segunda-feira, 30 de junho de 2014

Educação é Mercadoria?


Ouve-se muito expressões como "educação não é mercadoria", "educação não é produto a ser comercializado", entre outras semelhantes. A própria União Nacional dos Estudantes (UNE) lançou recentemente uma cartilha intitulada Educação Não É Mercadoria, na qual são denunciados supostos abusos de empresários da educação. Além disso, na tal cartilha se defende uma legislação que regulamente a automática fusão e transferência de instituições de ensino descredenciadas pelo Ministério da Educação (MEC). É claro que a lógica por trás desse tipo de movimento é a de que os cofres públicos são inesgotáveis. Mas não quero discutir sobre isso nesta postagem. Afinal, é preciso avaliar uma visão ingênua por vez.

O objetivo aqui é levantar apenas uma questão: educação é mercadoria?

Como não tenho competência jurídica ou econômica para responder a esta questão, apelarei para uma visão usual (apesar de nem sempre praticável, por conta das inconsistentes arbitrariedades de autoridades econômicas e jurídicas) sobre o conceito de mercadoria. Mercadoria é "todo o bem sujeito a mercancia, ou ainda, toda coisa móvel, apropriável, que possa ser objeto de comércio".

Assim como existem o comércio formal (tributado) e o comércio informal (que sonega impostos), também existem a educação formal e a educação informal. A educação formal é aquela educação institucionalizada e legalmente regulamentada, na qual o processo educacional é reconhecido pela emissão de históricos escolares, certificados e diplomas, nos termos de leis. Já a educação informal é um processo social inevitável, por consequência de interações sociais de indivíduos com a unidade familiar, círculos sociais e ambiente. É a velha máxima que diz "O que não se aprende em casa, se aprende na rua." Neste contexto, autodidatismo também é uma manifestação de educação informal.

No processo social de educação formal há a oferta de conhecimentos gerais e específicos, sejam científicos, tecnológicos, culturais, morais, históricos ou artísticos. E esta oferta de conhecimentos jamais é gratuita, em termos econômicos. Ela é paga, no caso de instituições privadas, e paga através de impostos, no caso de instituições públicas que não cobram mensalidades ou anuidades. 

O bem adquirido por aquele que foi beneficiado com educação formal é conhecimento. Este mesmo conhecimento é um bem apropriado pelo beneficiado e que pode ser vendido. Com efeito, é por conta deste conhecimento que o beneficiado pode criar e desenvolver uma carreira profissional, que permita a sua inserção no complexo mercado de trabalho. E, assim como dinheiro investido pode produzir mais dinheiro, conhecimento investido também pode produzir mais conhecimento e, portanto, dinheiro. É o que ocorre nos processos de inovação, seja científica ou tecnológica.

Portanto, a educação formal oferta conhecimentos que são, de fato, objetos de comércio. Conhecimento é objeto de compra e venda.

O profissional que evidencia de forma mais clara o fato de educação ser mercadoria, é justamente o professor. É um indivíduo que sistematicamente professa conhecimentos em troca de um salário.

No entanto, vale uma ressalva extremamente importante. No comércio de bens e serviços existe a frequente preocupação sobre a qualidade daquilo que é vendido e comprado. Avaliar a qualidade de uma fruta ou de um automóvel é uma tarefa muito menos complexa do que avaliar a qualidade da educação ofertada por uma instituição de ensino e, consequentemente, pelos seus professores.

Vários questionamentos sobre a qualidade da educação em nosso país já foram apresentados, discutindo-se desde a grave crise na USP (que muitos ingenuamente atrelam a aspectos meramente financeiros), até a qualidade de cursos de direito, passando pela desvalorização de jovens talentosos e pelo paradoxal não reconhecimento de professores premiados, apenas para citar alguns exemplos.

Portanto, o discurso de que educação não é mercadoria precisa ser revisado de forma menos ideológica (como se percebe em movimentos estudantis e movimentos de greve de professores) e mais pragmática. 

O que define o sucesso de vendas de uma mercadoria é o mérito conquistado por quem produziu e quem distribuiu e comercializou tal mercadoria. Como o Brasil é um país sem tradição alguma na produção de conhecimentos, a função principal de suas instituições de ensino tem sido a mera distribuição e comercialização de tais conhecimentos. Talvez por isso mesmo se insiste tanto nos impensados jargões "educação não é mercadoria" e "educação não é produto a ser comercializado". Isso porque falta aos educadores deste país a visão sobre o que, afinal, é educação e até mesmo sobre o que é comércio. 

O fato de existirem exemplos de brasileiros que produziram conhecimentos não se reflete ainda em qualquer tradição de produção de conhecimentos. Falta massa crítica para exercer influência definitiva na cultura brasileira como um todo. 

E como a educação brasileira não está concatenada com qualquer tradição de produção de conhecimentos, isso acaba comprometendo a distribuição de conhecimentos. Tanto é verdade que professores em nosso país apenas repetem palavras escritas em livros ou apostilas, sem permitir espaço para questionamentos. Quem distribui e comercializa sem conhecer o seu produto, está inevitavelmente fadado ao fracasso. 

Apenas uma última mensagem ao leitor, no que se refere ao tema desta postagem: sempre desconfie da opinião da maioria.

Quem produz conhecimento sabe que todo conhecimento é questionável. Se alguém discursa algo como "educação não é mercadoria" sem justificar, provavelmente não tem a mais remota ideia sobre o que está falando. Portanto, desconfie. Avalie. Questione. Esta é uma forma de colaborar com a inversão cultural de nosso país e, talvez, desenvolver alguma tradição na produção de ideias. Assim, quem sabe, um dia teremos um Brasil genuinamente dedicado à educação, sem discursos demagógicos e precipitados.

sábado, 28 de junho de 2014

Uma Experiência Social na Forma de Concurso Público


Durante minha infância e adolescência tive muitas visões do futuro. Geralmente elas ocorriam durante o sono, na forma de sonhos. Mas havia também as visões que se manifestavam durante o curto período de tempo de consciência entre a vigília e o sono. Estas eram as mais nítidas e marcantes. Antecipei, por exemplo, a morte de um filhote de gato, chamado Pulga. Na forma de sonho eu o vi deitado, com um galho entre as patas dianteiras, como se fosse sua última brincadeira em vida. E, uma semana depois, Pulga foi encontrado morto pela manhã, exatamente naquela posição oniricamente antecipada. O galho entre suas patas dianteiras era idêntico àquilo que vi na forma de sonho. Lembro que lamentei muito a morte de Pulga, que era um dos muitos gatos que minha família cuidava, na época de minha infância. Pulga foi o último a nascer de uma ninhada de seis e desde cedo foi rejeitado pela sua mãe, ficando muito doente. Em outro momento sonhei que eu estava sentado em um gramado, ao lado de minha prima, e que meu rosto ardia muito do lado esquerdo. No dia seguinte tive um acidente no Parque da Barreirinha, em Curitiba, Paraná. Caí durante uma corrida, machucando o lado esquerdo do rosto. Quando me dei conta, eu estava sentado em um gramado, ao lado de minha prima e com o rosto ardendo, por conta do ferimento. 

Eu poderia narrar aqui várias experiências pessoais semelhantes, que com grande frequência confirmavam um fenômeno já vivenciado por outras pessoas: a capacidade de prever detalhadamente o futuro, ainda que de forma involuntária. 

Não tenho a pretensão de avaliar o mérito científico de visões precisas sobre o futuro e em condições tão insólitas. Mas o fato é que durante minha vida adulta essas visões simplesmente sumiram. 

No entanto, esta noite vivenciei algo extraordinário. Pela primeira vez em anos, estive consciente entre o estado de vigília e sono. E, neste estado, vi uma amiga muito próxima (cujo nome prefiro não revelar) celebrando com considerável entusiasmo o fato de ela ter conquistado o prêmio máximo na Mega Sena. Ainda naquele estado mental de produção de imagens e sons muito vívidos, pedi à minha amiga que mostrasse o volante premiado. Foi então que vi as dezenas sorteadas. O detalhe curioso é que ela mostrou aquele pedaço de papel como se estivesse apenas confirmando algo que eu já sabia. No momento em que vislumbrei aqueles números, despertei abruptamente de meu estado quase meditativo. Como frequentemente mantenho papel e caneta ao lado de minha cama, imediatamente anotei os números.

Pois bem. O próximo sorteio da Mega Sena será no dia dois de julho, quarta-feira. E quero fazer desta postagem uma oportunidade realmente rara para os leitores deste blog, apesar do prazo de validade ser extremamente curto. 

Por um lado, não farei aposta alguma na Mega Sena. Isso porque simplesmente não tenho o hábito de fazer apostas. E, assim como não pude evitar o acidente que sofri durante minha infância (conforme narrado acima), partirei do pressuposto de que devo manter meus hábitos de rotina, para não tentar interferir com o futuro (se é que isso é possível). Por outro lado, não divulgarei as dezenas a serem sorteadas no próximo concurso da Mega Sena justamente porque, na imagem que vislumbrei, minha amiga estava celebrando, como se eu já conhecesse os números de sua aposta. E se eu divulgasse as dezenas sorteadas neste blog, certamente não haveria o que celebrar, uma vez que o prêmio seria diluído entre centenas ou (talvez) milhares de apostadores que leram esta postagem. 

Mas, uma vez que pretendo compartilhar esta experiência como possível evidência científica de um certo fenômeno social, apresento nesta postagem um concurso público.

Já promovi vários concursos neste blog, como sorteios de livros e até mesmo o sorteio de um raro convite oficial para a pré-estreia do filme Tropa de Elite 2. Mas, desta vez, o que está em jogo é um volume considerável de dinheiro.

Minha amiga concordou com a seguinte proposta: se ela de fato ganhar o prêmio máximo da Mega Sena do dia dois de julho próximo, dez por cento do valor líquido do prêmio será usado para beneficiar um único leitor deste blog, conforme as regras abaixo.

Cada leitor(a) interessado(a) deverá escrever, na forma de um único comentário, uma justificativa para que ele(a) seja beneficiado(a) com o prêmio deste novo concurso no blog Matemática e Sociedade. Será considerada como melhor justificativa aquela que estiver de acordo com os princípios defendidos neste blog desde a sua criação em outubro de 2009. E serei a única pessoa que julgará qual é a melhor justificativa. Devo alertar, naturalmente, que as melhores justificativas são aquelas que se harmonizam com as práticas pessoais, acadêmicas e profissionais de seus autores. Feito o julgamento, o autor da justificativa escolhida como a melhor será notificado pessoalmente por e-mail e publicamente por postagem a ser veiculada neste blog.

