quinta-feira, 30 de abril de 2015

Como ler sobre ciência sem ficar lelé da cuca


Enquanto desenvolvo os vídeos educativos anunciados, além de cumprir com as minhas obrigações como docente e pesquisador, consigo encontrar algumas brechas de tempo para escrever postagens. Vamos lá.

A neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel lançou no mês passado o livro Falando Ciência: Guia prático para comunicar ciência aos seus pares e ao público sem arrancar os cabelos. A ideia da autora, em princípio, é muito boa. Afinal, qual é o valor social do conhecimento científico se ele não puder ser aplicado ou, pelo menos, compartilhado? E como justificar a investigação científica perante o público se seus resultados forem conhecidos apenas por aqueles que desenvolvem a ciência? 

Mas creio que seria igualmente importante alguém escrever uma obra um pouco mais fundamental, intitulada "Ouvindo Ciência: Guia prático para entender ideias novas sem arrancar os cabelos dos outros".

Como muitas atividades sociais (incluindo educação, música, teatro, cinema e política, entre outras), a ciência enfrenta grave crise. A última novidade foi publicada hoje, no site de notícias The Independent. De acordo com Richard Smith, ex-editor do prestigiadíssimo British Medical Journal (BMJ), "a maior parte do que é publicado em periódicos científicos hoje em dia está simplesmente errado ou carece de sentido". Em palestra na Royal Society, Smith relatou um experimento muito simples, realizado quando ele editava o BMJ. Um pequeno artigo científico, contendo oito erros intencionalmente colocados, foi enviado a 300 pesquisadores que costumam trabalhar como avaliadores para aquele periódico. Nenhum dos avaliadores encontrou mais do que cinco erros. A média foi de dois erros encontrados, para cada revisor. E 20% desses revisores não encontrou erro algum. Se o atual sistema de avaliação de artigos científicos - para fins de publicação em periódicos especializados - fosse uma droga sob testes, jamais entraria no mercado. Isso por conta de inúmeras evidências de indesejáveis efeitos colaterais, mas sem evidências convincentes de benefícios, afirma Smith. 

A raiz do problema reside, entre outros fatores, em conflitos de interesses entre pesquisadores e obsessão por modismos científicos. E este fenômeno tem criado também enormes obstáculos para a veiculação de ideias genuinamente originais e relevantes.

Ora. Se a própria comunidade científica encontra crescente dificuldade para conferir credibilidade no que faz, mesmo entre seus pares, o que deve pensar um leigo que se interesse por ciência?

Por conta disso, fiz uma breve lista de dicas para ler e ouvir ciência. Espero que o leitor aproveite bem essas recomendações.

1) Não se impressione com vocabulário técnico. Ciência é uma atividade humana que faz uso de termos linguísticos e modos de pensar nem sempre encontrados no cotidiano do público leigo. Portanto, é muito fácil usar terminologias e modos de inferência que simplesmente induzem ao erro. Um exemplo bem conhecido é o célebre embuste do monóxido de dihidrogênio. Esta substância é o principal componente da chuva ácida, contribui para o Efeito Estufa, pode causar queimaduras severas, acelera a corrosão e oxidação de metais e já foi encontrada em tumores retirados de pacientes com câncer. No entanto, é empregada na fabricação de refrigerantes e sucos industrializados, bem como na produção de fast food. Devemos combater o emprego de monóxido de dihidrogênio na indústria alimentícia? Certamente que não. Afinal, monóxido de dihidrogênio é simplesmente um termo técnico para água.

