sábado, 20 de setembro de 2014

A correlação entre opiniões sobre ciência e a capacidade de fazer ciência


O método Delphi é uma técnica criada nos anos 1960 e até hoje amplamente usada para obter informações convergentes sobre opiniões de profissionais de áreas específicas de atuação. 

Em 2003, por exemplo, Jonathan Osborne (Stanford University) e colaboradores publicaram artigo no qual empregaram o método Delphi para apurar opiniões convergentes sobre a natureza da ciência entre profissionais da filosofia, educadores, historiadores, divulgadores científicos e cientistas. Uma das visões em comum apuradas é a de que cientistas não seguem a tal da metodologia científica até hoje lecionada em instituições de ensino. Talvez por isso mesmo inúmeros professores de metodologia científica de nosso país insistem tanto em doutrinar alunos para seguirem as amalucadas normas da ABNT para a produção de textos. Afinal, para esses docentes forma parece ser mais importante do que conteúdo, quando o assunto é ciência.

Já em outubro do ano passado, Irene Y. Salter e Leslie J. Atkins (ambas da California State University) publicaram um fascinante artigo em Science Education no qual as autoras comparam opiniões de alunos sobre a natureza da ciência com a capacidade desses alunos se engajarem em atividades de investigação científica. Os discentes avaliados nesta pesquisa foram de um curso de licenciatura em ciências da própria California State University

O resultado da pesquisa de Salter e Atkins foi contundente. Opiniões de alunos sobre a natureza da ciência não constituem medida confiável para avaliar a capacidade de se engajarem em atividades de investigação científica. Reciprocamente, a competência para a realização de atividades científicas investigativas não garante que alunos tenham opiniões sobre a natureza da ciência que sejam consistentes com aquilo praticado por eles mesmos. 

Estes são resultados importantes, se levarmos em conta alguns fenômenos sociais bastante comuns, como a existência de fóruns populares destinados à discussão de ciências e o fato de existirem pesquisadores altamente qualificados que preferem seguir caminhos periféricos em suas vidas profissionais. 

No fórum Clube da Física, por exemplo, há quase dezenove mil membros. Em um país como o Brasil este é um número muito elevado para um fórum de discussões sobre física. Entre as regras do grupo há uma que estabelece o seguinte: "Caso você queira desbancar a teoria da relatividade, por exemplo, sinta-se a vontade para cursar a graduação em física, fazer seu mestrado, seu doutorado, começar suas pesquisas e provar que você está certo." Além de ser um argumento da autoridade e, portanto, de postura não científica, esta visão não encontra interseção alguma com a lista de convergências apuradas por Orborne, no trabalho acima citado. Pelo contrário, segundo Osborne e colaboradores, uma das opiniões convergentes apuradas entre profissionais ligados às atividades científicas é a de que cientistas são humanos e, portanto, as questões, respostas e explicações escolhidas por eles dependem de histórico pessoal e cultura local. Por isso mesmo a última regra da lista imposta pelo Clube da Física faz menos sentido ainda: "Por favor evite ser idiota."

O outro lado da moeda é a existência de profissionais altamente qualificados que insistem em uma ruptura com o senso crítico, como se estivessem em busca de auto-conhecimento alimentado por um senso próprio de popularidade. 

Recentemente recebi e-mail de um ex-aluno, intitulado "Sabedoria quântica, cura quântica, saúde quântica." Ele está preocupado com iniciativas como a de meu ex-aluno Gabriel Guerrer. 