Serão automaticamente desqualificados aqueles que escreverem mais de um comentário nesta postagem, não importando a natureza do comentário. E não será permitida a participação de pessoas que tenham algum grau de parentesco imediato (pai, mãe, filho, filha, irmão, irmã) comigo ou com a minha amiga acima mencionada. Menores de idade também não podem participar deste concurso.

Seguindo os mesmos parâmetros de outras promoções aqui realizadas, uma cópia do comentário escrito pelo concorrente deverá ser encaminhada para o e-mail adonaisantanna@gmail.com, acompanhada dos seguintes dados pessoais: nome completo, data de nascimento, endereço residencial e alguma forma de identificação oficial (RG, CPF ou número de passaporte). No campo subject de cada e-mail deve constar o seguinte texto: UMA EXPERIENCIA SOCIAL.

O resultado do concurso será divulgado na forma de postagem até o dia nove de julho deste ano. 

Obviamente reconheço o caráter inusitado deste concurso público, que privilegia os leitores que acompanham as 186 postagens deste blog desde a sua criação. Mas o fato é que não há o que perder, entre aqueles que desejam participar. 

O convite está feito e desejo a todos os interessados uma boa redação. Esta será uma curiosa aventura.
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05/07/2014: O resultado deste concurso pode ser acessado aqui.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Sobre a Crise na USP


Carlos de Brito Pereira é professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP). Doutor em Administração pela USP e pesquisador do Grupo Interdisciplinar de Física da Informação e Economia, ele é um economista que publica no prestigiado Physica A

Há algum tempo venho negociando com o professor Pereira a publicação de um texto inédito sobre a crise que ocorre na USP, a mais importante universidade de nosso país. 

Por conta da extensão do texto, chegou-se a cogitar a possibilidade de dividi-lo em três partes. Mas pedi ao autor para apresentar o artigo na íntegra em uma única postagem, com o objetivo de facilitar o acesso aos leitores deste blog. 

A crise financeira e política na USP tem apresentado profundos reflexos na produção intelectual da instituição, uma vez que essa universidade perdeu posições em rankings internacionais das melhores instituições de ensino superior do mundo e até mesmo da América Latina. E, seguindo a política usual deste blog, o texto do professor Pereira promove uma análise honesta e, portanto, incisiva, sobre as raízes da incompetência da instituição que já foi motivo de orgulho de muitos brasileiros. No entanto, não se trata de um mero texto de crítica. Mais importante do que isso, o autor apresenta uma solução viável não apenas para a Universidade de São Paulo, mas para todas as instituições públicas de ensino superior de nosso país.

Desejo a todos uma leitura crítica e insisto para que os leitores encaminhem esta postagem para todos aqueles que exercem cargos de poder e influência. O que sustenta este blog certamente não é o administrador, mas a efetiva ação de seus leitores.

Uma versão do artigo com todas as referências está aqui.

Uma detalhada resposta a um dos comentários feitos sobre esta postagem está aqui.
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Sobre A Crise Na USP


escrito por Carlos de Brito Pereira



“A incompetência [na Universidade] era, portanto, estrutural. Para afastar qualquer possível ameaça de serem depostos e para aumentar os laços de dependência, os dirigentes frequentemente preferiam nomear os menos capazes como seus subordinados diretos, algo que se repetia ao longo de toda a hierarquia. Mesmo os de dentro lamentavam a tacanhez e submissão dos que ascendiam [na Universidade]. As pessoas com iniciativa, raciocínio independente e integridade, que tinham se ligado [à Academia] para levarem vidas [intelectualmente] ativas ou para melhorar [o ensino], eram geralmente [ignoradas ou se aposentavam].”

1. A Inocência Dos Incompetentes

Nos últimos dias a crise na USP tem sido tema recorrente no noticiário e editoriais dos principais jornais de São Paulo, com repercussão em vários outros meios de comunicação em geral e em blogs que discutem ciência e vida acadêmica, como este do professor Adonai Sant'Anna. O debate atual, com variações sobre o tema, parece restringir-se apenas à questão financeira. Notadamente, concentra-se a discussão nos últimos reajustes salariais. A principal causa apontada é a perda de foco no que seria a principal missão da Universidade, e o principal culpado seria o ex-reitor, Prof. Dr. João Grandino Rodas, por incentivar gastos desnecessários e aumentar os salários acima do aumento da receita.

Com a experiência de quem trabalha em uma das mais conturbadas Unidades da USP, posso dizer que essa discussão tem usado aquilo que batizei alhures de “o sujeito oculto da USP”: Os problemas são apontados, eventuais causas e soluções discutidas, mas ninguém aponta para os sujeitos que fizeram isso. Um ou outro artigo trata da “estrutura” da USP, mas parece aquele discurso adolescente de movimento estudantil, quando alguém se refere à culpa do “sistema”.  George Orwell escreveu vários ensaios sobre como a linguagem é corrompida no debate público. Isto não é casual: chamar as coisas pelo nome correto e indicar os responsáveis pelas ações não costuma ser bem visto tanto no mundo político quanto na cultura brasileira. Porém, a crise da USP é grave e precisa ser discutida da forma mais honesta, até para evitar que isto aconteça novamente no futuro. Apontar o dedo para o último Reitor é conveniente. O Prof. Dr. João Grandino Rodas é um alvo fácil e talvez tenha responsabilidade sobre a situação, mas ele não estava sozinho e não brotou na Reitoria: foi votado no Conselho Universitário e escolhido pelo Governador do Estado. Aliás, os atuais Reitor e Vice-Reitor foram Pró-Reitores na administração passada.

Assim, como funcionaria o “sistema” da USP? Por princípio, a Universidade seria uma República Platônica, onde os melhores exerceriam os cargos mais importantes (uma “meritocracia”, pois). Logo, o Reitor seria o primus inter pares. Dada a estrutura da carreira, esses melhores seriam os Professores Titulares. Ora, a julgar pelo resultado recente, há que se perguntar: melhores em quê?

Supostamente, os Titulares são professores de reconhecida competência didática, são líderes nas suas áreas de conhecimento (com várias publicações importantes e descobertas relevantes para a Ciência) e têm experiência na liderança de grupos de pesquisa e obtenção e administração de verbas. Uau! Agora, é preciso ir ao detalhe: o que isso tem a ver com administração de prédios, gestão de recursos humanos, implantação de sistemas de informática, conhecimento de fluxo de caixa etc? Sendo gentil, a correlação é baixa. Pesquisadores e/ou professores não são gestores.

Como dito anteriormente, os principais cargos de direção na Universidade são restritos aos Professores Titulares. Ou seja, após uma longa carreira acadêmica, esses professores passam a gerir a Universidade nos seus aspectos puramente administrativos. Com isso, perdemos bons pesquisadores e/ou professores e ganhamos um gestor amador. Em 2009, o Prof. Dr. Fernando de Souza Coelho e eu discutimos essa questão em detalhes em outro texto, portanto este ponto não será rediscutido aqui.

Os Titulares são ungidos em concursos públicos. Qualquer pessoa minimamente versada na vida universitária sabe que esses concursos são uma mistura de competência acadêmica e política. A princípio, isto não seria um problema. Se o Titular deve exercer cargos de chefia, um pouco de noção sobre política permitirá que seu trabalho seja bem feito (qualquer livro de Introdução à Administração lhe dirá isso). A tecnocracia é um sonho falido do século XX. Porém, dada a forma como a Universidade de São Paulo foi gerida na última década (no mínimo), é possível constatar  o aumento constante de Titulares mais políticos do que acadêmicos. Assim, ficamos no pior dos mundos: temos poucos Titulares que conheçam profundamente ciência e os mais políticos tampouco são gestores qualificados, pois são profissionais da política acadêmica. Daí a recorrente opção pelas saídas fáceis (aumentos de salários, distribuição de poder entre grupos organizados etc.) em detrimento das soluções que resolveriam os problemas a longo prazo, ainda que às custas de críticas, greves e antipatias de vários colegas. Os colegiados responsáveis por aconselhar o Reitor e, eventualmente, apresentar sugestões para corrigir determinados problemas, pouco fizeram. De certa forma, isto corrobora a hipótese de que atualmente há mais Titulares Políticos do que Titulares Acadêmicos. Assim, o Conselho Universitário aparentemente está se tornando um lugar que em críticas de restaurante é usualmente chamado de “para ir, ver e ser visto”. Em editorial, o jornal “O Estado de São Paulo” apontou essa questão: pessoas em colegiado aparentemente têm se comportado como se tivessem nenhuma responsabilidade sobre o resultado final das votações (de certa forma, é a Tragédia dos Comuns em outro formato).

Que a USP ainda seja a líder em publicações no Brasil e a mais admirada universidade brasileira diz muito sobre a resiliência dos ideais fundadores e a enorme dedicação de vários docentes e funcionários. Poder-se-ia concluir: isto foi obtido a despeito das últimas gestões e não por sua causa; embora a melhor unidade de medida em relação à qualidade e quantidade da produção científica deva ser calculada por departamento e não pela universidade como um todo. Isto porque a produção varia entre unidades e departamentos. A análise global mascara esses resultados.

De outra parte, os sindicatos de docentes e funcionários respondem com a solução única de “mais democracia”. Basicamente, isto seria uma votação paritária entre docentes, funcionários e alunos para todos os cargos de chefia. Não seria levado em conta mérito ou competência administrativa – apenas as preferências políticas. – Isto corresponderia tão somente a passar o poder na universidade de um grupo político a outro, sem nenhuma perspectiva de que os problemas seriam resolvidos. É o sonho corporativista que não ousa dizer o seu nome. Curiosamente, a população não seria ouvida. Mas é a população que nos sustenta com os seus impostos! Seria uma democracia bastante curiosa, essa.

Portanto, a crise atual foi criada pelos Professores Titulares “políticos”, em especial os membros do Conselho Universitário, com a ajuda por oposição das entidades sindicais, que não apresentaram uma alternativa factível ao que estava sendo feito. Não se trata do “sistema”, da “estrutura” etc. Onde estavam esses notáveis enquanto todo o dinheiro era consumido? Isto, naturalmente, não escusa os Professores Titulares “acadêmicos”, que ao se negarem a participar de colegiados e da gestão universitária, colaboraram para que esta situação ocorresse.

