.br/~alopes/lislivbomteste.htm
ResponderExcluirP.S: Eu achei a iniciativa do Prof. Lopes sensacional (acho que seja de grande valia para interessados e bibliófilos amadores — como eu).Por falar em amantes de livros,eu sempre fiquei pensando na recomendação (tantas vezes repetida) de que devemos "ler muito".Afinal,leituras a granel realmente são tão frutíferas como falam? Aliás,na famigerada "era da informação",como separar o essencial do supérfluo? Como um estudante sério pode se guiar no meio de tanta imundície que é falada/escrita — em especial,em países de pouca tradição acadêmica como o Brasil?
Chico
Err, desculpe eu me intrometer (mas preciso comentar)!!! Bom... São livros excelentes, mas estimo que no mínimo 75% desses livros são nível mestrado/doutorado, e mesmo que você já tivesse concluído um curso de graduação em exatas, é muito provável que precisaria de algumas orientações de alguém experiente antes de estudar esses livros ali por conta própria! Achei estranho não listar os livros do Manfredo do Carmo em geometria... eles são mais didáticos do que alguns livros listados ali, e do mesmo conteúdo... Se você quiser uma visão mais ampla de matemática e bastante acessível, para começar, eu recomendaria o "Mathematics: Its Content, Methods and Meaning", dos grandes matemáticos russos Kolmogorov, Aleksandrov, et al., também não deixe de ler "Geometry and the Imagination" do David Hilbert, e os livros do Polya... Dá uma olhada no texto e nos livros que o V. I. Arnold recomenda em http://pauli.uni-muenster.de/~munsteg/arnold.html ... É isso. Depois você segue seus interesses... Mas isso varia de pessoa pra pessoa, alguns prefeririam outros livros... Por exemplo, de combinatória, eu prefiro os húngaros porque eles são cheios de problemas difíceis para o leitor resolver, mas outros gostam de livros com menos problemas e mais teoria... xD O professor Adonai também já falou do exemplo dos poloneses, que foram desbravar áreas pouco exploradas nos outros países potências em matemática, e se deram bem... Por exemplo, geometria algébrica é uma área "fashion" hoje em dia em matemática, e a concorrência é altíssima, tem grupos de pesquisa muito fortes, então ~talvez~ uma boa ideia seja não tentar concorrer com esses caras, e tentar desbravar áreas com menos concorrentes. ^^ P.S. O professor Adonai recomendou vários livros excelentes em algumas postagens aqui no Blog, dê uma procurada (!), eles são realmente muito bons. :)
ExcluirChico
ExcluirExaminei rapidamente a lista. Ela me parece simplesmente sensacional. Muito abrangente e com recomendações de altíssimo nível, incluindo vários clássicos.
Com relação à sua questão, a melhor recomendação que tenho é a seguinte: procurar contato com experientes pesquisadores de nível internacional, para receber deles as orientações básicas sobre o processo de escolha de literatura.
Prezados Anônimo e Prof. Adonai,fico grato pelas recomendações.Quanto ao processo de busca do conhecimento,acho que é por aí mesmo.Há que se travar contato com pessoas gabaritadas e que comunguem os mesmos interesses acadêmicos que os seus (caminho árduo por estas bandas,diga-se de passagem).Ademais,penso (ao menos quanto à Matemática) que se deve procurar livros com abordagens diferentes (Ex: livros com foco maior na teoria x livros com exercícios mais detalhados) para avançar no aprendizado.
ExcluirChico
Aliás,por falar em busca por conhecimento,acho interessante a tentativa do Prof. Adonai de oferecer um tratamento interdisciplinar aos temas aqui abordados.Por falar em interdisciplinaridade,o senhor conhece este livro do Mário Henrique Simonsen ? : https://liciomaciel.wordpress.com/2012/04/28/ensaios-analiticos-livro-de-mario-henrique-simonsen/
ExcluirP.S: Não conheço o referido livro,mas me chama a atenção que alguém com o potencial matemático do Simonsen (diz-se que ele tinha como hábito diário estudar matemática por 50 min.Fonte:http://educacao.uol.com.br/biografias/mario-henrique-simonsen.jhtm ) tenha perdido tempo (ou não) trabalhando para o governo.Para saber mais: http://www.impa.br/downloads/livro_impa_50_anos.pdf
Chico
Muito bem lembrado, Chico. Simonsen foi uma das poucas pessoas ligadas a governos que não era analfabeto. Outro caso é Delfim Netto. Na verdade precisamos de mais gente assim no governo federal e nos governos estaduais e municipais.
ExcluirAdonai
ResponderExcluirJá ouvi dizer, por exemplo, que uma das primeiras tentativas de medir o tempo e criar um calendário se deu com a divisão de medidas de tempo de modo que cada dia tinha inicialmente um total de 10 horas, mas que teriam percebido de algum modo que o sistema decimal não seria o mais conveniente para medir as horas do dia e, por isso, teriam passado a adotar o sistema com base 12, com meio-dia composto por 12 horas, um dia completo por 24 horas, os minutos com 60 segundos, a hora com 60 minutos e assim por diante.
Não sei se houve algum tipo de influência religiosa ou mística para a mudança nas convenções de medições temporais do dia de 10 horas para o dia de 24 horas, mas este é um assunto que muito me intriga.
Vc conhece algum material que aborde toda a lógica histórica de como as pessoas mudaram os modos de medir as horas, o que teria motivado o dia de 10 horas e o que teria induzido a uma mudança para o dia de 24 horas, entre outras mudanças de convenção????
Sempre me intrigou o modo como as pessoas teriam começado a estabelecer padrões de medida de tempo, mas não conheço ainda uma obra boa e completa o bastante sobre isto. Muitos usam o exemplo clássico da ampulheta contendo areia, mas isto não elucida o suficiente.
Teria como indicar algum material confiável ou talvez escrever uma postagem sobre este fascinante tema????
Leandro
ExcluirNão conheço suficientemente o tema. O pouco que pude perceber é que o resgate histórico dessas convenções é extremamente complicado. Há, por exemplo, quem diga que a divisão da hora em 60 minutos é herança do sistema numérico babilônico. Mas, evidentemente, seria necessário o preenchimento de lacunas históricas entre a cultura babilônica e a nossa para sustentar de forma sensata essa tese.