2) Desconfie de afirmações exageradamente surpreendentes. Se um autor afirma categoricamente algo que lhe parece muito estranho ou surpreendente, consulte especialistas ou outras fontes confiáveis, para cruzar informações. Jamais confie em um único autor, mesmo que publique suas ideias em um veículo científico bem conhecido e respeitado. Procure conhecer a repercussão dessas ideias na comunidade científica. Por exemplo, nenhum físico sensato afirma de maneira categórica que o Big Bang determinou o nascimento do universo bilhões de anos atrás. O que se afirma, de maneira responsável e bem qualificada, é que existem evidências muito convincentes de que o universo conhecido surgiu a partir de uma grande explosão hoje conhecida como Big Bang. Citando mais um exemplo, este mês o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis publicou um pequeno livro em parceria com Ronald Cicurel, no qual defende que máquinas de Turing jamais conseguirão simular o cérebro humano. Este é um belo exemplo muito recente de afirmação bombástica que certamente gera muita desconfiança. Cuidado! 

3) Desconfie do senso comum. Com intimidadora frequência, "senso comum" significa simplesmente "repetição de jargões populares resultantes de reflexão superficial". Afirmações como "é lógico que x = x", "a toda ação corresponde uma reação", "tudo é relativo", "o homem descende do macaco", "é impossível dividir por zero", "postulado é uma verdade evidente", "o gato de Schrödinger está vivo e morto ao mesmo tempo", entre outras, nada têm a ver com ciência. Toda ideia de caráter científico depende de um contexto que deve ser cuidadosamente avaliado. Não se resume ideias relevantes da ciência, de maneira responsável, em uma ou duas frases.

4) Evite autores que opinam sobre ciência sem jamais terem feito contribuições científicas. Para opinar, é preciso conhecer. E, para conhecer, é preciso fazer. Quem faz ciência, publica suas ideias em veículos especializados. Quem não publica em veículos especializados, não conhece ciência. Simples assim. Não existe conhecimento científico passivo, que se aprende apenas lendo. Ciência é uma atividade que demanda sofisticado requinte intelectual, o qual só pode ser desenvolvido com muita prática. Assim como um atleta nada aprende de relevante apenas acompanhando atividades físicas de seu treinador, nenhuma pessoa aprende ciência sem fazer ciência. Livrarias e internet estão repletos de livros e artigos de autores que opinam sobre ciência sem jamais terem se qualificado para isso. É claro que fazer ciência não é suficiente para opinar sobre o tema. Afinal, não são poucos os experientes profissionais que erram gravemente em seus pareceres, como ilustrei acima. No entanto, é fundamentalmente necessário.

5) Desconfie de quem grita e de quem especula. Aqueles que tentam impor ideias, são meros doutrinadores. E ciência não é uma doutrina. Quem tenta impor que "ciência é uma atividade racional", não demonstra racionalidade. Quem afirma ser cético, deve cultivar o ceticismo sobre seu próprio ceticismo. Quem afirma que uma máquina de Turing jamais poderá simular as funções do cérebro humano, está apenas especulando. Conhecimento científico só pode ser adquirido com muito empenho, muita discussão e muita paciência. 

6) Conheça noções básicas de argumentação. Saiba diferenciar argumentos dedutivos de indutivos. Conheça pelo menos as formas mais comuns de falácia. E perceba a diferença entre debates e embates.

A Lógica da Violência


Campo de batalha na Assembleia Legislativa do Paraná e arredores. Professores grevistas da rede estadual, demais servidores estaduais, polícia militar, incontroláveis cães pit bull, gás lacrimogênio, cassetetes, balas de borracha, centenas de feridos. O motivo, segundo a superficial mídia, é o seguinte: Em reunião a portas fechadas, a Assembleia votou favoravelmente pela reforma do sistema previdenciário do serviço público do Estado do Paraná. 

Com tantas decisões arbitrárias, sem sintonia alguma com as necessidades do povo de nosso país, por que esta chamou tanta atenção? Explico de duas maneiras: uma técnica e uma realista.

A explicação técnica é simples, apesar de burra. O Estado do Paraná conta com dois sistemas previdenciários: um antigo e um novo. O antigo era mantido pelo Estado, enquanto o novo é sustentado por servidores. O que a Assembleia fez foi simplesmente transferir a origem do custo do antigo para o novo, colocando em risco a sustentabilidade do novo. Isso explica tanta confusão? Claro que não! Mudanças em sistemas previdenciários são, de tempos em tempos, absolutamente necessárias. Sociedades se transformam e, por conta disso, precisam rever suas políticas internas. Este processo de revisão faz parte de qualquer sociedade, saudável ou não. 