O atual Reitor, Prof. Dr. Marco Antonio Zago, tem agora a árdua missão de recompor as reservas e rever a forma como a USP é administrada. Qualquer uma das tarefas já seria hercúlea: as duas em conjunto são quase impossíveis de serem realizadas. Isto porque antes de resolver o problema, é necessário discutir qual é a missão da USP. A resposta fácil de todos esses anos: “ensino, docência e pesquisa” não pode mais ser usada. Foi isto que nos trouxe até aqui. É preciso ir além do jargão e da corrupção da linguagem. Afinal, o que é “ensino, docência e pesquisa”?

Essa questão ainda não foi respondida, mesmo após a reforma da carreira. Somente com uma visão clara disso seria possível decidir em sequência: os itens do tripé uspiano terão o mesmo peso? Ou a USP deveria ser voltada para um dos itens e considerar os outros secundários (a resposta não escrita e jamais confessada é: seria uma universidade de pesquisa. O resto seria secundário. A graduação justificaria a verba pública e a pós-graduação seria uma fornecedora de mão-de-obra para as pesquisas.)? Resolvida essa questão, seria possível discutir sem subterfúgios os tabus da isonomia, da meritocracia e do financiamento da universidade. Sobre este último ponto, recomenda-se a leitura de “10 formas de a USP aumentar sua receita”. As questões sobre isonomia e meritocracia, são discutidas nas próximas seções deste ensaio. Todavia, é importante destacar que, ao se definir exatamente a missão da USP, seria possível termos uma meritocracia verdadeira, pois então seria possível elaborar o que deve ser feito para atingir os objetivos. Isto inevitavelmente levaria a uma discussão sobre isonomia de salários e, obviamente, levantaria a questão de quem deveria gerir a USP e se essa reserva de mercado aos Professores Titulares faria sentido.

Resumindo: assim como os problemas apontados estão interligados, também as soluções o estão. Não reajustar os salários, criar uma controladoria “independente” e outros que tais (ou eleições paritárias) não são soluções à altura do prestígio uspiano. São apenas paliativos da estatura de quem ajudou a criar o problema (seja por ação ou inação). É deixar a Universidade sobre os ombros de nanicos.

No texto que o Prof. Fernando Coelho e eu escrevemos sobre a reforma da carreira docente para Congregação da EACH, terminávamos nos perguntando: “onde estão os estadistas da USP?” Naquela época éramos jovens e inocentes. Como sói acontecer, a maturidade forneceu a resposta: eles não existem.

2. Como Nascem Os Anjos

A estrutura atual de governança da USP remonta à reforma universitária realizada durante a última ditadura no Brasil. Quase simultaneamente à promulgação da Constituição de 1988, houve a publicação do Regimento atual da USP. Desde então, houve vários ajustes pontuais no Regimento e no Estatuto, além das necessárias portarias e normas para esmiuçar os detalhes e a forma de operação da Universidade. Todas as normas em vigor têm o princípio de que somos uma espécie de República Platônica: há eleições para vários colegiados, mas a representação é dividida de acordo com a titulação e a maioria dos cargos de chefia são reservados aos Titulares. Supostamente, isto garantiria que os melhores ocupariam os cargos com maior poder de decisão, impedindo tanto o poder absoluto quanto o populismo. Infelizmente, isto não é verdadeiro. Caso contrário, não estaríamos na situação em que nos encontramos.

Como esses Titulares Políticos surgiram e dominaram a USP?  Tão logo as cátedras foram transformadas em departamentos, os catedráticos existentes tornaram-se Titulares (daí a confusão que algumas pessoas de fora da USP fazem em relação aos nossos cargos e títulos). Assumindo que todos os catedráticos sobreviventes às aposentadorias forçadas da ditadura eram brilhantes acadêmicos, isto gerou uma espécie de “excelência fundadora” da USP moderna. Porém, a grosso modo, o número de Professores Titulares é proporcional ao número de docentes na USP. Logo, desde a reforma houve a necessidade de mais Professores Titulares. Com a ampliação da Universidade e contratação de mais docentes, o aumento de Titulares continuou a acontecer. Não por acaso, até onde eu sei, nenhum Reitor da USP recusou-se a ampliar vagas de graduação – isto sempre gera a possibilidade de contratar mais docentes e, consequentemente, ampliar o número de Titulares. Estes devem ser escolhidos por concurso público, como é o caso para obtenção de todos os títulos e cargos na USP. 

Há dois pontos importantes na questão do concurso para Titular (e também para Livre-Docentes): o primeiro é a avaliação em “docência, pesquisa e extensão”. Isto é genérico o bastante para aceitar qualquer tipo de argumento. O segundo e mais importante ponto é que não há correlação entre competência didática e capacidade de pesquisa. Este é um tema tabu na universidade e geralmente quem defende que a prática de uma função auxilia na outra assume que todos ministramos em aula exatamente o que pesquisamos, o que está longe de ser verdade. Um estudo relativamente recente mostrou que essa correlação inexiste para a maioria dos professores universitários. Somente na exceção citada acima ou quando o docente gosta igualmente das duas atividades a correlação é positiva. Nas outras situações, há até correlação negativa na variável tempo, pois o tempo gasto em preparação ou em sala de aula é visto como desperdiçado em tempo de pesquisa. Paradoxalmente, quem gosta de pesquisa eventualmente amplia seu tempo nessa atividade às expensas de atividades familiares ou de lazer. 

Logo, essa avaliação para a escolha de um Titular deverá privilegiar algum dos itens listados. Historicamente, a balança pendeu para o número e o tipo de publicações (mais o número do que o tipo ou qualidade, provavelmente). Até porque geralmente usa-se alguma medida moderna de qualidade dos textos publicados (índice h, por exemplo). Ao longo do tempo, para aumentar o volume de publicações, passam-se então a ser usados vários artifícios, desde o chamado “salami science”, passando por consórcio de autores e a multiplicação de artigos (autoplágio). Também foi criada uma indústria de periódicos e congressos, passando por combinação de editores de revistas diferentes para citações cruzadas como forma de aumentar o índice h da publicação (o cartel econômico em versão acadêmica).

As bancas também passaram a ser uma questão-chave nos concursos de Titulares. Há duas possibilidades para um docente Político ser aprovado em uma banca: a maioria desta ser composta por Titulares Políticos ou o candidato fingir-se Acadêmico. A banca de um concurso de Titular é votada pela Congregação de cada Unidade. Quando os Titulares Acadêmicos recusam-se a participar dos colegiados, abre-se a possibilidade de a maioria de uma banca ser composta por Políticos. Isto gera uma espécie de “efeito Mateus” dos Políticos nas Congregações, o que gera mais bancas políticas etc. Uma outra forma de influenciar a composição de bancas é a fixação da data. Basta determinar uma data na qual os Titulares Acadêmicos não possam comparecer, desde que os suplentes na lista sejam Políticos (note-se que, a princípio, não há nada ilegal nesse procedimento, embora o usual seja deixar a própria banca coordenar-se em relação a isto). Portanto, a mensagem aos Titulares Acadêmicos é simples: dedicar-se apenas à pesquisa e acreditar que a ciência vencerá é entregar a Universidade à mediocridade. 

O segundo ponto sobre os concursos para Professor Titular é o chamado risco moral (moral hazard). Neste caso, o candidato (docente) altera seu comportamento após tornar-se Titular. Em economês, há uma assimetria informacional até o final do concurso: o candidato sabe que é Político, mas a banca o considera Acadêmico. Em parte, isto é possível graças à “cultura do Lattes”. O volume de artigos publicados pode ser aumentado de várias formas, os currículos podem ser ampliados com inclusão até de notas de aula, relatórios para comissões e prêmios irrelevantes. Ademais, contar artigos ou apenas checar o índice h (que não é um bom indicador quando usado para um indivíduo) é sempre mais fácil do que lê-los e avaliá-los (isto vale também para a contratação de docentes para qualquer universidade pública). Por último, mas não menos importante, há sempre o componente político e mesmo idiossincrasias pessoais no julgamento das bancas.

Ao ignorar o aspecto político de qualquer organização, os Titulares Acadêmicos permitiram a formação de uma massa crítica de Titulares Políticos nos colegiados. A questão agora é se a USP já atingiu o “ponto de não retorno” (tipping point) dessa massa crítica, o que impediria qualquer reforma em direção aos princípios dos seus fundadores.

Dado o formato da carreira atual na Universidade, é possível perguntar de onde surgiram esses candidatos a Titulares Políticos. Como frisado anteriormente, há o risco moral dos candidatos comportarem-se de uma forma (acadêmicos) e serem de outro tipo (políticos). Mesmo assim, se a seleção no início da carreira for o mais precisa e rigorosa possível, isto reduziria o número de Docentes Políticos que sejam Doutores ou Livre-Docentes (Associados) disponíveis na universidade. Aqui é preciso lembrar que o concurso para docente da USP é um dos mais difíceis que conheço. Mas não é perfeito, naturalmente. Sempre há formas de burlar as regras (tudo dentro da legalidade, ao menos em termos formais). O que nos leva a uma questão ontológica: por que ser “Professor da USP”?

Em regras gerais, Max Weber já tratou disso nas suas palestras “A Política Como Vocação” e “A Ciência Como Vocação”, mostrando que professores não são políticos. Em termos mais modernos, há que se levar em conta a divisão social do trabalho, o status das profissões, a cultura local e as questões pessoais. Gunnar Myrdal, tratando apenas dos economistas, e Russell Jacoby e Robert Wolff já discutiram como a profissionalização da universidade moderna levou à criação do emprego de docente, no sentido mais estreito do termo. Como toda profissão, passou a ter regras, exigências etc. Jacoby em particular mostra que houve uma espécie de “guetização” dos chamados intelectuais, que cada vez mais adotaram uma linguagem própria (o jargão), publicações próprias e regras para avançar na carreira (e tornaram-se cada vez menos intelectuais). Wolff mostrou que essas regras para avançar na carreira levaram a uma proliferação de títulos. Em especial, Wolff criticou as inúmeras teses de doutorado que não podem ser chamadas honestamente de uma contribuição inédita e relevante para a ciência. Daí Myrdal mostrar que cada vez menos economistas interessam-se por grandes problemas científicos, preferindo ficar no discurso de “colocar mais um tijolinho no muro da ciência.” 

