Cerca de três anos atrás vendi um roteiro para um filme de ficção sobre o sistema educacional brasileiro, com ênfase nos bastidores das universidades federais. O título provisório é Academia. O roteiro foi comprado pelo diretor, produtor e roteirista José Padilha. Para quem não lembra, Padilha é o diretor dos controversos Garapa, Ônibus 174, Tropa de Elite e Tropa de Elite 2. O problema é que a produção de cinema envolve um conjunto quase infindável de variáveis. Tanto é verdade que hoje Padilha está no Canadá, dirigindo o remake de RoboCop, uma nova produção hollywoodiana que estará em cartaz em 2013. Enquanto o projeto de Academia estava na fila de espera, escrevi um livro para ser lançado paralelamente ao filme. No entanto, nenhuma das editoras que procurei demonstrou o mais remoto interesse na obra, a qual evidentemente vai em desencontro a interesses mesquinhos que dominam este país. Tendo isso em mente adaptei vários capítulos do livro e os publiquei em inúmeras postagens deste blog. Tomei apenas o cuidado de jamais revelar qualquer ingrediente das tramas do roteiro. Se Academia será produzido ou não, somente o tempo responderá. Já houve várias demonstrações claras de interesse por parte de financiadores de grande porte. Mas dinheiro não é a única variável envolvida na produção de filmes para o telão. Padilha chegou a escrever um prefácio para o livro que acompanharia o lançamento do filme. É um prefácio que julgo importante demais para ser ignorado, pois trata do grave problema das imposturas intelectuais, muito mais comuns em nosso país do que em nações desenvolvidas. Pedi ao autor para veicular seu prefácio neste blog (texto que segue abaixo) e ele enfaticamente permitiu. Espero que os leitores tirem o melhor proveito possível deste texto escrito por um raro indivíduo do meio artístico que genuinamente tem uma visão madura sobre produção de conhecimento e não apenas sobre produção de cinema.
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(Sem Título)
escrito por José Padilha
São várias as teorias e concepções do que seja conhecimento. Por isso, a classificação de uma comunidade como acadêmica é relativa e não absoluta. Uma comunidade de monges jesuítas pode ser eficiente na produção e no ensino de textos religiosos. Todavia, alguém que não entenda esses textos como conhecimento não classificará tal comunidade como acadêmica. Assim, o problema de se avaliar o funcionamento de uma academia, ou seja, de saber se ela produz e transmite conhecimento de forma adequada, não tem solução única e se define de maneira diferente, conforme as concepções de conhecimento.
Os leitores que se interessam por filosofia da ciência já devem ter percebido que, no fundo, o problema de se avaliar as comunidades acadêmicas está intimamente ligado à demarcação entre conhecimento e ideologia, entre ciência e pseudociência. Não foi por acaso que o filósofo Imre Lakatos afirmou que este problema não é meramente teórico, e que tem grande importância social. Afinal, o conhecimento confere status às pessoas, às comunidades e às organizações. Logo, a forma pela qual uma sociedade define conhecimento tem impacto significativo não apenas com relação à alocação de recursos que ela destina para a produção do que considera conhecimento, mas também com relação ao peso político que dá às diferentes opiniões de seus membros. Levando-se em conta ainda a dimensão pragmática do conhecimento, manifesta na tecnologia, pode-se dizer que o conceito que uma dada sociedade tem sobre essa noção é fundamental para o seu futuro.
Tradicionalmente a filosofia tem duas atitudes básicas com relação ao conceito de conhecimento. Alguns filósofos acreditam que existe uma concepção mais adequada do que as outras, mesmo que ainda não tenha sido enunciada ou que não haja acordo quanto ao seu enunciado. Para estes filósofos (que acreditam que o problema da demarcação tem solução) faz sentido, pelo menos em princípio, avaliar a capacidade que uma dada comunidade tem para produzir sistemas de enunciados que satisfaçam certos critérios universais, a dizer, os critérios que definem conhecimento. Todavia, muitos filósofos não acreditam em uma noção universal e única para o problema da demarcação, e partem do princípio de que cada comunidade tem suas próprias concepções e que todas são igualmente válidas. Para os filósofos que relativizam o conhecimento desta forma, a avaliação de uma academia é um exercício de sociologia, feito a partir de critérios sociológicos inerentes a cada comunidade acadêmica.