A explicação realista é igualmente simples, porém apavorante. Aqui vai.

1) O povo brasileiro não confia mais em seus governantes. A crise política está definitivamente instalada. Não importa se é PSDB, PT ou qualquer outra sigla partidária. Política virou sinônimo de Profissionalismo em Podridão, Palhaçada, Pilantragem, Prostituição, Patifaria, Perdição. A crise na educação se instalou ao longo de décadas, garantindo a estabilidade da ignorância. A crise na segurança pública se reflete com policiais sem treinamento e mal pagos. A crise na saúde pública é clara, com péssimo atendimento sem respeito algum ao indivíduo. E a crise na justiça se traduz com uma onda de juízes cada vez mais novos e inexperientes e exaustiva lentidão na conclusão de processos. Se o povo não confia mais em seus governantes, como confiar na sustentabilidade da previdência dos servidores estaduais do Paraná, diante das novidades?

2) O povo brasileiro não luta, não ataca. Apenas espera. Acostuma-se com um desestímulo aqui, uma perda ali, desde que ocorra de forma gradual. E nossos governantes, como ocorre em várias outras nações, aprenderam há muito tempo que medidas socialmente nocivas devem ser implementadas aos poucos, corroendo as sociedades lentamente. Foi assim que governantes conseguiram destruir a educação pública em nosso país. Especificamente o povo brasileiro não entendeu ainda o que é democracia. Democracia é o melhor regime político hoje existente. Mas é também uma faca de dois gumes. Democracia jamais funciona em um Estado que depende única e exclusivamente de um processo eleitoral. É fundamental o engajamento direto do povo. É obrigação do povo exigir prestação de contas o tempo todo e não apenas em uma decisão ou outra. Enquanto o povo continuar a se omitir, nossos políticos e a própria mídia continuarão a usar o termo "invasão" para se referir a acompanhamentos e discussões do povo em lugares como uma Assembleia Legislativa. 

3) O povo está com medo. E a verdade é que deveria estar apavorado. A nova decisão da Assembleia Legislativa não atinge o contra-cheque de pessoa alguma, pelo menos por enquanto. Ou seja, não se reflete em consequências imediatas. Mas atinge em cheio o futuro. E, pior, atinge fatalmente um futuro em que esses mesmos servidores não terão mais energia ou sequer saúde para se defenderem. Os servidores que hoje lutam, estão tentando defender o direito à cidadania e à vida digna no momento em que estarão fracos demais para lutar. Mas esta manifestação que ocorre agora é pontual e, portanto, tão desprovida de sustentabilidade quanto a decisão da Assembleia Legislativa do Paraná. Falta ao povo uma visão de contexto. O contexto hoje é de passividade, quando deveria ser de permanente atividade. 

Não são apenas servidores públicos que devem lutar. E servidores não devem lutar apenas pelos seus direitos. Todos devemos lutar. Todos devemos exigir pelos nossos direitos e pelos direitos de nosso vizinho. Devemos exigir não apenas por uma aposentadoria digna, não apenas por um futuro de vida e cidadania. Devemos igualmente lutar por um presente digno. Decisões sobre previdência de servidores públicos não afetam apenas servidores públicos, mas também a todos que dependem desses servidores. Decisões sobre educação, segurança, justiça e saúde afetam a todos os brasileiros que ainda insistem em viver por aqui. Mas quem realmente se importa?

Invadir Assembleias Legislativas, Câmaras de Deputados, Senado, Gabinete da Presidência? Sem dúvida. Mas não apenas hoje. Exigir de nossos governantes? Certamente! Mas não apenas uma vez a cada dois anos ou em raros momentos de lucidez.