Sobretudo, a docência universitária em escolas renomadas passou a ser uma profissão com status elevado na maioria das sociedades ocidentais. No caso brasileiro, um professor de universidade pública tem um status relativamente alto entre as profissões. Claro que nem todas as áreas existentes em uma universidade têm o mesmo status. Isto se reflete de uma forma simples: quando o docente é de uma área valorizada, costuma dizer que é, por exemplo, “professor da Medicina da USP”; quando a área não tem tanto prestígio, passa a ser simplesmente “professor da USP”. Além disso, as universidades públicas em geral e as estaduais paulistas em particular durante décadas tiveram alguns dos atrativos comuns ao serviço público brasileiro: estabilidade no emprego, aumentos salariais sem nenhuma correlação com o desempenho na função e aposentadoria integral (esta não mais existe).

Tudo isto somado provavelmente atraiu para a carreira pessoas com poucos interesses em termos de pesquisa de ponta ou ensino acadêmico de alto nível, gerando o que em economia é chamado de problema de seleção adversa combinada com a questão do agente-principal. Esse tipo de questão surge quando alguém trabalha em nome de outra pessoa. Notadamente, é o caso de executivos que atuam no lugar dos donos (acionistas). Neste caso, há o problema de alinhar os objetivos dos acionistas com os dos executivos. Supostamente, os acionistas desejam maximizar seus lucros, enquanto os executivos desejam obter a maior remuneração possível para o seu trabalho. No caso específico das universidades públicas, o problema surge porque o principal (no caso da USP, o Poder Executivo em nome da população paulista) não é capaz de explicitar quais são seus interesses ou, pior, os interesses são políticos antes de serem acadêmicos – desde que haja vagas para alunos de graduação e um certo número de diplomas ao final do ano com o mínimo de recursos, estará tudo bem. – Do ponto de vista dos docentes não-vocacionados, isto pode levar ao uso da universidade para outros fins. Geralmente, a crítica é feita às chamadas Fundações, que congregam docentes que usam parte do seu tempo em atividade privada em troca de pagar uma taxa à universidade. Mas pode ser estendida a docentes que atuam em partidos políticos, sindicatos etc. que também usam o nome da universidade. Logo, os que são docentes por curiosidade científica e/ou vocação didática passam a ter colegas com pouco ou nenhum interesse nessas questões, fruto da seleção adversa.

Isto gera o que aparece na literatura em Administração como “hipocrisia organizacional”: o que os dirigentes da empresa dizem e pregam não corresponde ao que fazem. Os funcionários que seguirem as palavras dos chefes têm diminuída a possibilidade de progredirem na carreira ou receberem aumento salarial. No caso da universidade, os docentes que realmente se dedicam ao trabalho científico original e à atuação didática (mais no primeiro caso) sentem que a instituição não cumpre o seu papel e que seu trabalho não é reconhecido. Daí Weber citar Dante e lembrar àqueles que pretendem ingressar em uma universidade para se dedicar ao trabalho científico: “deixai aqui toda a esperança”.

Como regra geral, é possível assumir que, quanto maior for a proporção de Titulares Políticos, maior a probabilidade de contratação de professores com outros interesses que não docência e pesquisa e, portanto, maior a hipocrisia organizacional. Esta se revelará sobretudo no discurso de autoridade, sempre presente quando a qualidade acadêmica não é reconhecida pelos colegas. Daí a titulação terminar por ser usada da mesma forma que os reis usavam o seu direito divino de governar. Locke mostrou que esse argumento não faz sentido, pois não podemos remontar as linhagens nobres até Adão. Talvez fosse o caso de lembrarmos que não podemos remontar as linhagens dos Titulares até a Academia Platônica ou mesmo até os fundadores da USP. Esse direito divino não existe e em ciência o pior argumento é o de autoridade. Daí é possível sugerir outra regra geral: quanto mais institucionalizada for a atividade de pesquisa, maior será a rejeição a ideias novas. É a história do tijolinho, como sempre.

Outra forma de revelar a hipocrisia organizacional está na contratação de novos docentes: não haverá incentivo para contratar docentes orientados para pesquisa de ponta. Provavelmente, haverá a dominação da cultura do Lattes, a busca por pessoas que façam a ciência normal, dentro dos paradigmas já estabelecidos e sem compromisso em ampliar as fronteiras teóricas. Serão preferidos os que se dispõem a dar os mesmos cursos de sempre, sem muitos questionamentos. Daí a preferência por ex-orientados, que se integrarão aos grupos de pesquisa existentes, sem almejar novas linhas de pesquisa. Novamente, trata-se de seleção adversa em relação aos supostos ideais da universidade. Uma questão correlata que surge é o número de membros em um departamento e, também em grupos de pesquisa. Em termos de melhoria da qualidade da pesquisa, há um limite para isso. Ralph Kenna e Bertrand Berche estudaram isto e mostraram que há limites inferior e superior para que o acréscimo de membros melhore a qualidade da pesquisa em um grupo (ou departamento). Mas a lógica prevalecente quando o número de vagas de professor Titular é função em grande parte do número de docentes é ampliar ao máximo este número. Assim, quando se faz a média por grande área ou por universidade, isto mascara a ineficiência dos grandes departamentos.

Finalmente, é necessário lembrar que esta dicotomia entre Professores Titulares é feita para fins didáticos: a distância entre Titulares Acadêmicos e Políticos é um contínuo. Além disso, há sempre a questão das circunstâncias: há aqueles que desistiram de fazer ciência de alto nível, seja por questões universitárias ou pessoais. Como o aumento salarial por titulação é perene, não há incentivo monetário que baste (mas sempre haverá caminhos fora da universidade, seja via Fundações, seja via atividade política), embora possa haver pressão de grupo: unidades com mais tradição em pesquisa de excelência provavelmente têm Titulares Acadêmicos mais engajados em pesquisa. O que pode ser ruim para a universidade como um todo, pois estes terão menos tempo para as questões administrativas, como já discutido. 

Na atual circunstância, os Titulares Políticos estão jogando a sua última cartada: pedir mais dinheiro em troca de mudança futura e a auditoria, ou tentar obter mais dinheiro alegando contas mal feitas nos repasses do governo do Estado. A mistura da discussão da situação financeira com ameaça de perdermos nossa autonomia administrativa é puro engodo. Trata-se da velha técnica Lampedusa: fazer alterações cosméticas e manter tudo como está. Se o governo de São Paulo ceder, o status quo estará salvo e os Titulares Políticos e seus irmãos siameses, a oposição “democrática”, continuarão seu debate inútil na universidade. 

Qual a solução possível? Imagino que há tantas o quanto houver de cabeças pensantes na USP. A que se segue na próxima seção é o que chamei de “meritocracia radical”. Imagino que haverá de desagradar os dois maiores lados do debate atual: os que se beneficiam da situação atual e sua oposição dita “democrática”. A meritocracia que proponho teria o mesmo efeito imaginado por Marx em “A Dominação Britânica na Índia”. Afinal, a meritocracia é um veneno para o regime de castas baseado em titulação.

3. Em Defesa Da Meritocracia Radical

Nas seções anteriores foi discutida como a atual estrutura de governança da Universidade de São Paulo levou à crise atual. Mostrou-se que o está sendo chamada de “crise financeira” tem múltiplas causas  que estão interligadas.

Porém, a USP continua a figurar em rankings que avaliam Universidades, há vários docentes com publicação expressiva na sua respectiva área de atuação (refiro-me mais à qualidade do que à quantidade), uma parte significativa dos seus cursos de graduação apresenta mais de dez candidatos por vaga e ser docente nesta instituição ainda rende prestígio em vários grupos sociais. Dito de outra forma: a governança geral é falha, os Titulares Políticos são maioria nos colegiados e cargos de direção, mas ainda há espaço para recuperação.

Nesta seção é proposta uma reorganização da governança a partir de uma discussão do que seria o trabalho acadêmico na USP. Para quem conhece Planejamento, Estratégia, Economia e/ou Administração Geral, o que se segue é uma sistematização do óbvio. Porém, como qualquer cientista político lembraria, na política mais do que em qualquer outra área da ação humana, “os homens fazem sua própria história” de acordo com as circunstâncias. Por mais que uma ação seja planejada, há sempre o imprevisto, a oposição de outros etc. O mesmo vale para as instituições humanas, sejam organizações sociais, empresas, igrejas ou qualquer outro empreendimento humano regido por regras formais ou informais. Como já dito acima, política é parte integrante da vida organizacional. As regras, cultura e regulamentos uspianos são, pois, frutos da ação política de seus membros ao longo de 80 anos de existência da universidade. Logo, o resultado final e que desemboca na crise atual é uma mistura de propostas acadêmicas e ambições pessoais mediadas pelos limites institucionais.

É necessário que a USP determine de uma vez por todas qual é a sua missão. Por que a USP existe? Se a USP terminar amanhã, qual será o impacto disso para a sociedade paulista em particular e para a brasileira em geral? Dependendo de quem responder, a resposta será diferente: queda nas matrículas de graduação e pós-graduação, menos pesquisas e artigos publicados, menos atendimentos nos hospitais universitários etc. Se os fóruns de comentários dos sites de notícias brasileiros forem parâmetros, haverá festas de boa parte da população que não compreende exatamente o que faz a universidade. Mas se somos uma Escola na acepção mais ampla da palavra, não podemos culpar a população e sim, nós mesmos, que não deixamos claro a importância da USP para a sociedade em geral.

Suponhamos um experimento mental, em que a missão da USP seja se tornar a primeira Universidade brasileira em docência, pesquisa e extensão – o famoso tripé uspiano. – O que seria se tornar esse “primeira”? É neste ponto que a confusão começa e não tem prazo para terminar. Como não sabemos, não temos como ser meritocráticos. Suponhamos que isto signifique o maior número de publicações em revistas internacionais por ano (pesquisa); o maior número de atendimentos em hospitais universitários (extensão, apenas por exemplo) e o maior número de alunos graduados por ano entre as universidades públicas brasileiras. A partir disso, seria possível definir o que deve ser feito em cada área (por unidade, por departamento etc.). Logo, seria possível definir o que cada professor e funcionário deveria fazer, quantos prédios deveriam ser ocupados, estimar custos etc. Note-se que “definir meta” neste contexto não é impor uma meta de cima para baixo. Qualquer bom manual de Introdução à Administração explica que esse tipo de abordagem demanda uma pactuação de meta entre chefia e funcionários.