Hoje em dia os núcleos de ensino e de pesquisa não são mais comunidades como eram na Grécia antiga. São estruturas organizacionais bastante complexas e que têm como missão formar profissionais especializados em determinadas áreas; formação esta que requer, pelo menos a princípio, que tais profissionais adquiram certos conhecimentos e a capacidade de gerar mais e ainda ensinar. Todavia, dentro de uma única universidade podem existir diversas comunidades acadêmicas com concepções diferentes do que seja conhecimento; o que faz com que a própria ideia de relativização do conceito de conhecimento se torne problemática quando aplicada a uma universidade como um todo. A rigor, esta relativização só faz sentido ao nível das comunidades que têm a mesma visão e não ao nível das organizações, salvo caso em que todas as comunidades de uma mesma organização subscrevem aproximadamente ao mesmo conceito de conhecimento. Assim, o problema de se avaliar uma academia a partir da postura de relativização é bastante complexo e fragmentário, demandando a divisão das estruturas organizacionais dedicadas ao ensino em diversas comunidades, e a utilização de diferentes critérios "sociológicos" do que seja conhecimento, para avaliação de cada uma dessas comunidades. Todavia, apesar desta complexidade, na maioria das vezes é assim mesmo que as universidades são avaliadas. Não é por acaso que a unidade de avaliação acadêmica padrão é o departamento universitário, que corresponde mais ou menos a uma dada comunidade acadêmica que subscreve a uma dada noção de conhecimento; e que as avaliações dos departamentos são sempre montadas por especialistas nas áreas destes mesmos departamentos. Tratam-se, portanto, de avaliações parcialmente relativizadas. Parcialmente porque em uma mesma área podem coexistir mais de uma concepção do que seja conhecimento, e porque nem sempre a concepção dos avaliadores é totalmente igual à da comunidade avaliada. Mesmo assim, é clara a fragmentação das avaliações acadêmicas padrão. Será, então, que a sociedade moderna adotou uma posição relativista no que tange ao problema da demarcação?
É claro que as diferenças de opinião a respeito do que seja o conhecimento não são a única explicação possível para o fato das organizações acadêmicas serem tradicionalmente avaliadas por departamento. A especialização também tem a sua relevância e muitos podem argumentar que ela gerou a departamentalização das avaliações acadêmicas; dado que o conhecimento está tão especializado que apenas um perito pode avaliar seus pares. De fato, esta é parte da verdade, mas não toda. A "fragmentação" do conceito de conhecimento também tem a sua influência. Afinal, a adoção de um conceito fixo, como princípio de avaliação acadêmica, tem o potencial de desagradar muita gente. Imagine, por exemplo, se o departamento de física do MIT (Massachusetts Institute of Technology) resolvesse publicar uma avaliação do departamento de filosofia do Collège de France a partir da sua definição de conhecimento... Criaria, para dizer o mínimo, uma razoável controvérsia. E é, em parte, por temer controvérsias deste tipo que muitos acadêmicos, que acreditam na possibilidade de uma lógica do conhecimento, preferem não se opor publicamente aos que não acreditam, e aceitam o princípio de que cada especialista deve avaliar a sua própria área mesmo nos casos em que suspeitam seriamente do conhecimento dos especialistas em questão. Trata-se de uma opção de ordem prática e política que, se contribui para a paz de espírito de alguns, colabora também para esconder do grande público as profundas divergências que existem no meio acadêmico a respeito do que seja conhecimento.
De certa forma as avaliações dos departamentos universitários são semelhantes àquelas que as revistas especializadas fazem dos textos que lhes são submetidos. Por isso, o affair "imposturas intelectuais" ensina mais do que parece. Em 1996 o físico Alan Sokal redigiu o texto "Transgredindo as Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravitação Quântica", de forma que este fosse propositadamente absurdo. Encheu o texto de passagens do tipo "o π de Euclides e o G de Newton, antigamente imaginados como constantes e universais, são agora entendidos em sua inelutável historicidade", ou ainda "a realidade física, não menos que a social, é no fundo uma construção social e linguística". Depois, a título de experiência, submeteu seu artigo para a revista americana Social Text, uma conceituada publicação pós-moderna. Os revisores da revista, que eram professores de importantes departamentos universitários americanos, decidiram pela publicação do artigo, provavelmente por considerá-lo, à revelia do autor, uma contribuição relevante ao conhecimento humano. A controvérsia que se seguiu à publicação do artigo, a revelação de que era uma fraude, e a subsequente publicação de Imposturas Intelectuais (livro que Sokal escreveu com Jean Bricmont) dá uma boa ideia do que acontece quando a noção de conhecimento de uma comunidade é utilizada para avaliar a produção acadêmica de outra.
