quarta-feira, 25 de abril de 2012

Elementos do Raciocínio Jurídico


O texto abaixo é reprodução de artigo publicado no Jornal Carta Forense. O Professor Cesar Serbena pediu para eu veicular seu artigo por aqui, enquanto aguardamos material que prepara especialmente para este blog. Serbena é professor pesquisador do Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Suas linhas de pesquisa incluem lógica e informática jurídica. Quaisquer dúvidas colocadas na forma de comentários serão encaminhadas ao autor para eventualmente serem respondidas neste fórum.

Nesta breve exposição, cujo objetivo é divulgar os resultados mais significativos da pesquisa realizada atualmente na área de Teoria do Direito, mencionarei os principais temas e resultados obtidos pelos teóricos na análise do raciocínio jurídico.

Primeiramente é preciso ressaltar que o raciocínio jurídico, desde antes do Direito Romano, é marcado em cada fase histórica por peculiaridades que lhe são próprias, de modo que a forma de raciocinar dos juristas modificou-se ao longo do tempo. 

Na Grécia clássica, aproximadamente um século antes de Sócrates, originou-se uma forma peculiar de argumentação, na qual as razões principais que dominavam os debates eram pautadas não tanto em razões míticas ou religiosas, mas em leis que foram resultado da atividade humana e de legisladores como Sólon, Clístenes e posteriormente Péricles. Este fato histórico foi determinante para o desenvolvimento da argumentação jurídica no mundo ocidental: os gregos da época clássica compreenderam que a cidade, enquanto comunidade política, poderia elaborar suas próprias leis de maneira racional, sem recorrer a uma forma de raciocinar mítica ou irracional. Basta dizer que a democracia grega, a primeira e única democracia do mundo antigo, resultou desta nova maneira de entender a lei.

A outra grande contribuição histórica, determinante para a forma de argumentar dos juristas, foi o Direito Romano. O principal legado de Justiniano foi ter compilado e organizado a legislação de quase um milênio do Império Romano no famoso Digesto. Porém, o Digesto por si só não basta para compreender como formou-se a forma moderna de argumentação jurídica. Os Glosadores, escola de Bolonha formada por pensadores e teólogos de formação jurídica, por volta do século 12, leram o Digesto a partir da formação escolástica e aristotélica, além dos princípios do Direito Canônico, anotando à margem do texto original romano explicações e elucidações para as partes que não eram muito bem compreendidas. Estes comentários foram determinantes para a formação do moderno Direito Privado. Deste modo, a racionalidade grega conjuntamente com a formação jurídica dos escolásticos e de sua leitura sobre o Digesto romano, formaram a base do Direito pré-moderno.

Foi o Código Civil de Napoleão que cunhou a forma moderna de argumentar no Direito. A fonte predominante da norma jurídica deixava de ser Deus; seria a Lei, enquanto expressão do Estado Moderno, o principal recurso para advogar razões e fundamentar um direito. Não só juízes como advogados deveriam recorrer ao Código como fonte principal para a solução das controvérsias. O positivismo jurídico foi a ideologia do pensamento jurídico correlata ao Código. Esta forma de argumentar, recorrendo ao Código, predominou durante o século 19 e em parte do século 20, de modo que primeiramente surgiram os códigos civis e posteriormente os códigos comerciais. Progressivamente outros ramos do Direito foram codificados.

A codificação influenciou de maneira determinante a forma de raciocinar dos juristas até meados do século 20 e continua até hoje a exercer um papel característico. Os códigos talvez ainda sejam a fonte predominante de soluções para a maioria das controvérsias. A argumentação jurídica contemporânea surgiu como crítica ao raciocínio jurídico baseado estritamente na lei positiva e codificada. 

Para entender o processo contemporâneo devemos observar o advento das Constituições. Ao contrário dos Estados Unidos, cuja constituição surgiu incorporando a maioria dos dispositivos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, a maioria dos países ocidentais sofreu a influência da técnica constitucional adotada na Constituição da Alemanha ocidental do pós-guerra, na qual foi estabelecido um núcleo duro que garante os direitos e garantias fundamentais, as quais não podem ser abolidas nem atingidas por emendas ou reformas constitucionais posteriores.

Esta característica das constituições contemporâneas, e que marcou a Constituição brasileira de 1988, modificou radicalmente o raciocínio jurídico. Atualmente os princípios constitucionais não são entendidos apenas como normas residuais para o preenchimento de lacunas, mas são o ponto de partida das premissas do raciocínio jurídico. Os princípios são tão significativos que, ao serem invocados, podem inclusive impedir a aplicação de um dispositivo de lei que os contrarie. É controverso sobre o quanto os princípios devem gerar efeitos jurídicos, porém, quase ninguém atualmente despreza o seu papel.

A peculiaridade dos princípios, enquanto componentes principais da argumentação jurídica atual, é que sua formulação é extremamente genérica. Igualdade e liberdade são garantias constitucionais, porém surgem dúvidas, nas circunstâncias concretas dos casos jurídicos, de qual a sua extensão e o quanto podem ser restringidas ou não. A argumentação segundo princípios provocou os teóricos do Direito a formularem novas metodologias para o raciocínio jurídico. A "Teoria pura do Direito" e a "Teoria geral das normas", de Kelsen, e a "Teoria Geral do Direito", de Bobbio, foram teorias que explicaram adequadamente o Direito das sociedades ocidentais até o advento da Segunda Guerra Mundial.

Para o Direito dos Estados contemporâneos, garantidores sobretudo dos direitos e garantias fundamentais, foram formuladas teorias que incorporaram uma metodologia teórica específica para os princípios. Podemos citar as teorias de Ronald Dworkin (surgida nos Estados Unidos a partir da década de 70) e a teoria de Robert Alexy (surgida em 1978 na Alemanha ocidental).  Para este segundo autor, os direitos humanos não são apenas componentes do Direito, mas são resultados de pressupostos que possibilitam a argumentação jurídica. Em outras palavras, para Alexy, sem direitos humanos não há possibilidade de argumentação jurídica. É importante mencionar que estas não são as únicas teorias existentes. Há outros teóricos com teorias próprias de igual importância como Neil MacCormick e Manuel Atienza, cujas principais obras foram traduzidas recentemente para o português. 

As teorias mais recentes elaboraram uma categoria específica para o raciocínio segundo princípios, denominada Derrotabilidade. Em poucas palavras, Derrotabilidade é a propriedade que os princípios possuem de, ao serem aplicados, derrotarem a aplicação de uma outra norma ou princípio. A norma não aplicada foi então "derrotada" pela norma aplicada. Giovanni Sartor na Itália e Jaap Hage na Holanda são juristas cuja contribuições teóricas são originais e precursoras para o entendimento da Derrotabilidade.

Este breve panorama histórico procurou traçar rapidamente como o processo de argumentação jurídica modificou-se ao longo do tempo, passando por suas características essenciais e que moldaram a forma contemporânea de raciocínio e argumentação jurídica. Para concluir, não devemos esquecer que a garantia da ampla argumentação jurídica, principalmente a partir dos princípios constitucionais, é um componente essencial de qualquer democracia.

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