Frise-se que o tripé uspiano pode ser um caso clássico de “miopia de marketing” (expressão criada por Theodore Levitt). A missão da USP é criar e difundir conhecimento. Tudo que não cria ou difunde conhecimento ou é atividade-meio ou não deveria ser realizado. Se aplicarmos esta ideia às instituições uspianas, acredito que descobriremos várias formas de cortar gastos e economizar dinheiro do contribuinte paulista. Outro ponto importante é que usando essa abordagem levittiana, perceberemos que em alguns casos prédios e aulas expositivas talvez não sejam mais necessárias para cumprirmos nossa missão. Ou mesmo cursos de extensão presenciais – cursos on-line talvez fossem um meio para atingirmos milhões de brasileiros e cidadãos de língua portuguesa ao redor do mundo. Esse tipo de curso encontra resistências de várias formas: algumas são válidas, outras são apenas uma espécie de fetichismo de prédio ou fetichismo de sala de aula. Ou, talvez, medo da obsolescência.

A vantagem desse tipo de abordagem “missão/objetivos/metas” é permitir checar se as metas foram atingidas. Isto permitiria entender os motivos de eventuais insucessos, apresentar correções e, até, alterar metas que se mostrarem irrealistas. Como bônus, isto ajudaria a impedir da universidade para o uso político-partidário, ou para fins pessoais, ou qualquer outra finalidade não-acadêmica. Outro ponto importante é termos algo comum em áreas técnicas (Administração, Engenharia etc.): uma lista de “melhores práticas”. Dado o controle na realização dos objetivos, poderíamos ter uma lista dos docentes, departamentos e unidades da USP que excederam suas metas. O que estes fizeram? Claro que algumas práticas serão específicas de cada área de conhecimento, mas outras poderiam ser extrapoladas às demais unidades da universidade, tanto em relação às atividades-fim quanto em relação às atividades-meio. Não seria um treinamento do tipo “ir para ver e ser visto”, para bajular o chefe, para que quem ministrou o treinamento possa incluir uma linha no Lattes. Teria objetivos específicos e, claro, os resultados também poderiam ser verificados.

Finalmente, poderíamos apresentar um balanço para a população, mostrando o que fizemos e o que ainda precisa ser feito. E mais: poderíamos ter um diálogo com o Governador e a Assembleia Legislativa, os legítimos representantes da população, sobre a nossa missão e nossas metas. Se o Governador desejasse um aumento do número de alunos de graduação, por exemplo, teríamos exatamente a medida de quanto isto custaria em termos de dinheiro, gente e espaço físico (por área). (Em contrapartida, haveria a possibilidade de cobrança pelos resultados obtidos). 

Meritocracia radical seria, então, a medida da atuação de cada professor ou funcionário para que as metas acima fossem atingidas. Mas aqui o status quo faz a sua parte. As associações de classe de professores e funcionários e os grêmios estudantis batizaram esse tipo de discussão de “produtivismo”. Devemos ser julgados por... Nós mesmos! De preferência, com “amor” e “compreensão”, sem usar números ou abordagens “positivistas”, já desacreditadas por estudos mais modernos em filosofia da ciência etc. A população que pague seus impostos e aceite o que magnanimamente lhe concedemos. Segundo essas Associações, educação não é mercadoria, mas ainda não conheci nenhum uspiano pós-moderno adepto da avaliação pelo amor que abrisse mão do contracheque ao final do mês.

Se tivermos metas claras, poderemos saber como deve ser a nossa organização (Faculdades, Institutos, Departamentos etc.). E, sobretudo, permitiria à Universidade manter uma estrutura flexível que pudesse ser alterada na medida em que a missão e as metas mudassem ao longo do tempo. Para isso, seria necessária uma modernização no processo de criação e eliminação de disciplinas, cursos de graduação e até mesmo departamentos. Não há sentido em manter disciplinas nas quais ninguém se matricula ou cursos sem procura. Aqui, é mister explorar a questão: sim, a universidade não tem fins lucrativos. Logo, não se trata de “fechar cursos que dão prejuízo”. Trata-se, isto sim, de otimizar recursos públicos. Assim, cursos considerados fundamentais para a missão da universidade seriam mantidos, mas talvez o número de vagas possa ser diminuído. Quanto à extinção e criação de departamentos, novamente isto afeta diretamente a estrutura de poder da universidade, pois todo departamento deve ter Professores Titulares em seus quadros. Atualmente, sua manutenção tem mais a ver com a política universitária com “p” minúsculo do que com critérios Acadêmicos (com “a” maiúsculo).

Isto também permitiria a separação clara das atividades-fim das atividades-meio. As primeiras seriam as que concorrem diretamente para a execução das metas; as últimas, as atividades de apoio para que as primeiras aconteçam. Nesse sentido, a maioria dos cargos de chefia e de presidência de comissões seria atividade-meio. Logo, ficaria sem sentido os mais titulados exercerem esses cargos, se sua titulação é fruto principalmente de trabalho acadêmico e, mais especificamente, de trabalho de pesquisa. Por outro lado, todos os chefes seriam avaliados pela capacidade de facilitar os docentes na execução das atividades-fim. Departamentos poderiam fixar cargas flexíveis de docência em troca de mais ou menos pesquisa dos docentes (finalmente ser um bom professor em sala de aula seria compensatório). Quanto às atividades de pesquisa, seria possível fixar metas mais precisas para pesquisa e publicação em relação ao mero número de artigos (como primeira consequência, a corrida para aumentar publicações e os informais “consórcios de autores” – sic)  seriam desestimulados. Outra consequência seria que não faria sentido premiar por antecipação quem ocupasse cargo de chefia (o chamado adicional por cargo ou função) ou mesmo a acumulação desse ganho após o término do mandato. Talvez o ideal fosse apenas pagar o adicional ao final do mandato, caso as metas fossem cumpridas... Ops! 

A isonomia seria a primeira vítima dessa meritocracia radical. Pois quem trabalha menos deveria receber menos, perdoem-me por enfatizar o óbvio. Afinal, “de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com a sua necessidade”.

Outra vítima dessa meritocracia radical seria a burocracia. Não se trata aqui de eliminar a burocracia weberiana, no sentido de regras impessoais para impedir o predomínio da vontade exclusiva do Rei ou da cultura de favores tão latina. A burocracia a ser eliminada é aquela no sentido caricato de papéis e relatórios preenchidos e transportados de um lado para outro. Definida a missão e os objetivos, seria possível informatizar se não toda, a maioria da papelada uspiana atual. Daí que seria possível, via sistema informatizado, saber com quem e onde está cada relatório, parecer etc. A burocracia que serve para perder tempo e estourar prazos seria diminuída, porque seria fácil identificar quem exatamente está fazendo o quê. Com isto, seria possível verificar em quais setores há falta de funcionários e quais estão superdimensionados.

Uma forma tipicamente uspiana de burocracia são as reuniões de comissão. As reuniões dos colegiados e comissões estatutárias são uma feita para que assuntos inúteis consumam tempo e os temas importantes sejam esquecidos. Há várias técnicas para impedir o debate: pautas mal escritas, a ordem dos itens de discussão, remarcar o horário das reuniões sem consultar membros, uso abusivo do recurso de extra-pauta, deixar assuntos relevantes para reuniões extraordinárias marcadas em datas fora das combinadas com os membros etc. Como os docentes interessados em ajudar, mas que têm na docência & pesquisa sua principal motivação revezam-se nessas comissões, estas tornaram-se os loci preferidos do Titular Político e dos docentes que pretendem seguir seus passos. Afinal, Docência & Pesquisa não são preocupações dessas pessoas.

Com isso, os docentes não-políticos são sempre minoria nesses Colegiados. Além disso, quando finalmente aprendem como funcionam esses truques, o mandato já está no fim, bem como sua paciência. E assim, os Titulares Políticos perpetuam-se nas comissões onde está o poder de alterar os destinos da universidade.

Esta proposta de meritocracia radical mudaria isto. Pois se temos objetivos claros, métricas para acompanhar sua execução e um sistema informatizado com eliminação de papel, as comissões e colegiados deveriam funcionar de forma completamente diferente. Toda a pauta e sua correspondente documentação estaria on-line. Tudo o que fosse votação burocrática poderia ser votada com antecedência, mediante uso da combinação senha/e-mail/número USP do membro do colegiado. Assim, saber-se-ia quem votou em quê. Poderia haver espaço para uma breve apresentação de motivo para o voto. Logo, todos os afastamentos, pedidos de licença, dispensa de pré-requisitos, alterações de disciplinas etc. já seriam votados sem a necessidade de presença física. Os Colegiados seriam reunidos apenas para assuntos importantes e para discutir e rever metas e o trabalho das respectivas chefias. Ninguém conseguiria se esconder em votos por aclamação ou atas omissas. As próprias reuniões durariam menos tempo. Como seriam discutidos assuntos importantes, a mediocridade e a hipocrisia seriam facilmente desmascaradas no debate. As atas seriam simultaneamente mais completas em termos de informação e menores em tamanho (outro truque para impedir transparência dos colegiados é falar bastante, pedir para o blablablá constar na ata e assim soterrar o que é importante no quarto parágrafo da vigésima oitava página. Ninguém que trabalha a sério tem tempo para ficar lendo esse tipo de ata). Talvez assim os Titulares Acadêmicos e os docentes preocupados com os rumos da USP pudessem voltar aos colegiados.

Para esta meritocracia radical funcionar, seria necessário ampliar a transparência da universidade. A USP já é bastante transparente. Por exemplo, os regulamentos estão disponíveis on-line e a maioria das pró-reitorias fornece bastante informação. Mas por não sei qual motivo, há um conjunto de informações que não estão disponíveis: o que fazem os docentes da nossa instituição? Há um sistema chamado Tycho que permite a consulta a vários dados da atividade da USP. Acredito que é um dos mais transparentes dentre as universidades públicas brasileiras. Pois bem: esse sistema não permite que seja consultado o quanto de aulas na graduação cada docente ministra, bem como o docente de uma unidade não pode consultar todos os dados de outra unidade. Assim, uma medida de transparência seria deixar todo o sistema aberto para consulta ao menos entre os membros do corpo docente, para que a fiscalização se desse interpares. Somente conflitos mais sérios seriam levados às chefias, coordenações etc. Isto também desmontaria as eventuais trocas de favores na distribuição de carga didática, fonte interminável de conflitos entre docentes. Uma questão paralela à carga didática é a existência de disciplinas e cursos com baixa procura. Se houver algum tipo de flexibilização nisso, seria possível realocar professores sem novas contratações. Mas então, aqueles com poucos alunos agora teriam salas com muitos alunos...