Hoje em dia as estruturas organizacionais têm muita influência na produção e na disseminação do conhecimento, para o bem e para o mal. Uma organização tem estrutura e cultura próprias, e estas podem trabalhar a favor ou contra a geração e a disseminação do conhecimento, mesmo quando a sua missão é fazê-lo avançar. Este fato permite que se formulem avaliações da excelência acadêmica ao nível organizacional, e não apenas ao nível dos departamentos universitários. As questões típicas que se colocam, neste tipo de avaliação, são as seguintes: a estrutura e a cultura de uma dada organização trabalham a favor ou contra a produção e a disseminação do conhecimento? Respostas a questões deste tipo também pressupõem, é claro, uma concepção do que seja conhecimento e um posicionamento a respeito do problema da demarcação.
Só que, ao contrário das avaliações por departamento, uma avaliação acadêmica organizacional é muito mais geral e abrangente. Questões desta ordem podem ser colocadas de forma muito ampla, bastando que para isso as organizações em consideração sejam igualmente amplas. Ora, como muitos países normatizam as suas atividades acadêmicas, adotando procedimentos universais para regulá-las, pode-se até propor uma avaliação do funcionamento das organizações acadêmicas de um país como um todo, onde se discutiria se a adoção desta ou daquela norma acadêmica trabalha a favor ou contra o ensino e a pesquisa nestes países. Em outras palavras: de um ponto de vista organizacional, pode-se avaliar os procedimentos acadêmicos de um país como um todo, resguardadas, é claro, as particularidades de cada universidade e departamento universitário.
Evidentemente, não é preciso ressaltar o potencial polêmico que avaliações desta amplitude podem ter. Um fato que, felizmente, não incomoda ao professor Adonai Sant’Anna, eminente físico e matemático, colega de Newton da Costa, José Acácio de Barros, Décio Krause e Patrick Suppes. No presente livro Adonai apresenta uma contundente crítica ao funcionamento da academia brasileira como um todo, tomando como ponto de partida uma concepção razoavelmente universalizada e científica do que seja o conhecimento. Trata-se de uma crítica sincera que não se curva ao cálculo político que muitas vezes baliza as avaliações acadêmicas. Por isso e por muitos outros motivos, acredito que o presente livro pode trazer grande contribuição para a academia brasileira. Faço, no entanto, uma ressalva: digo isso a partir da minha própria concepção de conhecimento que pretendo universal, apesar de incompleta, e que me parece ser semelhante à do autor.
Eu sabia do roteiro (do qual tive acesso e até dei sugestões depois), sabia do possível filme, mas não fazia ideia de um livro (bom saber disso) e nem que havia sido mandado para editoras. Acredito que se realmente este livro está pronto, que seja enviado de novo para diversas editoras que conheço e que poderiam ter interesse na publicação. Não desista! Por muitos comentários seus aqui no blog as pessoas já perceberam que você por vezes desiste das coisas. Nada na vida é fácil Adonai. Nada vem de graça e sempre de forma maravilhosa. Temos que ter resiliência e lutar pelo que acreditamos. Trabalhar pelas coisas e pelas pessoas. Ainda acredito neste seu potencial, caso contrário não estaria mais divulgando seu blog para amigos e alunos! Tenho confiança em seu profissionalismo e na sua boa vontade em querer mudar as coisas! FAÇA! E conte comigo para estas lutas profissionais!
ResponderExcluirSusan
ExcluirPermita-me explicar. Eu não desisto daquilo que faz sentido para mim, enquanto fizer sentido. Tanto é verdade que este blog é prova disso. Não consegui publicar o livro, mas seus conteúdos estão sendo pouco a pouco divulgados aqui. E, convenhamos, de forma mais democrática. Livros custam dinheiro. Acesso à internet é muito mais viável. O que importa não é a publicação de livros (algo que já fiz). O que importa é a disseminação de ideias e a busca por suas realizações. E isto está sendo feito.
Imposturas intelectuais de A. Sokal é um aviso de como não fazer filosofia da ciência.
ResponderExcluirGilson