As eleições brasileiras já viraram piada fora de nosso país. Como já disse um estadista francês, décadas atrás, o Brasil não é um país sério. E nada mudou. Ainda somos conhecidos como uma nação de mulheres bonitas, carnaval e futebol. É ótimo que tenhamos mulheres bonitas, carnaval e futebol. Mas nenhuma nação se sustenta a base disso. 

Aprendamos de uma vez por todas o que é democracia. Democracia é uma prática diária e não apenas uma esperança.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Como aumentar a sua inteligência


Esta postagem se refere àquilo que psicólogos cognitivos chamam de inteligência fluida, a capacidade de aprender novas informações, mantê-las em nossos cérebros e usar este novo conhecimento para resolver problemas e desenvolver novas habilidades.

O texto que segue abaixo é baseado em uma palestra ministrada por Andrea Kuszewski, na Universidade Harvard, em 2010. Uma versão escrita e detalhada desta palestra se encontra neste site.

Andrea Kuszewski é terapeuta e consultora, especializada em autismo. As técnicas relatadas em sua palestra permitiram, entre outros resultados, aumentar o QI de uma criança autista, de 80 para 100 pontos, em três anos. Por conta de uma propriedade cerebral chamada de neuroplasticidade, é possível sim aumentar significativamente a inteligência fluida de qualquer pessoa.

Aqui estão as atividades que Kuszewski aponta como fundamentais para o crescimento da inteligência fluida. Todas as atividades devem ser executadas permanente e concomitantemente. 

1) Buscar novidades. Os grandes gênios da ciência sempre tiveram múltiplos interesses intelectuais. Estagnar o cérebro em uma única área do conhecimento ou atividade intelectual é uma péssima ideia. É fundamental a abertura para novas experiências. Aquilo que é novo para o seu cérebro, desencadeia novas conexões sinápticas, aumentando a atividade neuronal. Além disso, novidades ativam a dopamina, um neurotransmissor que, entre outras coisas, aumenta a motivação. Ou seja, a busca por novidades estimula a própria busca por novidades. Por isso, se sua área de interesse é matemática, certamente a apreciação de boa música, o estudo de história e o aprendizado de pintura são algumas opções para melhorar seu desempenho matemático. Conhecimentos estreitos conduzem a visões estreitas.

2) Enfrentar desafios. Existe vasta literatura sobre o papel de jogos, como Sudoku e Tetris, para melhorar a inteligência de pessoas. No entanto, em geral, esta literatura carece de fundamentação científica. Jogar Tetris pode melhorar temporariamente certas habilidades cognitivas. Mas uma vez que o jogador domine o jogo, persistir com Tetris inevitavelmente resultará em queda de atividade cerebral. Desafios precisam ser renovados. Ou seja, deve haver uma incessante busca por problemas. Quanto mais difíceis de serem resolvidos, melhor. Um matemático, por exemplo, que domine técnicas de demonstração e resolução de problemas em topologia, deve buscar por desafios completamente novos. Caso contrário, sua atividade cerebral diminuirá e sua inteligência será comprometida. Eficiência não é amiga sua, no que se refere a crescimento cognitivo.

3) Pensar de maneira criativa. Ao contrário do que diz a crença popular, criatividade envolve ambos os hemisférios do cérebro humano, e não apenas o direito. E pensamento criativo, neste contexto, nada tem a ver com produção artística, mas com cognição criativa. Cognição criativa envolve a associação entre ideias aparentemente distantes, intercâmbio entre formas tradicionais e formas atípicas de pensamento, e a geração de ideias originais que sejam adequadas para as atividades que você exerce. Resolver problemas de matemática, por exemplo, apelando apenas para analogias com o mundo real, é o mesmo que matar a criatividade. Além disso, problemas não podem ser resolvidos de uma única forma. Criatividade deve ser estimulada e não enterrada. 