Com a informatização completa dos trabalhos das comissões, disponibilização rápida de atas, acompanhamento on-line de processos burocráticos disponíveis a todos os docentes e o sistema Tycho completamente aberto aos colegas, seria difícil burlar a meritocracia radical. Como disse o falecido juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte norte-americana: “dizem que a luz do Sol é o melhor desinfetante; a iluminação pública, o guarda mais eficiente”.

Finalmente, seria interessante realizar um convênio com o Tribunal de Contas do Estado para fazer auditoria permanente nas contas da USP. Esse convênio deveria incluir uma cláusula para auditorias surpresa sobre execução de planos e metas em departamentos, por exemplo. Em paralelo a isso, a Ouvidoria deveria ser totalmente independente da Reitoria e do Conselho Universitário. Há conflito de interesse quando o Ouvidor é nomeado pelo Reitor (que certamente escolhe alguém de sua confiança): a Ouvidoria poderá resolver problemas comezinhos, mas dificilmente encaminhará ao Judiciário uma denúncia grave contra um Reitor. Transparência e Controle são irmãs gêmeas da Meritocracia Radical. De certa forma, seria uma espécie de separação de poderes na Universidade: os colegiados proporiam a missão e os objetivos gerais e poderiam analisar os resultados. Ouvidoria e Tribunal de Contas checariam como e se as metas foram atingidas. Finalmente, a gestão poderia ser profissionalizada, pois esta não seria a tarefa fundamental dos Docentes.

Se a meritocracia radical for implantada na USP, as suas maiores vítimas seriam os Titulares Políticos. Seu campo de atuação seria restrito, pois as futricas de corredor e as reuniões intermináveis seriam dificultadas, a incompetência gerencial seria exposta, a burocracia como arma contra desafetos seria reduzida, ou talvez eliminada, e sua produção acadêmica e capacidade didática seriam tornadas públicas. Em segundo lugar, dentre as vítimas estariam os professores que se escondem na ampliação do conceito de liberdade de cátedra para não cumprir com suas obrigações. Os funcionários burocráticos no mau sentido da expressão, que apenas conferem, carimbam e transferem papéis também seriam expostos à luz do sol. Finalmente, as associações classistas teriam de se renovar e apresentar ideias de melhoria dos projetos universitários, ao invés de palavras de ordem (os velhos gritos “neoliberal”, “não à privatização”, “10% do PIB para a educação” etc.).

E é exatamente por isso que o conceito de meritocracia radical jamais será implantado na USP. 

4. Conclusão Ou O Sebastianismo Universitário

Que fazer, então?

Antes de tudo, ser realista em relação à universidade pública em geral e à USP em particular. Os “velhos bons tempos” jamais voltarão, se é que existiram um dia. O tempo das cátedras ainda é lembrado (sobretudo em relação à antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, a popular “Maria Antonia”) com saudosismo. Mas é preciso lembrar também o despotismo dos catedráticos, o elitismo da Universidade e o fato de que somente algumas cátedras ainda são lembradas como símbolo de excelência. O resto desapareceu na História. Uma das consequências da reforma universitária que criou os departamentos foi acabar com esse autoritarismo catedrático, ainda que a ironia seja que foi executada no auge da ditadura militar no Brasil. Não há nenhum D. Sebastião I da ciência brasileira entre os antigos catedráticos.

É preciso deixarmos o autocentrismo de lado e olharmos para além dos muros da raia olímpica. Ou seja, não adianta ficarmos sobre os ombros de nanicos, como parece ser a situação atual. Com internet e celulares que gravam filmes, é difícil manter em segredo dos nossos atos – o segredo é a principal arma do Titulares Políticos. – Apenas como exemplo, veja-se como aparecemos em alguns sites: USP vende tudo!, Coleção de pérolas, piadas e ensinamentos para a vida (não necessariamente acadêmicos) de nossos mestres, Comitê de Luta Eachiano e Nakao (SEF USP) - O problema da EACH (USP-Leste). Em contexto diferente e mais sério em termos acadêmicos, mas ainda discutindo a gestão das Universidades, este blog do Prof. Adonai e o já citado Ciência Brasil também regularmente mostram vários problemas nas Universidades públicas brasileiras. Há até mesmo o Manual de sobrevivência na universidade: da graduação ao pós-doutorado, de Leonardo Monastério. Tudo isto veio para ficar. É melhor adotar a política de transparência e impedir que a versão definitiva do que acontece na universidade fique a cargo daqueles sites mais folclóricos ou mesmos destes mais sérios (lembrando que liberdade de expressão também é isto e não devemos tentar impedir esse tipo de manifestação. Tirar os sites do ar apenas demonstraria incapacidade de debater).

A governança na USP não está funcionando e é isto que precisa ser mudado. Faz-se necessário responder de forma clara e transparente aos contribuintes que nos sustentam. Se profissionalizarmos a nossa gestão, criarmos mecanismos internos de controle e aceitarmos auditorias externas, explicitarmos quais são os nossos objetivos e como pretendemos alcançá-los, estaremos à altura dos fundadores da USP. Caso contrário, cada vez mais deixaremos de ser importantes e, ao final, seremos apenas aquela escola de professores empolados que consomem parte dos tributos pagos pelos concidadãos paulistas. Até que um dia alguém perguntará: “e se fecharmos aquela coisa?” Quando e se esse dia chegar, provavelmente os responsáveis pela situação atual já estarão mortos. Por que se importar, não é mesmo? Por que criar inimizades? A diferença entre “fazer amigos e influenciar as pessoas” e fazer o que é certo é o que separa os Titulares Políticos dos Estadistas.

Essa diferença entre Estadistas e Titulares Políticos é fundamental na proposta de meritocracia radical, pois a definição da missão da universidade, bem como seus objetivos gerais, necessariamente deverá ser discutida com a sociedade paulista, a principal mantenedora da USP. Em “administrês”, são os chamados stakeholders, o público que é afetado pela ação da universidade de uma forma ou de outra. Se decidirmos assumir que a USP é uma instituição primordialmente de pesquisa, será interessante verificar a reação daqueles que nos imaginam como uma grande escola de terceiro grau. Até mesmo a suposta elite econômica talvez não aprove isto. Basta ver o grau de inovação da indústria brasileira, o investimento em novas tecnologias e o número de patentes aprovadas anualmente para constatar que pesquisa e tecnologia não são prioridades por aqui. Por outro lado, há o público interno que deseja fazer a “mudança social” (de certa forma, a revolução que não ousa dizer seu nome) e ampliar ações assistencialistas. Não é uma discussão fácil, pois, especialmente para aqueles docentes que assumem cargos importantes apenas para fazer amigos e influenciar pessoas. Daí a importância dos Titulares Acadêmicos assumirem de fato seu papel de Professores Titulares e pressionarem por uma reforma na gestão da USP. Isto significa assumir que há necessidade de política e abandonar o papel de vestais puras que preocupam apenas com a ciência. Na discussão com os stakeholders, os Titulares Políticos farão tudo o que for possível para manter a governança como está.

Iniciei este ensaio com uma longa paráfrase, mostrando como a atual governança uspiana parece-se de certa forma com o sistema comunista. Nesse livro, Stephen Kotkin e Jan Gross apresentam uma versão para o final dos regimes comunistas, na qual destacam a importância do que chamam de “a sociedade incivil”, ou seja, os membros do Partido Comunista em cargos importantes no regime. A analogia com a situação atual da USP é inevitável: somente se membros do Conselho Universitário fizerem as mudanças necessárias, poderemos sair da crise financeira em que nos encontramos. Não será a sociedade civil que fará isto. Acredito que, se insistirmos no caminho trilhado até aqui, apenas caminharemos para a obsolescência e para a insignificância. Títulos, homenagens, número de publicações apenas mascaram a situação. Em termos práticos, seremos inúteis para a sociedade que nos financia. 

Lembremo-nos de uma verdade há muito esquecida: não somos políticos ligados a partidos políticos, burocratas barnabés de caricatura ou geniozinhos admirados por amigos e parentes apenas porque temos o nome “USP” no nosso cartão de visitas. Somos docentes da Universidade de São Paulo. Deveríamos ao menos tentar honrar isto.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Por que é tão difícil provar a existência de Deus?

Bad Wolf

Recentemente publiquei na página Facebook deste blog uma matéria sobre preconceitos usuais em ciência. E o primeiro preconceito mencionado se refere à noção de "prova". 

Muitas pessoas afirmam que a ciência prova isso ou prova aquilo, insinuando a existência de um conhecimento que não permite espaço para dúvida alguma. Se uma pessoa assume que uma prova (ou prova científica) é uma metódica experiência de laboratório, uma descoberta amplamente conhecida pela comunidade científica ou (pior) um detalhado argumento que apresente uma resposta definitiva a alguma questão sobre algum fenômeno da natureza, esta pessoa não está assumindo uma postura científica. Isso porque a postura científica é fundamentalmente fomentada pela dúvida.

Se o leitor deste texto for uma pessoa com senso crítico, já deve ter se sentido desconfortável com a primeira frase do parágrafo acima: "Muitas pessoas afirmam que...". O que são exatamente "muitas pessoas"? E, pior, quem são essas pessoas?

Para responder parcialmente a essas últimas questões, recomendo que você mesmo faça a seguinte experiência. Digite no Google a seguinte palavra-chave: science (ciência). Surgirão 659 milhões de resultados. Em seguida, digite science has proven (a ciência provou). Surgirão 146 milhões de resultados, o que corresponde a apenas 22% dos resultados da primeira busca. Finalmente, digite science has proven god (ou seja, a expressão "a ciência provou" seguida do termo "deus"). Surgirão 17,5 milhões de resultados, o que corresponde a 12% dos resultados da segunda busca e somente 2,6% dos resultados da primeira.

