terça-feira, 21 de abril de 2015
Quantas dimensões você enxerga?
Nunca vi exceção. Todos os alunos que tive, até hoje, dizem que não conseguem imaginar um espaço com mais de três dimensões. Inerente a este discurso, existe a crença de que eles conseguem imaginar e até enxergar em um espaço tridimensional. Até mesmo experientes profissionais da área de ciências exatas alegam serem capazes de enxergar em três dimensões. Nesta postagem quero desfazer o mito do mundo tridimensional em que vivemos.
Uma das descobertas científicas mais espetaculares da história foi a concepção das geometrias não euclidianas, no século 19. A partir do trabalho pioneiro de Lobatchevsky ficou clara a seguinte ideia, entre outras: Geometria é um ramo da matemática independente de modos de percepção visual.
O conceito de dimensão, em matemática, é abstrato. E mesmo conceitos comuns da geometria são também abstratos, como ponto, reta, plano e espaço.
No entanto, teorias matemáticas sustentadas em conceitos abstratos são comumente aplicadas para modelar o mundo físico. Mas, de forma alguma devemos entender com isso que o caráter ontológico de uma teoria matemática necessariamente espelha o caráter ontológico do mundo físico.
Cito dois exemplos: mecânica corpuscular clássica e mecânica quântica.
Mecânica corpuscular clássica é parcialmente desenvolvida em espaços tridimensionais. O que isso significa? Significa que posições e velocidades de partículas são descritas como funções sobre um espaço vetorial de três dimensões. Ou seja, partículas e espaço são meramente conceitos matemáticos.
Surpreendentemente, é possível corresponder esses conceitos abstratos a objetos do mundo real. Neste sentido, não basta para o físico ter em mãos uma teoria matemática. É necessário ele fazer uma correspondência entre os conceitos matemáticos disponíveis e aquilo que ele pode efetivamente medir no mundo real. Por conta disso que existem aqueles que definem teoria física como uma tripla ordenada (M, D, r), sendo que M é uma teoria matemática, D é o domínio de aplicação (mundo real) e r é um conjunto de relações entre M e D.
Muito se sabe sobre M e D. Mas a literatura sobre as relações r é ainda muito pobre. Nada se sabe sobre elas. Por conta disso que existem tantas discussões sobre o caráter ontológico de teorias físicas. Justamente porque ainda não se sabe o quão fiel a matemática é, para informar sobre a natureza íntima do mundo real.
No caso da mecânica corpuscular clássica, diz-se que uma partícula pode ser localizada em um espaço tridimensional. E, a partir disso, cria-se uma intuição física na qual se fala de posições horizontais, verticais e de profundidade, relativamente a um observador físico.
No entanto, o fato de podemos criar uma intuição física para um espaço tridimensional exclusivamente matemático não significa que vivemos em um mundo tridimensional. Afirmar isso retrata a pretensão de conhecermos a natureza íntima do espaço físico. A bem da verdade, não sabemos sequer se existe algum espaço físico.
Na mecânica quântica a posição de um objeto físico (como um elétron) é descrita em um espaço vetorial conhecido como espaço de Hilbert. E este espaço de Hilbert tem infinitas dimensões.
Observe que o propósito é ainda o mesmo: localizar uma partícula. No entanto, para acomodar características atípicas de certas partículas, físicos perceberam que não podem mais usar espaços vetoriais de três dimensões para dizer onde, por exemplo, um elétron está.
Um espaço vetorial de três dimensões é usualmente descrito como um caso particular de conjunto. E um conjunto é um conceito abstrato. É simplesmente impossível enxergar um conjunto. Ainda que os elementos de um conjunto pudessem ser objetos do mundo real (como pessoas ou canecas), o conjunto em si não pode ser percebido pelos sentidos físicos. O conjunto das pessoas que já leram alguma postagem deste blog é um conceito abstrato que persiste mesmo quando todas essas pessoas já tiverem morrido daqui a cem milhões de anos. É possível, por enquanto, ver essas pessoas. Mas o conjunto em si não pode ser visto, apesar de poder ser matematicamente definido.
Se físicos trabalham com espaços de dimensão infinita, para realizar a simples tarefa de dizer onde um elétron está, é porque esses mesmos físicos estão se empenhando em desenvolver uma intuição diferente daquela explorada em mecânica corpuscular clássica.
