segunda-feira, 30 de setembro de 2013

QUALIS = Uróboro



Durante minha carreira jamais prestei atenção em parâmetros brasileiros de produção acadêmica. Meu Curriculum Vitae na Plataforma Lattes sempre foi incompleto; somente uma vez formatei artigo meu de acordo com a repugnante ABNT (não tive escolha, na época); e sempre estranhei a obsessão de colegas meus com o tal do QUALIS da CAPES. Meus padrões para produção científica e filosófica sempre foram baseados em critérios internacionais. Hoje reconheço que esta postura foi um erro meu. Foi um erro que pretendo remediar parcialmente nesta postagem. O QUALIS não pode ser ignorado, simplesmente porque ele serve de orientação para pesquisadores e até mesmo estudantes do país inteiro. E, por bem ou por mal, eu vivo e trabalho no Brasil. 

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) criou e sustenta um sistema de avaliação de periódicos especializados tanto nacionais quanto internacionais. Este sistema é conhecido como QUALIS. E tal fato é muito intrigante. Por um lado, a avaliação de perfil de periódicos especializados é uma tarefa extremamente complicada. E, por outro lado, já existem instrumentos confiáveis que promovem tal avaliação sobre periódicos do mundo inteiro. Portanto, por que um órgão brasileiro de fomento à pesquisa precisa criar um sistema como o QUALIS? E por que o QUALIS é usado para fins de avaliação de produção intelectual? Esta é uma forma de insistir na diferença entre ciência brasileira e ciência praticada no resto do mundo? 

Nas duas últimas postagens fiz uma breve avaliação sobre o perfil da produção filosófica brasileira. E os primeiros resultados foram assustadores. Diferente da produção acadêmica em áreas como física e matemática, a filosofia brasileira é praticamente inexpressiva. E, apesar disso, há um considerável apoio financeiro para pesquisas filosóficas que não têm relevância alguma perante o mundo. 

No entanto, é importante destacar que, como qualquer rede social, existe uma intrincada relação entre instituições e pessoas em nosso país. São pessoas que concebem e mantém instituições. E são instituições que definem o rumo profissional de pessoas. A discussão sobre a produção intelectual de filósofos brasileiros remete apenas a um dos ingredientes da rede acadêmica de nossa nação. Mas tal discussão fica incompleta enquanto não for promovida uma análise sobre influências institucionais. Afinal, os profissionais mais velhos de hoje definem instituições que exercem poderosas influências sobre os mais jovens. Em outras palavras, o sistema alimenta a si mesmo. Resta saber de que forma.

Neste sentido, a presente postagem pode ser entendida como a terceira parte de uma discussão iniciada aqui sobre a produção filosófica brasileira. 

O Scientific Journal Rankings (SJR) da SCImago é um conhecido e respeitado instrumento de avaliação da influência científica de periódicos especializados. Esta ferramenta opera de maneira parecida com o algoritmo PageRank, usado no mundo inteiro para avaliar a importância social de sites na internet. De acordo com o SJR (avaliação de 2012), os vinte periódicos mais importantes em filosofia são os seguintes: 

1. The Philosophical Review (EUA)

2. Ethics (EUA)

3. Nous (Grã-Bretanha)

4. The Journal of Philosophy (EUA)

5. Logica Universalis (Suíça)

6. Review of Philosophy and Psychology (Alemanha)

7. British Journal for the Philosophy of Science (Grã-Bretanha)

8. Mind (Grã-Bretanha)

9. Philosophical Quarterly (Grã-Bretanha)

10. Analysis (EUA)

11. Journal of Philosophical Logic (Holanda)

12. Logic Journal of the IGPL (Grã-Bretanha)

13. Philosophy and Phenomenological Research (Grã-Bretanha)

14. Philosophical Studies (Holanda)

15. Australasian Journal of Philosophy (Grã-Bretanha)

16. Review of Symbolic Logic (Grã-Bretanha)

17. Synthese (Holanda)

18. Philosophy of Science (EUA)

19. Erkenntnis (Holanda)

20. Studies in History and Philosophy of Science Part B - Studies in History and Philosophy of Modern Physics (Grã-Bretanha) 

Mesmo entre os cinquenta melhores periódicos de filosofia não há um único brasileiro. 

Agora comparemos os critérios internacionais do SJR com o sistema QUALIS da CAPES. De acordo com o QUALIS, cada um dos três melhores periódicos de filosofia do mundo tem conceito C, o mais baixo de todos. O norte-americano The Journal of Philosophy, que aparece no SJR como o quarto melhor periódico de filosofia do mundo, sequer consta no sistema QUALIS. Na verdade, apenas quatro periódicos da lista acima têm conceito A no QUALIS. A maioria tem conceito C, uns poucos têm conceito B e outros sequer são listados na base de dados da CAPES. E outras inconsistências entre SJR e QUALIS ocorrem, além dessas. Periódicos brasileiros de filosofia como Kriterion e Manuscrito, tão procurados pelos filósofos de nossas terras, têm ambos QUALIS A. Mas nenhum deles consta na lista SJR dos cinquenta melhores periódicos de filosofia. 