Apesar da considerável desconfiança que o mecanismo de busca do Google desperta, ainda assim é possível perceber a existência de muitas pessoas que associam a noção de que "a ciência prova coisas" com "algum conceito sobre Deus", ainda que eu não tenha encontrado evidências de que tais pessoas representem alguma maioria. Ao se digitar a palavra-chave science has proven (sem menção alguma ao termo god), percebe-se, porém, já nas primeiras páginas expostas pelo mecanismo de busca, uma quantia considerável de sites com textos e vídeos sobre a existência de Deus, interpretações da Bíblia ou supostas análises sobre a Teoria da Evolução das Espécies (um dos alvos preferidos tanto dos autoproclamados céticos quanto dos fanáticos religiosos). 

E um dos pontos em comum entre tais textos é a presença da palavra "prova". São muitos os que questionam o que exatamente prova a Teoria da Evolução das Espécies. Outros chegam a afirmar que a ciência provou a inexistência de Deus, enquanto que alguns garantem que a ciência já provou a Sua existência.

No entanto, a confusão daqueles que esperam da ciência alguma resposta definitiva sobre a existência de Deus reside justamente no conceito de "prova".

Digamos que seja possível classificar a ciência em dois grandes ramos: ciências reais e ciências formais. Ciências reais seriam então divididas em ciências humanas e ciências naturais. As ciências humanas compreendem a economia, a sociologia, a psicologia, a linguística, entre outras. As ciências naturais contemplam a física, a química, a biologia, a geologia, entre outras. (Vale observar que estou me esquivando de qualquer visão objetiva sobre ciências reais, a partir do momento em que emprego o termo "entre outras"). Já as ciências formais compreendem a matemática e a lógica.

Em matemática e em lógica existe uma conceituação metamatemática muito precisa para prova, também conhecida como demonstração. Mas mesmo demonstrações matemáticas muito usuais são questionáveis. Um exemplo bem conhecido que ilustra isso é a visão intuicionista do matemático holandês L. E. J. Brower. Já nas ciências reais uma prova é usualmente uma evidência física e, portanto, algo sujeito a interpretações no escopo de algum corpo de conhecimento já estabelecido. 

Mas uma das características mais perturbadoras da ciência é que a distinção entre ciências reais e ciências formais carece de sentido, uma vez que todas as chamadas ciências reais fazem uso, vez ou outra, de métodos típicos das ciências formais.  E isso torna qualquer discussão sobre o conceito de prova muito mais complicado.

Desconheço a existência de qualquer texto sério e extenso o bastante para contemplar todos os casos possíveis de provas em ciência. Porém, parece seguro o bastante afirmar o seguinte: uma prova, em vastas porções da ciência, é apenas uma evidência de que uma teoria é suficientemente confiável para explicar fenômenos ditos reais, conforme são percebidos pela espécie humana em certos contextos sociais definidos pela comunidade científica internacional.

Ou seja, neste sentido, provas têm a função de apoiar ou contestar teorias, em um contexto social definido pela prática científica usual. John Maddox, editor da revista Nature durante muitos anos, chegou a escrever: "Se Isaac Newton submetesse sua teoria de gravitação hoje em dia, seu trabalho seria rejeitado para publicação em periódico especializado". A teoria da gravitação universal de Newton é um excelente exemplo para ilustrar o significado de uma prova. No século 17 a queda de uma maçã e a órbita da Lua ao redor da Terra eram provas que confirmavam tal teoria. No entanto, com o passar do tempo surgiram dúvidas severas quanto à interpretação física do conceito de força. Portanto, provar as ideias de Newton sobre gravitação ficou cada vez mais difícil, levando em conta as profundas exigências metodológicas, epistemológicas e pragmáticas existentes hoje em dia. A verdade (sempre mais perturbadora do que a maioria consiga antecipar) é que o próprio Maddox reconhece que até mesmo o artigo de Crick e Watson que desvendou a estrutura da molécula DNA (rendendo o Prêmio Nobel) provavelmente não seria publicável na Nature dos dias de hoje.

Dentro de certos contextos sociais extremamente toleráveis, a gravitação universal de Newton é suficientemente suportada por muitas provas. No entanto, hoje em dia é muito difícil contestar o marcante caráter metafísico da gravitação universal, a qual apela para uma misteriosa ação-a-distância que ocorre instantaneamente entre corpos com massa, não importando a distância entre eles. É possível que Isaac Newton fosse apelidado de Harry Potter, se apresentasse sua gravitação universal no século 21.

Se alguém se sente preparado para questionar provas da Teoria da Evolução das Espécies ou provas da existência ou inexistência de Deus, deve também estar preparado para questionar as provas da existência do campo gravitacional da Terra. Se uma maçã cai ao chão quando largada, tal evidência não garante que a gravitação universal está consolidada como um conhecimento inquestionável. Mesmo que um milhão de maçãs tenham o mesmo comportamento, não sabemos como se comportaria toda e qualquer maçã, ao ser largada de uma certa altura. E o questionamento sobre provas não cabe apenas à gravitação universal (a qual é criticada há séculos), mas a toda e qualquer teoria científica. Ou seja, antes de se questionar provas da existência ou inexistência de Deus, deve-se questionar o que, afinal, é uma prova.

Ainda que algum cientista apresentasse provas da existência de algo que muitos reconheceriam como Deus, tais provas dependeriam de um contexto teórico. E toda teoria é contestável. E, pior, toda prova está inevitavelmente vinculada a uma interpretação de supostos fatos. E como a noção de Deus frequentemente desperta fortes emoções (tanto entre religiosos quanto ateus e mesmo agnósticos), qualquer visão objetiva sobre o tema fica mais comprometida ainda. 

A ciência atingiu um grau suficientemente maduro para reconhecer que ela não surgiu para trazer respostas, mas apenas questões. E os reflexos desta maturidade têm ocorrido em áreas inesperadas do fenômeno humano, como as ciências jurídicas. Em brilhante artigo de David L. Faigman, o autor defende que juízes (enquanto membros do Poder Judiciário) deveriam ser cientistas amadores, dada a fundamental importância da ciência e da tecnologia nos dias de hoje. No entanto, não é o que ocorre. E a ignorância de juízes sobre conceitos básicos de ciência certamente compromete o próprio sistema judiciário. Um exemplo da importância de conhecimentos básicos de ciência entre juízes se encontra nesta postagem sobre um caso hipotético de exame médico indicando um falso positivo.

Em suma, por que é tão difícil provar a existência de Deus? Simplesmente porque não existem critérios objetivos (sem apelar para contextos sociais) que estabeleçam o que, afinal, é uma prova. Não é apenas a existência de Deus que se mostra difícil de provar. Se pensar bem, até mesmo a existência deste texto é contestável. Como saber se o leitor não está sonhando com esta postagem?

Se, por acaso, o leitor se sentir inseguro demais com esta visão sobre ciência, recomendo que erga uma maçã para o alto e a solte. Enquanto ela estiver caindo, pode respirar com certa tranquilidade e continuar confiando na surpreendente capacidade da ciência de se mostrar útil à sobrevivência da espécie humana. Mas se a maçã não cair, peço que faça contato com o administrador deste blog. Eu gostaria muito de ver uma maçã flutuante.

terça-feira, 10 de junho de 2014

O Cotidiano de uma Universidade Federal


Professores usando o sistema para perpetuar mentiras sobre aulas não dadas. Passeios no cinema computados como atividades complementares de graduação. Estratégias para enganar avaliadores do MEC. Tudo isso faz parte do dia-a-dia da Universidade Federal de São Paulo, um dos paraísos que abrigam professores com estabilidade irrestrita de emprego. 

O texto abaixo é cópia de e-mail que recebi de Youssef Cherem, professor que recentemente colaborou com um rico texto ilustrado sobre arte islâmica publicado neste blog. Quando recebi esse e-mail, imediatamente pedi para publicá-lo aqui. Enquanto o professor Cherem pensava a respeito de minha proposta, ele redigia a postagem sobre arte islâmica. E, agora, finalmente consegui autorização do professor Cherem para reproduzir seu e-mail. 


Espero que outros sigam este exemplo e aproveitem para usar o blog Matemática e Sociedade como veículo de denúncias da conturbada vida acadêmica brasileira.


Comentários entre colchetes são meus.


Desejo a todos uma leitura crítica.

________________
(Sem Título)
escrito por Youssef Cherem

Sou professor há três anos no curso de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp – Guarulhos).

Tomei a liberdade de lhe escrever devido ao seu blog e aos vários depoimentos que tenho lido nele a respeito da educação superior no Brasil.

O meu percurso acadêmico foi um tanto quanto incomum. Aos dezesseis anos, e depois novamente aos dezessete, cursei aulas de verão em uma universidade dos Estados Unidos, Purdue, no Gifted Education Research Institute.

Graduei-me em Relações Internacionais na PUC-MG; e fiz mestrado e doutorado em Antropologia Social na UNICAMP.

Por não ter graduação e pós-graduação na mesma disciplina, e por dedicar-me ao estudo de uma área onde praticamente não há pesquisa no Brasil, acabei sendo impedido de prestar concurso para professor em várias instituições, embora estivesse capacitado para tanto. Houve também o caso em que todas as minhas avaliações foram as melhores em um concurso para professor; no entanto, não passei porque a pessoa cuja nota foi inferior à minha na prova escrita, didática e de currículo, tinha mais tempo (experiência) como professor.

Acabei, finalmente, passando em um concurso para o recém-criado curso de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo, campus Guarulhos – mais por ser um especialista sobre história e cultura do mundo islâmico do que por ser especialista em história da arte, um campo até então novo para mim.

A disciplina que ensino é História da Arte Islâmica. Sou o único professor do Brasil dessa disciplina; de fato, talvez seja o único professor da área de história ou ciências sociais que tenha uma disciplina obrigatória versando exclusivamente sobre algum assunto a respeito do Oriente Médio.

A princípio, a perspectiva de poder lecionar sobre um assunto relacionado ao que já vinha desenvolvendo em minha pesquisa me animava bastante, apesar do grande desafio de ter que absorver a tradição de um campo de estudos que não era o meu. No começo, desgastei-me exageradamente nessa batalha – muitos livros, projetos de pesquisa, planos de aula etc. E então surgiram as primeiras dificuldades, contratempos e impasses. Isso tudo seria normal, se não houvessem continuado mesmo após mais de três anos. 