4) Seguir o caminho mais difícil. A tecnologia tem tornado o mundo mais eficiente, permitindo que as pessoas tenham mais tempo para se concentrar naquilo que é realmente importante. Certo? Errado. O emprego sistemático de GPS, por exemplo, piora a noção de localização espacial de pessoas. Como já foi indicado, eficiência é um inimigo do cérebro. Nem todas as novas tecnologias são nocivas para o intelecto humano. Mas compensações são necessárias. Faça contas sem usar calculadoras. Siga para um destino desconhecido sem usar GPS. Escreva textos impecáveis sem usar corretores ortográficos; e reescreva esses textos, para que fiquem realmente atraentes. Leia textos em idiomas estrangeiros, sem usar tradutores. Faça sua própria comida. John F. Kennedy disse, no mais belo discurso que já ouvi: "Nós iremos para a Lua não porque é fácil, mas porque é difícil." Em nosso país reina a tradição do caminho mais fácil. Isso deve mudar.

5) Formar redes sociais. Não importa se suas redes sociais operam via Facebook, Twitter ou contato pessoal. O fato é que a condição humana é de caráter social. Coloque a cara para bater. Exponha suas ideias. Mantenha contato com quem sabe muito mais do que você; é preciso aprender. Mantenha contato com quem sabe muito menos do que você; é preciso ensinar. Mantenha contato com aqueles que pensam como você, mas também com aqueles que pensam diferente. Troque ideias sobre ciência, educação, música, cinema, teatro, história, religião, vida. Uma vida social rica é fonte de novidades, é a oportunidade de encontrar desafios, é a inspiração para soluções criativas, e é o mais difícil caminho de todos. Mas vida social rica não se traduz na forma de quantia de pessoas, porém na forma de diversidade de visões. 

Seja bem-vindo à espécie humana.

sábado, 25 de abril de 2015

Racionalidade, emoção e educação


Como bem coloca Ronald de Souza, racionalidade é definida por coerência e consistência no âmbito das crenças, e otimização de resultados no âmbito das ações. No entanto, racionalidade é insuficiente para definir as ações de um organismo. Levando em conta a existência de infinitas possíveis metas, infinitas possíveis estratégias e infinitas possíveis consequências para cada ato (a menos de casos muito particulares que imponham restrições), emoções desempenham papel fundamental na tomada de decisões de, por exemplo, pessoas. 

Após milhares de anos de estudos e considerações, filósofos e psicólogos finalmente conseguiram chegar a vários pontos de convergência, quando o assunto é "emoções". E um dos pontos de convergência é o seguinte: "Nenhum aspecto da mente humana é mais importante para a qualidade e o significado de nossa existência do que emoções."

Agora somemos a este consenso os seguintes fatos compartilhados na literatura de filosofia e psicologia:

1) Emoções são tipicamente fenômenos conscientes; mas a tendência de manifestar certas emoções é, em geral, inconsciente.

2) Emoções não podem ser discriminadas apenas por conta de aspectos fisiológicos.

3) Emoções são tipicamente manifestadas na forma de desejos, apesar de nem sempre ser o caso.

4) Emoções não podem ser confundidas com bom ou mal humor, apesar de poderem ser afetadas por humor.

5) Emoções antagonizam racionalidade.

6) Emoções executam um papel crucial na vida social, na educação moral e na vida moral.

Todos esses fatos concatenados levam a algumas conclusões um tanto perturbadoras. Uma delas é a seguinte: A vida nas sociedades humanas é definida por aspectos mentais individuais que não são conscientemente controlados. 

TMI é uma empresa de consultoria e treinamento no mundo dos negócios. De acordo com esta empresa, valor emocional é "o valor econômico dos sentimentos do cliente, quando este tem uma experiência positiva sobre produtos e serviços." Apesar desta visão sobre valor emocional não estar bem qualificada, ela reflete um fenômeno social muito real: a quantificação monetária de emoções. 

