quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Realidade como uma Fábula



Em 2012 Ramon Voltolini (aluno da UniBrasil, em Curitiba, PR, e entusiasmado leitor deste blog) venceu o concurso Sangue Novo, na categoria de melhor reportagem impressa. Este prêmio é promovido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná. Seu texto ressoa como uma fábula que utiliza elementos do mundo real para simbolizar algo que transcende a percepção imediata do cotidiano de uma escola. Pedi ao autor para divulgar seu inspirado texto neste blog e ele gentilmente permitiu. Desejo a todos uma ótima leitura.
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Às vezes é preciso sujar as mãos

Ramon Voltolini

7h30, segunda-feira.    “Professora, ele tá com o pé cheio de barro! O chão está todo sujo...”. Numa conduta criminosa, a professora ordena: “vá e varra esse teu rastro!”. De botas melecadas, a criança cerra os olhos, sai da sala e logo volta empunhando uma vassoura de palha. Cabisbaixo, começa a limpar aquela lama seca, encravada outrora nas suas sandálias. Mais rápido que o vai e vem dos braços pequenos somente o palpitar acelerado do seu peito. As bochechas estão coradas. O suor está vertendo. A sujeira finalmente se amontoa ao lado do cesto de lixo. O chão está limpo outra vez. O menino tem sete de idade. 

Há três anos, mandar um aluno do fundamental varrer sua sujeira e acordar um ou outro dorminhoco debruçado sobre a carteira eram práticas corriqueiras de algumas educadoras da Escola Municipal Madalena Portella, de Campo Largo. Até 2001, dar banhos em crianças encardidas, lavar seus uniformes e conduzir as que, por ventura, passassem mal ao pronto socorro também fazia parte do dia a dia dos professores. A maioria dos pais só sabia das duchas e curativos depois que o filho chegava em casa cheiroso, com um esparadrapo por cima da ferida. A escola está localizada em um dos bairros nobres da cidade, no Ouro Verde. Entretanto, 70% dos 375 matriculados no ensino fundamental moram na área rural (Ferraria, Felpudo e Retiro) da Capital da Louça.

Fevereiro, 2008. Dos 27 alunos, apenas 15 estão na sala. O dia amanheceu escuro. Ainda chove. Com mais essa falta, os ausentes reprovam por não cumprirem os 75% de frequência estabelecidos pelo Plano Nacional de Educação (PNE). As professoras, impacientes, relutam à orientação da secretária Arlei Remonato: assinalar as faltas a lápis. Nesse momento, mas a 30 km da escola, as crianças faltantes estão de olhos grudados nas janelas embaçadas do ônibus escolar, que balança feito um barco enquanto tenta atravessar a correnteza brava do rio do Felpudo. Impossível. O ônibus encalha. Depois de duas horas, finalmente a água baixa. Os alunos voltam para suas casas. Além da bronca, um bilhete na agenda aguarda as crianças no próximo dia ensolarado de aula.

Com a entrada da pedagoga Maria Alice há três anos na escola, uma proposta inédita foi feita aos professores: visitar os estudantes e descobrir os motivos das faltas frequentes, da sujeira nos uniformes, do sono inesgotável das crianças. “Nós saímos atrás do ônibus às 12h15. Chegamos às 13h45 no ‘centro’ do Felpudo. Encontramos os alunos no meio do carreiro e ainda faltava chão para o trajeto terminar”, conta Fabiana Rigoni, na época professora da 4ª série e hoje auxiliar de administração da Madalena Portella. “Foi ali que caiu a minha ficha. A partir desse dia, decidi mudar minha postura dentro de sala”, declara. Terezinha, diretora da escola, compunha o trio que em 2008 decidiu seguir, conhecer, os passos das crianças. “Tinha comprado meu carro há três meses, zero. Lá fomos nós. Atrás do ônibus, por estradas de chão. Até cruzamos um rio, acredita?!”. 

Abril, 2008. “Mãe, mãe! A diretora tá aqui! Preciso arrumar meu cabelo!”, grita a menina ao ver o carro de Terezinha parado em frente à sua casa, erguida sobre um campo verde cheio de árvores que contrasta com a rua amarelada de pó. A visita não fora agendada. As educadoras mal conhecem os pais dos alunos. “Já sei! Vamos perguntar sobre os causos desses lugares!”, sugere Maria Alice. A única formalidade é a apresentação das educadoras, seguida de um aperto de mão. Logo estão as professoras, a diretora, a aluna e sua mãe em volta da mesa da cozinha. A bacia com bolinhos de arroz fritos na hora tempera a conversa sobre lobisomens, boitatás, chupa-cabras. “Acordamos às 5h pra ir pegar o ônibus. Se chove, ele encalha naquele rio que vocês cruzaram”, conta a aluna. Pela janela, Fabiana vê crianças brincando. Elas estão correndo, subindo em árvores; todas vestindo os uniformes da escola. “Então é assim que eles encardem as roupas com gordura; a mãe faz frituras na hora do almoço. O sono se justifica. O pó vem daí, do pega-pega jogado em cima do gramado”, pensa. 

Nessa última década, e após passar por três gestões administrativas distintas, a postura da Escola Municipal Madalena Portella frente à aparente displicência dos alunos do fundamental tem sofrido diversas mudanças. De ações imediatistas com efeitos efêmeros (banho num dia e curativo noutro), o corpo docente chefia, hoje, três projetos contínuos baseados no cotidiano das crianças: o “Caminhos da Minha Escola (projeto que trabalha as características geográficas da área rural de Campo Largo); o “Coral da E.M.M.P (conjunto formado por alunos e seus pais que canta clássicos do sertanejo de raiz)” e o “Contos e Causos (histórias contadas e escritas por alunos publicadas em jornal da cidade)”. 

Novembro, 2011. “Mas deixe eu te contar que tapada que eu era...”, anuncia Fabiana Rigoni antes de começar seu depoimento. A sala, branca e fechada, reverbera cada palavra dita. Uma câmera registra todos os detalhes da história, toda sinceridade contida na fala. “Se o coleguinha visse o pé do outro cheio de barro, ele me avisava e eu – olhe que crime que eu cometia enquanto educadora! – mandava o menino varrer a sujeira!”, confessa Fabiana com um sorriso envergonhado no rosto. “Hoje eles [professores] entendem quando eu falto”, sussurra um dos alunos do fundamental no pátio da escola. “A gente faz maquete, conta história, escreve sobre a nossa casa”, explicam duas meninas da 4º série durante o recreio do período matutino da Madalena. “Até hoje estou à procura desse menino que varreu o chão. No dia em que visitamos o Felpudo, pedi desculpas aos alunos que encontrei no caminho pelos ‘crimes’ cometidos por mim dentro da escola. Não encontrei ele [menino das sandálias sujas] ainda. Preciso me desculpar”, desabafa, com os olhos cerrados de lágrimas, a professora que hoje coordena os três projetos de inclusão da escola. “A gente conheceu a realidade deles. Nos sujamos com o pó da rua e com a gordura dos bolinhos. Só assim entendemos nossos alunos”.

3 comentários:

  1. Neste sentido, um livro que recomendo é "A Produção do Fracasso Escolar" de Maria Helena Souza Patto.

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    1. Daniel

      Poderia detalhar um pouco a respeito deste livro?

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  2. Parabéns, Ramon! BELÍSSIMO texto! Obrigada por dividir conosco! Sou feliz por ter trazido você para junto de nós!

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