Em primeiro lugar, a bibliografia que utilizo é quase que exclusivamente em inglês. Isso gera um grande transtorno, porque os alunos evidentemente, em sua esmagadora maioria, não têm um domínio mínimo dessa língua. Não existe inglês obrigatório, como disciplina, e os alunos não percebem a importância do inglês. (Mesmo entre meus colegas de doutorado, na UNICAMP, havia quem não lesse um único texto em inglês, ainda que fosse obrigatório. No Brasil, essa situação perdura: há professores que dizem ler inglês, mas são incapazes de se expressar no nível mais básico, de escrever uma carta, ou um projeto, ou uma apresentação.)

Em seguida, vem a estrutura absolutamente carente em termos de material didático disponível: até hoje, apenas um livro que utilizo em aula encontra-se disponível na biblioteca. Tentei contornar o primeiro problema traduzindo os próprios textos utilizados em aula; desisti quando percebi que essa atitude era vista com estranheza pelos meus colegas de departamento e com desleixe pelos próprios estudantes. Logo percebi que as notas e a compreensão do assunto não melhorariam se houvesse à disposição material em vernáculo. Além disso, o próprio "exotismo" do tema desestimula os alunos. Não há nada que eles possam ligar a seu "cotidiano", quase nada com que possam estabelecer ligações com aquilo que eles conhecem em sua própria cultura – e, por costume, parece que no Brasil quase sempre se tenta ligar a importância de algo ao fato de ser "nacional", ter "aplicações práticas", ser "ligado ao cotidiano do aluno".

Para completar, não há material para pesquisa no Brasil, tanto em termos de bibliografia quanto em termos de material empírico propriamente dito. 

As pesquisas, quando existem, são medíocres; as supostas autoridades que dão suas opiniões sobre assuntos atuais do Oriente Médio, ou eventualmente lecionam uma disciplina optativa em uma universidade qualquer, não dominam, aparentemente, a bibliografia básica nem a historiografia atual sobre uma área de estudos que, por seu interesse geopolítico e cultural, supostamente deveria contar com mais interesse entre a população brasileira, principalmente de suas instituições federais de ensino ou de certos níveis do governo.

Mesmo sem qualquer financiamento para pesquisa, tentei prosseguir -- produzir artigos, e apresentar trabalhos. Em 2012, apresentei um trabalho em Montreal, e tive que arcar com todas as despesas. Em 2013, tive dois papers aprovados para congressos internacionais - um, para a Symposia Iranica, na Universidade de St. Andrews; outro, para a British Society for Middle Eastern Studies, em Oxford. Não fui a nenhum dos dois. Não consegui obter nenhuma ajuda de custo para apresentar meus trabalhos - nem da CAPES, nem do CNPq (que diz que minha área de pesquisa não é prioritária), nem da Unifesp. Depois disso, desisti (ao menos por enquanto) de todo o trabalho para redigir um paper para uma conferência. Em 2013, felizmente pude participar de um Simpósio de Arte Islâmica, mas como bolsista (Fellow) da Qatar Foundation.

A essas dificuldades, ainda se soma o desgaste físico e psicológico de toda a situação precária em que se encontra a UNIFESP – Guarulhos, e em particular, meu departamento. Você deve ter sabido que perdemos um semestre por causa da última greve das federais. Ainda estamos repondo as aulas este ano - isso, depois de passados dois anos. A infraestrutura (ou falta dela) é preocupante, mas talvez, por incrível que pareça, não seja o pior.

Tenho constatado, nos depoimentos de seu blog, uma grande insatisfação com as atitudes em relação à docência nas IFES [instituições federais de ensino superior]. O meu caso não é diferente.

Parece que ensinar para a graduação se tornou o objetivo secundário de um professor. Alguém poderia argumentar que o objetivo principal seria a pesquisa e produção de conhecimento - mas não é bem esse o caso. O objetivo principal parece ser: "aumentar estatísticas, para aumentar status". O pensamento dominante parece ser que, ao aumentar a quantidade, o Currículo Lattes de alguém ganharia um verniz de qualidade. Não importa, exatamente, que os artifícios seja espúrios.

Aqui posso dar vários exemplos. Um deles é o aumento da carga de horas-aula no sistema. Uma disciplina é dada por, digamos, três professores, que, em vez de dividirem a carga horária no sistema como dividem na prática, colocam no sistema que lecionaram o total das aulas. A consequência é o absurdo burocrático de que a carga horária fica menor do que o total de horas-aula lecionadas. Assim, se um curso de 60 horas tem três professores, e os três resolverem colocar como lecionando 60 horas, o total de horas lecionadas será 180 horas. Quando questionei esse fato, obtive evasivas e afirmações cínicas como "em todas as aulas havia dois professores em sala" ou "se o sistema aceita, então não há problema", ou pior: "coloque quantas horas quiser". Um caso semelhante foi uma disciplina com aulas "práticas" que tinha 150 horas-aula. Ao questionar quantas horas durava cada aula, não souberam responder. O cálculo é realmente absurdo: significa que deveria haver casos em que uma aula durava oito horas, ou, dependendo do cálculo, até 14 horas! Não importa se é aula prática ou não. Nenhuma aula dura 8 horas. 

Houve um instante em que percebi que um docente havia colocado, em seu nome, no sistema, 140 “heroicas” horas em uma única disciplina! Mesmo se diminuísse pela metade, não equivaleria às horas de aulas realmente dadas. A lógica por detrás disso é que ter mais horas-aula, mesmo dando até menos aulas que outro colega, contaria mais que as simples 60 horas-aula de uma disciplina por professor.

Recentemente a Unifesp decidiu que não é mais possível que a carga horária das disciplinas seja maior que a carga horária dada; o que seria lógico. No entanto, sempre há um “jeitinho”. O mesmo e-mail afirma que, “para os professores não serem afetados”, as turmas serão divididas – no sistema, e não na prática: na prática, será a mesma turma (mesmo horário, sala etc.). Assim, o professor continua dando 30 horas de aula, e colocando no sistema que são 60! Ou, no caso de disciplinas divididas entre três professores (caso concreto para o próximo semestre, e recorrente), cada um dará 20 horas-aula, o que equivale a cinco aulas (por semestre!) e, segundo o arbítrio de cada um, pode constar no sistema que lecionou 60.

Eu não sei nem que nome eu dou a isso mais. Antes eu chamava de picaretagem ou cara-de-pau. Mas parece que a picaretagem está institucionalizada.

Outro artifício é “bombar” o seu Currículo Lattes com artigos obscuros, em revistas que nem o Google acha, sem ISSN, corpo editorial ou coisa que o valha; ou "publicar" livros que são anais de congressos (sim, a autoria está lá no Lattes); ou se dizer autor (do livro) ou organizador, quando não se trata de nenhum dos casos, e mesmo nesse caso de "autoria", a contribuição se reduz a meras quatro páginas. E isso contaria como “um livro publicado, constando no Lattes”. Aqui não estou tratando nem da relevância, nem do impacto dessas publicações. Mas tudo soa como uma tentativa de dar ares de nobreza a posições intelectualmente frágeis. É por artifícios assim que se galgam posições como "orientador de mestrado" (eu não faço parte do programa de mestrado do departamento).

Outra questão é a monografia ou “TCC”, que é obrigatória no curso. 

Um professor anterior, depois de várias discussões, acabou afirmando que os professores dessa disciplina tinham um caráter “meramente burocrático”, e que não deveriam ser ensinados nem metodologia e nem redação científica ou coisas afins. Sugeriram inclusive que os alunos trocassem a palavra "Conclusão" por "Considerações Finais", porque "não existem conclusões definitivas", ou porque os alunos não teriam maturidade para chegar às suas próprias conclusões! Poderiam ser repassadas "dicas", mas "sem interferir na relação orientador-aluno", e também poderiam ser ensinadas as regras da ABNT, que, segundo esse professor, "não são óbvias e nem fáceis" (visto que ele próprio demonstra desconhecê-las, em seu "material didático").

Para completar, existe uma "disciplina", chamada de “Atividades Complementares”, que tem mais de 100 horas-aula, em que é calculada a participação do aluno em eventos externos ao curso. São calculadas horas de cinema, teatro, visita a museus, galerias, cursos de literatura, presença em defesas de trabalhos, organização de eventos e sim, pasmem, até leitura de livros. Não me perguntem como vão calcular (como estão calculando) tudo isso. Mas no absurdo conceitual (uma disciplina de "Atividades Complementares" para encher horas-aula com atividades que seriam naturalmente esperadas de qualquer estudante, ainda mais nessa área) e burocrático (existe uma tabela com as horas máximas aceitas em cada uma dessas atividades, para serem computadas), tudo isso passa como "natural".

No final das contas, torna-se impossível crer na viabilidade de um projeto pedagógico que resultou em apenas três ou quatro alunos formados em suas primeiras duas turmas - e mesmo assim com casos engraçados (ou patéticos), como o do orientador que deu nota dez a alunos que nem estavam matriculados em Monografia, ou de outro que aprovou seu orientando antes da defesa, também com nota dez (o orientando teria defendido a monografia depois do fim do semestre).

Um dos últimos casos foi a tentativa (se bem sucedida ou não, é esperar para ver) de “maquiar” a disponibilidade da bibliografia das disciplinas para a visita do MEC de aprovação do curso. Foi sugerido colocar textos gerais, em português, mesmo que não dissessem respeito ao assunto, porque "o pessoal do MEC raramente presta atenção nisso". Foi sugerido até mudar a ementa para quatro livros obrigatórios e quatro complementares... e que estivessem disponíveis na biblioteca. Com minhas ementas com muitos livros e artigos, todos em inglês, e nenhum disponível, isso seria um absurdo. Neguei-me a mudar minhas ementas. Até hoje eu não sei se mudaram as ementas das minhas disciplinas ou não.

É até desnecessário dizer tenho poucas esperanças de que algum dia isso possa melhorar. Questionar todos esses procedimentos e atitudes, exigindo uma atitude ética, me valeu o isolamento – repentinamente, muitas pessoas começaram a me evitar, e deixam de me cumprimentar. 

Resta saber até quando poderei continuar – 10, 20 anos? – esperando, quem sabe, uma realocação para outro curso ou universidade.