Vejamos o exemplo de ativos negociados na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Todo especulador ou investidor experiente conhece o fundamental peso de emoções sobre o mercado financeiro. Quando circulou a notícia de que a candidata à Presidência da República Marina Silva daria um salto na última corrida presidencial, a Bovespa registrou altas em preços de ações da Petrobras e do Banco do Brasil, entre outros ativos associados a estatais. Espero que leitor perceba que não estou avaliando eventuais méritos ou deméritos de Marina Silva ou sua concorrente, Dilma Rousseff. Estou apenas considerando o peso de emoções no mercado financeiro. Cotações de ações ou até mesmo de moedas estrangeiras são fortemente influenciados por emoções, como euforia e medo. Os valores nominais atribuídos a ativos não deixam de espelhar simples valores emocionais. 

Quando o músico norte-americano Jack White comprou a primeira gravação de Elvis Presley por trezentos mil dólares, alguns comentaristas afirmaram que nenhuma peça de vinil vale tanto, alegando que o disco em questão estava em mal estado. No entanto, esses mesmos comentaristas demonstram claramente que não entendem o conceito de valor de mercado. O disco de Presley vale sim trezentos mil dólares simplesmente porque alguém o comprou, pagando esta cifra. O valor de um bem ou serviço é determinado naturalmente, pelas relações entre vendedor e comprador.

No Brasil, por exemplo, professores comumente reclamam que são mal pagos, principalmente quando trabalham para o governo federal ou para governos estaduais e municipais. No entanto, são mal pagos simplesmente porque aceitam serem mal pagos. Se um professor sentisse que seu trabalho vale mais, não se submeteria a um salário inferior. 

O fato é que educação não é considerada prioridade no Brasil. Por mais discursos supostamente racionais que existam a favor da valorização da educação, não é este o sentimento que domina a nossa sociedade. E, entre emoção e razão, é sempre a primeira que fala mais alto. Mesmo instituições privadas de ensino, em geral, pagam pouco pela hora-aula lecionada. 

Recentemente um colega meu pediu para que eu o ajudasse a encontrar um professor de matemática para uma escola privada de ensino médio. Trata-se de uma escola diferenciada, com aulas ministradas em inglês. Um dos objetivos desta instituição de ensino é preparar seus alunos para ingressarem em universidades de elite, espalhadas nos Estados Unidos e Europa. O salário oferecido ao professor: cinco mil reais brutos, por vinte horas semanais. 

Uma universidade norte-americana ou europeia de elite é uma instituição que prepara futuras lideranças profissionais que certamente conquistarão rendas muito superiores a cinco mil reais mensais. Então, por que um professor bem qualificado aceitaria trabalhar em uma instituição como esta escola de ensino médio? Simplesmente porque mesmo este professor qualificado sente que este é o valor de seu trabalho. 

Na atividade científica mundial ocorre fenômeno parecido. Cientistas e pesquisadores frequentemente são procurados por editores de periódicos científicos para escreverem pareceres técnicos a respeito de artigos submetidos para publicação. E estes pareceres são invariavelmente feitos sem pagamento algum. Quantos são os advogados, médicos, arquitetos, músicos, psicólogos, engenheiros e administradores que emitem pareceres profissionais sem jamais cobrarem um único centavo? Difícil lembrar de alguém que faça isso. Mas quantos são os cientistas que emitem pareceres técnicos sem cobrarem algo em troca? Bem, todos.

Ciência e educação não estão entre as prioridades sociais da maioria das nações. No Brasil, claro, educação parece valer menos do que na Finlândia, um país socialmente atípico.

Mas se pode existir uma nação atípica como a Finlândia, por que o Brasil não pode ser igualmente atípico? Afinal, emoções comumente se manifestam na forma de desejos, como bem sabem psicólogos e filósofos. E o que desejam nossos professores?

quarta-feira, 22 de abril de 2015

As mais importantes contribuições da história da ciência


Apresento aqui uma lista das mais importantes contribuições da história da ciência. Os critérios para a escolha são dois: (i) impacto social e (ii) longevidade das ideias inerentes às contribuições. As ideias aqui discutidas estão restritas aos ramos integrantes da hard science (ciências naturais e formais). Ciências humanas não são consideradas.