A verdade é que nada sabemos sobre o suposto espaço físico que parece nos envolver. Se você acha que enxerga em três dimensões, precisa rever o que entende por "dimensão". Se a palavra "dimensão" for empregada no sentido matemático usual, você está enganado. Não é possível enxergar em dimensão alguma. Se a palavra "dimensão" é usada em outra acepção, então esclareça sobre o que, afinal, você está falando.
Quando vídeos são exibidos na internet para criar uma visão intuitiva sobre espaços de dimensão superior, eles invariavelmente estão comprometidos com um único caráter ontológico. Intuições não precisam ser desenvolvidas apenas de um ponto de vista geométrico, antenado com preconceitos com os quais estamos simplesmente acostumados. Intuições podem também ser desenvolvidas sob outras perspectivas. Por que não desenvolver, por exemplo, uma intuição algébrica sobre dimensões?
Observe que até mesmo a linguagem natural que emprego nesta postagem é impregnada de preconceitos que apenas estreitam a capacidade de compreensão sobre matemática. Afinal, usei a expressão "outras perspectivas" no parágrafo acima. E "perspectiva" é um termo comumente associado a geometria.
Em suma, se você deseja se libertar de graves preconceitos sobre seus modos de percepção do mundo, estudar matemática é uma alternativa interessante. Pelo menos você começa a se acostumar com outras formas de percepção.
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Boa noite professor.
ResponderExcluirDe inicio gostaria de parabenizar pelo conteudo diferenciado, e pelo blog que é continuamente atualizado. Acompanharei de agora as novas postagens e lerei as antigas.
Quanto ao assunto, houve uma tentativa hollywoodiana de deixar palpavel essa experiencia humana de estar em mais de tres dimensões. Foi no filme interestelar.
Pessoalmente achei piegas, (spoiller alert) , ele cair em um buraco negro e de repente estar dentro do quarto da filha, em diferentes pontos do tempo.. ficou estranho. Caso assistiu o filme , favor opinar.
Uma dica de assunto, algo que me impressiona, é o teorema de godel. Vi vários videos na internet - infelizmente em ingles, para entender minimamente. Acho bacana por suas implicações filosóficas e até, por que não, filosóficas.
Keep on . E ate mais.
corrigindo
Excluir*até, por que não, teologicas.
Marcelo
ExcluirSeja bem-vindo a este fórum. As atualizações das postagens estarão menos frequentes, em virtude de uma série de vídeos que estou produzindo e que devo publicar em agosto. Mesmo assim, continuarei a veicular textos novos com certa frequência.
Quanto ao filme Interestelar, assisti. Não considero o final piegas. O fato da personagem principal se encontrar no quarto da filha após cair em um buraco negro pode ser interpretado de múltiplas maneiras. Christopher Nolan é um diretor que, definitivamente, não pode ser subestimado. O filme tem o seu valor sim, apesar de não estar entre os melhores de Nolan.
Quanto ao teorema de Gödel, pensarei a respeito.
Grato pelo apoio.
Excelente texto, Adonai. Faz tempo que me inquieta o fato de a matemática modelar fenômenos físicos com precisão, muitas vezes, impressionante - vide a eletrodinâmica quântica. Frente à história de sucessos descritivos e preditivos de muitos modelos matemáticos fica até compreensível porque físicos de calibre estão convencidos de que é necessário afrouxar os critérios de falseabilidade para algumas teorias físicas modernas, como a teoria de cordas. Um texto interessante sobre o porque de a matemática fitar tão bem a realidade foi escrito por Mario Livio e publicado na Scientific American algum tempo atras. Caso lhe interesse, achei o texto "Why math woks" em formato .pdf no link http://www.cs.virginia.edu/~robins/Why_Math_Works.pdf
ResponderExcluirAbraço
Grato pela ótima referência. Certamente lerei.
ExcluirCaro Professor,
ResponderExcluirdesculpe se meu comentário soar meio bobo, mas caso o sr. me fizesse essa pergunta: "Quantas dimensões você enxerga?" e não me fornecesse mais nenhum dado e eu respondesse: "Enxergo 89 dimensões.", haveria algum sentido na minha afirmação?
Eu não imagino que eu consiga lhe provar que eu enxergue 89 dimensões, mas também não consigo lhe provar que enxergo 3 dimensões ou uma sequer. Também não imagino que o sr. consiga me provar que eu enxergo qualquer coisa, ainda menos dimensões.
Não seria o caso, então, da linguagem ser mais precisa?
Por exemplo, durante a aula, quando compartilhamos de uma linguagem rígida da Teoria Formal conseguimos provar que "L" é decidível.