Guerrer foi um dos pupilos mais brilhantes que já tive. Um de seus primeiros trabalhos científicos foi escrito em parceria comigo. Com doutorado obtido no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e estágio realizado no Grande Colisor de Hadrons do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), hoje Guerrer segue um caminho que muito se assemelha ao de Amit Goswami, o famoso indiano que busca unificar física quântica com espiritualidade. E não são poucas as pessoas que gostam de ouvir discursos de uma suposta harmonia entre ciência e misticismo. Afinal, bastam intuições pessoais para muitas pessoas se regozijarem com uma suposta sabedoria conquistada sem os necessários cuidados que somente podem ser avaliados através da próxima interação com uma quantia considerável de profissionais qualificados. É justamente este o ponto analisado por pessoas como Osborne, Salter e Atkins. Ciência é uma atividade social desenvolvida por aqueles que estão diretamente envolvidos com ciência e não uma especulação propagada por meros curiosos, alunos ou ex-pesquisadores cercados por pessoas sedentas por conhecimento mas desprovidas de energia para encarar trabalho sério. 

Como Orborne observa, os próprios cientistas discordam entre si, justamente porque o conhecimento científico não emerge apenas a partir de dados, mas também de um processo de interpretação e concepção teórica. Neste sentido a atividade de divulgação científica é uma das mais arriscadas do ponto de vista social, justamente porque conhecimentos científicos devem ser informados para um público leigo, não comprometido diretamente com ciência. E, neste contexto, é um ato de irresponsabilidade divulgar ciência combinada com uma postura mística de auto-conhecimento espiritual. Não afirmo isso por negar quaisquer relações entre misticismo e ciência, mas por reconhecer que se tais relações existirem ainda estão muito distantes de evidências suficientemente convincentes.
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Clicando aqui o leitor tem acesso a críticas de Gabriel Guerrer.

10 comentários:

  1. (Completando o comentário anterior, que não coube por excesso de caracteres). Eu acho que o fato de que cientistas “não seguirem a metodologia científica”, se é que eles seguem ou não, talvez seja um fator secundário que contribui ao formalismo que perpassa o “ensino para a pesquisa” no Brasil. Em vez de ensinar aos alunos como funciona uma pesquisa, há divagações sobre o que seria o “método científico”. Em vez de apresentar várias possibilidades metodológicas, várias abordagens e sua adequação em relação às respostas a diferentes questões, tenta-se apresentar um molde formal. O que impulsiona sempre os professores de “metodologia” ou “TCC” a doutrinarem os mínimos detalhes das “normas” da ABNT é a própria falta de formação desses mesmos professores para a pesquisa, além do próprio ranço jurídico, burocrático, formalista e autoritário que sói perpassar todas as instituições de ensino deste país.

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    1. Youssef

      Você faz referência a um comentário anterior que não recebi. Lamento muito por essas confusões do blogger. De qualquer modo devo dizer que concordo integralmente com o que diz acima.

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    2. Adonai, realmente, isso acontece às vezes. Mas vou postar a primeira parte do comentário novamente.

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    3. Também concordo com Youssef.

      Às vezes a doutrinação em certas instituições é tão grande (não é o meu caso) que os alunos tem um certo "medo" de perderem pontos nos trabalhos por descumprirem alguma norma. Isso faz a produção do conteúdo em si ficar em segundo plano.

      Em alguns casos extremos, a idolatria por normas é tão grande que um TCC acaba sendo avaliado por cumpri-las. Ou seja, estética acaba tendo mais valor do que ideias.

      As afirmações que faço são baseadas em situações que presenciei, vivenciadas por amigos.