9) Philosophical Transactions. Philosophical Transactions of the Royal Society foi o primeiro periódico dedicado exclusivamente à comunicação de pesquisas originais, dando origem ao sistema de periódicos científicos hoje existente. A primeira edição foi veiculada em 1665. Hoje esta publicação se divide em Philosophical Transactions A e Philosophical Transactions B, sendo ainda uma das mais conceituadas revistas científicas. O nome é uma referência à filosofia natural, algo hoje conhecido como ciência. Não basta ter uma ideia. É fundamental torná-la pública. 

8) Teorema Fundamental do Cálculo. O Teorema Fundamental do Cálculo é um dos resultados mais surpreendentes e impactantes da história da ciência. Estabelece uma relação entre derivadas (que permitem modelar localmente fenômenos físicos) e integrais (que permitem resgatar comportamentos globais dos fenômenos modelados via derivadas). Os primórdios deste resultado remontam ao século 17, por iniciativa do britânico Isaac Newton e do alemão Gottfried Leibniz. E suas ramificações sociais persistem até os dias de hoje, fundamentando a física e encontrando aplicações imprescindíveis em engenharias, economia, ecologia, psicologia, medicina e ciências biológicas em geral, entre outros ramos do conhecimento. 

7) Teoria Heliocêntrica. Pensadores anteriores a Copérnico desenvolveram ideias para localizar a posição do ser humano perante o universo. Entre eles, os mais conhecidos são Aristóteles e Ptolomeu. No entanto, o polaco Nicolaus Copérnico foi o primeiro a conceber uma ideia na qual o ambiente em que vive o ser humano não é privilegiado. A teoria heliocêntrica coloca o sol como centro do universo. Essa visão cosmológica foi extraordinariamente polêmica no século 16, principalmente por conta de atritos com poderosas forças religiosas. Até mesmo Martinho Lutero (supostamente um revolucionário) protestou contra o heliocentrismo. Mas a semente foi plantada e germinou ao longo dos séculos, apesar de extrema dificuldade de divulgação da obra de Copérnico: o ser humano e suas crenças podem não ser tão importantes perante o Cosmos.

6) Teoria da Evolução das Espécies. A obra dos britânicos Charles Darwin e Alfred Wallace, publicada no século 19, mudou dramaticamente a biologia, conferindo uma coesa unidade para esse ramo do conhecimento. E também mudou radicalmente a visão então dominante sobre a identidade da espécie humana. Com uma proposta científica para explicar a história e a diversidade da vida na Terra, as ideias originais desses dois grandes pensadores já passaram por muitas mudanças significativas. Mas a visão essencial sobrevive: a vida hoje existente nem sempre foi o que é; ela se transforma sob a ação de princípios que podem ser avaliados racionalmente. O impacto social da teoria da evolução atingiu não apenas a ciência, mas também tradicionais crenças religiosas e até mesmo as artes, incluindo peças cinematográficas de perene repercussão, como Planeta dos Macacos e 2001 - Uma Odisseia no Espaço.

5) DNA. A descoberta feita em 1953 pelo britânico Francis Crick e pelo norte-americano James Watson, da estrutura da molécula que armazena informações genéticas, deu origem à biologia molecular. Ou seja, a compreensão da vida e de sua evolução depende fundamentalmente de uma visão físico-química. A repercussão da descoberta da estrutura molecular do DNA e de seu papel nos seres vivos atinge a medicina e até mesmo o sistema legal de nações, e ainda repercute no desenvolvimento de códigos de ética, entre outras consequências marcantes. O recente nascimento da engenharia genética promete também impactos muito mais radicais no século 21.

4) Máquinas de Turing. O britânico Alan Turing publicou em 1936 um célebre artigo no qual lançou as bases matemáticas da moderna computação digital. Seu trabalho consiste simplesmente em estabelecer o alcance e os limites daquilo que pode ser computado. Graças a avanços matemáticos e tecnológicos subsequentes, as ideias seminais de Turing viabilizaram o computador digital, que encontra aplicações em inteligência artificial, medicina, engenharias, educação, entretenimento, matemática, ciências biológicas, física, química, administração de empresas, artes, logística, estatística, arqueologia e inúmeras outras áreas da cultura humana.