O leitor pode questionar sobre os motivos para tais inconsistências. Pois bem. A explicação está nos critérios usados pela própria CAPES. De acordo com o Comunicado número 001/2013 da CAPES (Área de Filosofia), assinado por Danilo Marcondes de Souza Filho, Ivan Domingues e João Carlos Salles, "[P]eriódicos em que não houve publicação por membros do corpo docente ou discente de um curso de pós-graduação em Filosofia no país são colocados na categoria C provisoriamente de modo a não contarem no percentual alocado pela Capes para os diferentes estratos e que não inclui o C. Quando houver publicações nesses periódicos eles serão então reclassificados, levando-se em conta a classificação anterior."

Em primeiro lugar, tal critério parte do pressuposto de que somente indivíduos vinculados a programas de pós-graduação podem ter suas publicações consideradas pela CAPES. Isso, por si só, não é uma estratégia inteligente. Mas o mais surpreendente é o bizarro ciclo imposto por tal regra. Pesquisadores brasileiros na área de filosofia são naturalmente impelidos a publicar artigos em periódicos classificados como QUALIS A. Afinal, isso facilita no processo de concessão de bolsas e (oficialmente) tem repercussão na avaliação de programas de pós-graduação. No entanto, importantes periódicos internacionais de filosofia são avaliados com QUALIS C ou até mesmo ignorados por esta base de dados, simplesmente porque não há brasileiros publicando neles. Logo, o QUALIS se demonstra como uma iniciativa institucional para (deliberadamente) isolar a filosofia brasileira do resto do mundo. Esta é parte da estratégia da CAPES para perpetuar um sistema de simples solidão. 

A única vantagem que consigo perceber neste monstro que se alimenta da própria cauda é a confortável ilusão de uma produção intelectual que interessa apenas a membros da grande família brasileira. 

Espero que o leitor não esteja cansado com tantas postagens seguidas sobre a filosofia no Brasil. Desde que o tema surgiu, tenho recebido um considerável volume de e-mails e mensagens no facebook, tanto de críticos quanto daqueles que apoiam e complementam as ideias aqui expostas. Um dos e-mails que recebi foi do lógico Jean-Yves Beziau, o qual chamou atenção para os conflitos entre QUALIS e a realidade mundial. O fato é que uma filosofia relevante certamente pode ter repercussões importantes sobre outras áreas do conhecimento, incluindo matemática. Mas, com o atual quadro da filosofia brasileira, nosso país só está perdendo... novamente.

15 comentários:

  1. Esse tal QUALIS é mais uma jabuticaba...

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  2. A situação na área de Ciências Agrárias não é muito diferente, talvez até pior. A coisa por aqui é continuar a incensar os "gênios municipais", as vacas sagradas. Após os últimos "ajustes" que a intelligentsia (?) nacional fez no Qualis Agrárias, as ridículas figuras dos "Notórios Saber Regionais" saíram fortalecidas, enquanto que uma verdadeira medida de qualidade foi falsificada. A desmoralização do Qualis Agrárias foi por três vias: (i) o sistema de equivalência de conceitos, inflando a pontuação de periódicos pouco relevantes (como a correspondência entre artigo em periódico B2 valer 60% da pontuação de um periódico A1), (ii) pela escandalosa pontuação diferenciada de periódicos nacionais e internacionais, com bônus para os primeiros; e pela (iii) aglutinação exagerada de fatores de impacto na categoria B1 (IF de 0,001 a 1,499), de modo a juntar "alhos com bugalhos". Não é realmente necessário que o Brasil, via Qualis, faça uma "reinterpretação" particular dos critérios de qualidade. Os fatores de impacto são medidas estatísticas, tem mais valor quando examinadas diretamente, sem as mistificações introduzidas pela classificação Qualis. A quem serve a mistificação?

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    1. Adalberto

      Alguém está discutindo sobre esses problemas em ciências agrárias? Pergunto porque isso é fundamental.

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  3. Adonai, saindo um pouquinho do assunto específico, fiquei em dúvida no seguinte trecho: "[...] Afinal, os profissionais mais velhos de hoje definem instituições que exercem poderosas influências sobre os mais jovens. Em outras palavras, o sistema alimenta a si mesmo. Resta saber de que forma. [...]"