No âmbito dessa discussão para podermos chegar a qualquer afirmação não precisaríamos primeiro de uma linguagem mais clara?
Algo próximo de: "dada a configuração normal do olho humano e o funcionamento normal do cérebro humano é possível enxergar alguma forma composta por mais do que planos com profundidade?"
Mas uma linguagem tão precisa não vai acabar se tornando pouco prática para descrever a realidade? Ainda mais se partimos de um pressuposto segundo o qual não entendemos a realidade em si, mas somente o reflexo dos nossos sentidos sobre ela? (se for isso que o sr. quis afirmar quando escreveu: "A verdade é que nada sabemos sobre o suposto espaço físico que parece nos envolver."?)
Um abraço,
Tales
ExcluirEspero ter entendido sua questão. O emprego de matemática para compreender o mundo real parece apenas tangenciar uma alegada realidade, sem jamais ir direto ao ponto. E emprestar vocabulário usual da matemática para incorporar na linguagem natural comumente gera confusão. Estar diante de três frutas, por exemplo, permite ver as frutas. Mas certamente não permite ver o número 3.
Excelente texto!
ResponderExcluirSegue outro bem conhecido:
A Desarrazoada Efetividade da Matemática nas Ciências Naturais
Eugene Wigner
http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Wigner-3.pdf
Texto excepcional, Krishnamurti. Grato.
ExcluirProfessor Adonai
ResponderExcluirO único modelo de descrição de fenômenos físicos através da Matemática que tive contato até hoje é o newtoniano, onde, ao menos ao meu entender, considera-se o universo em que vivemos como um espaço de três dimensões (Desconsiderando o "espaço absoluto" proposto no sistema do mundo, que mais parece uma ferramenta metafísica para contornar o problema de diferentes velocidades para diferentes sistemas tomados como referenciais ). Acredito que os modelos posteriores , mesmo os relativistas, também façam uso de um espaço tridimensional. Nota-se então que os modelos físicos de três dimensões explicam bem os fenômenos naturais até uma certa escala, mesmo que hajam atualmente evidências de mais dimensões ao se estudar a física subatômica. Considerando isso podemos afirmar que os modelos considerados até então foram escolhidos de maneira totalmente arbitrária? Pode-se modelar os fenômenos físicos, ao menos os macroscópios considerando mais de três dimensões?
PS: Quanto aos espaços de Hilbert gostaria de perguntar: estes são apresentados em cursos de graduação em Matemática, como Topologia ou Análise , ou são apenas um tipo de espaço específico pertencente a uma determinada área desta ciência?
Lucas
ExcluirTeorias relativistas, como a relatividade especial e o eletromagnetismo de Maxwell, contam com leis invariantes sob a ação do grupo de Poincaré, aplicado a um espaço de quatro dimensões. A teoria da relatividade geral também trata de espaços de quatro dimensões. E todos esses exemplos são aplicáveis ao mundo macroscópico.
Quanto a espaços de Hilbert, este é um tema usualmente estudado em disciplinas de análise funcional. Comumente isso é lecionado em graduações de matemática, especialmente na modalidade de bacharelado.
Ou em cursos de Física Matemática e Métodos Matemáticos ministrados por professores excepcionais:
ExcluirAnálise Funcional
Capítulo 37. Noções Básicas Sobre Espaços de Hilbert
http://denebola.if.usp.br/~jbarata/Notas_de_aula/capitulos.html
Métodos Matemáticos
https://www.ufpe.br/proten/images/documentos/nmmatematicos.pdf
Caro Kynismós!
ExcluirAgradeço os Links com materiais sobre o assunto, mesmo que com certa lentidão (já que careço de quaisquer noções sobre matemáticas que escapem de noções elementares de Derivação e Integração ), lerei sem sombra de dúvidas os textos disponibilizados.
Caro Professor
ExcluirAgradeço pelos esclarecimentos acerca das perguntas levantadas.
O senhor já assistiu a O Enigma de Kaspar Hauser?
ResponderExcluirSebastião
Sim, Sebastião. Eu até tenho este filme em minha coleção. Gosto muito de Herzog. Este filme conta com diálogos impressionantes. No entanto, apesar do diretor alegar que o filme é baseado em caso verídico, existem aqueles que contestam. Aparentemente a história de Kaspar Hauser foi uma fabricação. Mesmo assim é um filme belíssimo.
ExcluirTenho minhas razões para crer que esse filme diz muito sobre a condição do autista.
ExcluirSebastião
Ideia interessante. Valeria a pena saber o que psicólogos diriam a respeito disso.
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