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  2. Adonai, o artigo de Osborne de 2003 citado lida com as atitudes de estudantes (do primário e secundário) para com a ciência (citando dados principalmente do Reino Unido e EUA). Pode ter sido um erro meu, mas não vi a afirmação, que teria sido apurada nesse artigo, de que “cientistas não seguem a tal da metodologia científica até hoje lecionada em instituições de ensino”.
    Tendo a entender sua frase “cientistas não seguem a tal da metodologia científica até hoje lecionada em instituições de ensino” (seria uma interessante um estudo social sobre isso, mas não é minha área), como possivelmente duas coisas: a) cientistas aplicam o método científico sem ter ideia desenvolvida sobre a natureza da ciência (isto é, sem ter ideia filosófica formada a respeito da ciência) e b) cientistas têm uma atitude para com a prática ou o resultado da ciência (possivelmente em áreas específicas) que não condiz com uma atitude em relação à ciência “em geral” preconizada ou suposta por uma visão holística e filosófica da ciência em contraposição com uma visão parcial e social da ciência. A questão a) foi tratada por cientistas sociais das mais variadas persuasões teóricas. Uma posição que acho interessante é a fenomenologia de Shutz, em que a maioria das atitudes sociais quotidianas acontece no “mundo da vida” – atitudes que se assimilam ou se aprendem socialmente. Atitudes para com a tecnologia se incluem aí: eu posso utilizar tecnologia, saber como funciona, mas não sei construir ou consertar um carro ou um computador. Eu posso pelo menos supor que a maioria das pessoas engajadas em pesquisa acadêmica tem uma noção relativamente boa de como proceder para realizar essa pesquisa em sua área. Isso também é comprovado em pesquisas empíricas, como a que você citou, de Irene Y. Salter e Leslie J. Atkins (um caso de estudantes e não pesquisadores “profissionais”). Isso tem a ver, em sua esmagadora maioria, com trabalhos que seriam chamados por Kuhn de “ciência normal”, ou de “ciência aplicada” ou de “resolução de problemas”. Esse processo tende a ser bastante simples (mas não estou dizendo que seja fácil) em ciências biológicas, médicas, físicas ou aplicadas, em que podem ser feitos experimentos, observações, cálculos etc. Em relação à questão b), é de se esperar que as pessoas realmente não “sigam o método científico” em situações sociais que não o exigem. Ou mesmo que não sigam o método científico em outros ramos da ciência que não lhe digam respeito, pelas mais variadas razões. O valor da ciência não é intrínseco; ele é necessariamente social. Weber já dizia em 1917 em Ciência como Vocação que a ciência não pode responder às grandes questões existenciais. O valor da ciência é atribuído “de fora”. Isso é mostrado por pesquisas que mostram que nem sempre o valor que é atribuído à ciência vem de um conhecimento direto de métodos e conceitos científicos específicos (“Public understanding of, and attitudes toward, scientific research: what we know and what we need to know”, de Jon D. Miller, http://news.msu.edu/media/documents/2009/02/ea85b0d5-ff05-48d2-91eb-1b7d0641137f.pdf). Assim, esperar que os valores (ou as atitudes, mesmo que dos cientistas) sejam moldados por preceitos científicos (um exemplo: “agora eu vou acreditar no darwinismo social e agir segundo ele”) é um contrassenso, assim como esperar que os preceitos da prática científica sejam guiados por valores (crenças) que lhe são estranhos (como ensinar o criacionismo como “teoria científica”). Idealmente, essas áreas da vida social têm padrões de conduta (e padrões de pensamento) que devem permanecer separados.

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    1. Youssef

      O artigo de Osborne é *uma* das referências de Salter e Atkins para a discussão sobre o emprego da metodologia científica entre cientistas. Ou seja, não fui suficientemente claro em minha exposição. De qualquer modo pretendo escrever uma postagem sobre os graves limites da tal da metodologia científica. E suas observações, nesta postagem, serão levadas em conta e discutidas.

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  3. Acho que viria bem a calhar exemplos de alguns cientistas que se destacam tanto por suas contribuições científicas quanto por suas opiniões sobre ciência. O prof. poderia nos dar alguns? Talvez Henri Poincaré?

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    1. Henri Poincaré é um exemplo realmente ótimo. Pensarei a respeito do tema.

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  4. Caro Adonai,

    creio que um (ou mais) dos administradores do "Clube da Física" é o mesmo da que foi a maior comunidade de Física do Orkut. Há vários outros exemplos de atitudes e discursos altamente questionáveis da parte deles. Dois exemplos:

    a) http://parapsi.blogspot.com.br/2009/01/preconceito-e-censura-na-comunidade-de.html

    b) http://parapsi.blogspot.com.br/2009/02/e-o-preconceito-continua-na-comunidade.html

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    1. Enfant

      Assim que puder, lerei as referências. Grato.

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