    Ok, mas então o que teria acontecido para que, no decorrer dos anos (de 1950 para cá, por exemplo), a Educação brasileira decaísse tanto em qualidade, se isto tudo é um processo "retroalimentativo"?????

    Ou desde a década de 50, a Educação já estava mais ou menos como nos dias de hoje?????

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    1. Leandro

      Sua pergunta é ótima. Mas não acho que eu consiga responder de forma responsável em um texto de poucas linhas. O que você questiona demanda um sério estudo sociológico e histórico. Neste momento não consigo fazer isso.

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    2. Algumas pistas:

      "Ensino de Física no Brasil segundo Richard Feynman"

      http://www.uel.br/cce/fisica/pet/EnsinoRichardFeynman.pdf


      "Uma geração de doutrinados"

      http://www.filosofiacirurgica.com/2011/04/uma-geracao-de-doutrinados.html

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  4. Quanto ao sistema QUALIS, não sabia dessa enorme e gritante diferença e descompasso em relação ao outro sistema internacional...........

    Para mim, foi uma grande (e triste) surpresa, pois a profa. Jaísa sempre falou muito bem desse QUALIS, ressaltando a importância de se publicar um artigo em um periódico QUALIS A, de modo que todos nós passamos a acreditar que o sistema QUALIS era o suprassumo em termos de avaliação de periódicos a nível internacional..........

    Pelo jeito não é bem assim e talvez a professora esteja enganada........

    Começo a pensar que o melhor caminho que tomei para minha vida foi não fazer doutorado e não dar prosseguimento na Pesquisa, pois esta realmente parece estar a anos-luz de distância da seriedade.........

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  5. É igual em todas as áreas, QUALIS (QUAse uma LISta).

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  6. Caro Adonai,
    excelente! Lembro que estou trabalhando num projeto de doutoramento em filosofia sob orientação do Décio em Teoria de Quase-categorias, de fato uma abordagem categorial de quase-conjuntos. Na banca de admissão no programa um dos membros me perguntou o que tinha de filosófico no meu projeto. Para muitos filósofos brasileiro não a nada de filosófico nisso. Pergunto: no que consiste então a filosofia no Brasil?

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  7. Não podemos generalizar. O QUALIS da Computação é muito bom. E não sou Bolsista de Produtividade. Não tenho nada a perder.

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  8. Este comentário foi removido pelo autor.

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  9. EXCELENTE COMENTÁRIO! Porque não dar uma palestra nas Ciências Da Informação em Marília, UNESP?

    O escrever um artigo com um estudo bibliométrico?

    Fiquei super empolgador professor... como nos podemos comunicar?

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    1. Oi, Third World

      Podemos conversar por e-mail, em adonai@ufpr.br.

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  10. Adonai, além do Scientific Journal Rankings, como posso saber (sozinha, sem orientação) que determinada revista tem alto fator de impacto (para determinada área)? Pergunto isso pois estou iniciando minha carreira agora e sempre gosto de ver em quais revistas os professores e meu orientador publicam, para estar atenta se a ciencia que eu e meus mestres produzem estão em padrões internacionais. Além do mais, estou escrevendo meu primeiro artigo, sei que não tenho a experiencia necessária para decidir em qual revista publica-lo, mas mesmo assim quero conhecer as diversas revistas que publicam na área e tentar ver se tenho o feeling suficiente para decidir por mim mesma em qual revista publicar

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    1. Laura

      Vivemos em tempos de ciência "numerológica". Há realmente uma espécie de obsessão nos meios acadêmicos, no que se refere a fator de impacto, quantia de publicações, quantia de citações e outros números. Se o objetivo for a busca por periódicos de alto fator de impacto, o Scientific Journal Rankings basta como referência. Se o objetivo for fazer ciência, o feeling que você menciona em seu comentário se conquista com a experiência pessoal em publicações. É a velha história: para conseguir experiência, precisa trabalhar; e para trabalhar, precisa de experiência. Se você enviar seu primeiro artigo para um periódico e ele for recusado, a partir dos pareceres dos referees se aprende muita coisa. Bons referees são capazes de sugerir veículos mais adequados para o seu trabalho, caso exista algum conflito entre perfil do periódico e perfil do artigo.

      Posso dizer, por exemplo, como fiz em meu primeiro artigo escrito apenas por mim. Apresentei os resultados em um congresso internacional (na forma de comunicação) e discuti sobre ele com colegas de profissão. Desta forma recebi sugestões de profissionais muito mais experientes a respeito de qual periódico seria o mais adequado. Acabei decidindo por um periódico alemão pouco conhecido mas muito antigo. Tenho tendência tradicionalistas, no que se refere a periódicos. Apesar disso, este primeiro artigo é citado por um punhado de autores respeitados. Isso me alegrou bastante.

      Espero ter ajudado.

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