3) Física quântica. Aqui estão incluídas a mecânica quântica, as teorias quânticas de campos e o modelo padrão. Ao contrário dos outros itens desta lista, a concepção da física quântica não pode ser atribuída a um, dois ou três nomes. Planck, Einstein, Bohr, Schrödinger, Dirac, von Neumann, Bohm, Heisenberg, Hilbert, Pauli, Born, de Broglie, Fermi, Bose, Dyson, Salam, Guell-Mann, Feynman, Schwinger, von Laue, Yukawa e o brasileiro Lattes são alguns dos nomes associados a esta que é, provavelmente, a mais bem sucedida teoria física da história, em termos de precisão em resultados experimentais, apesar de suas inconsistências com as atuais teorias cosmológicas. Além de mudar completamente visões intuitivas e filosóficas sobre o mundo em que vivemos, encontra aplicações em tecnologia de ponta com profunda repercussão social.

2) Geometrias Não-Euclidianas. A concepção das geometrias não euclidianas, devida ao russo Nicolai Lobatchevsky, ao húngaro János Bolyai e ao alemão Carl Friedrich Gauss, foi um divisor de águas na matemática e, consequentemente, nos ramos do conhecimento que a empregam. Os reflexos das geometrias não-euclidianas atingiram até mesmo a filosofia, incluindo principalmente a visão de Thomas Kuhn sobre ciência normal e ciência extraordinária. Matemática deixou de ser uma mera ferramenta aplicável ao mundo real e adquiriu um status genuinamente independente. Outra lição fundamental aprendida é que tradição (mesmo que seja milenar) não deve sustentar ideias científicas. O exemplo das geometrias não-euclidianas ensinou a comunidade científica mundial a pensar de forma independente, sempre em busca de novos modos de percepção.

1) Fogo. A mais impactante descoberta científica não foi feita por um ser humano, mas por ancestrais de nossa espécie: o domínio do fogo. E, associada ao domínio do fogo, temos a culinária. Sem o hábito de consumir alimentos preparados a base de fogo, nossa espécie ainda estaria passando a maior parte do dia ingerindo cerca de cinco quilos de alimento cru, apenas para garantir a mera sobrevivência. O fogo afastou predadores naturais, produziu conforto, gerou uma alimentação mais saborosa, saudável e calórica e garantiu a evolução de nossos cérebros. Tal evolução do cérebro humano abriu espaço para o nascimento da linguagem escrita, da agricultura, da urbanização, da ciência, da filosofia, da história e das artes. Sem fogo, você não estaria lendo postagem alguma neste momento, mas procurando por comida, com o único propósito de sobreviver. 

Aqueles que protestarem quanto à ordem acima apresentada ou quanto à ausência das teorias da relatividade de Einstein, da metodologia científica de Galileu, da impactante obra de Louis Pasteur, ou da Biblioteca de Alexandria, não se preocupem. Cada pessoa comprometida com ciência tem a sua própria visão a respeito do tema. A questão principal é que uma avaliação das mais importantes contribuições da história da ciência não deixa de refletir a visão pessoal de cada um sobre o que é realmente relevante. Quer fazer a sua lista?

terça-feira, 21 de abril de 2015

Quantas dimensões você enxerga?


Nunca vi exceção. Todos os alunos que tive, até hoje, dizem que não conseguem imaginar um espaço com mais de três dimensões. Inerente a este discurso, existe a crença de que eles conseguem imaginar e até enxergar em um espaço tridimensional. Até mesmo experientes profissionais da área de ciências exatas alegam serem capazes de enxergar em três dimensões. Nesta postagem quero desfazer o mito do mundo tridimensional em que vivemos.

Uma das descobertas científicas mais espetaculares da história foi a concepção das geometrias não euclidianas, no século 19. A partir do trabalho pioneiro de Lobatchevsky ficou clara a seguinte ideia, entre outras: Geometria é um ramo da matemática independente de modos de percepção visual.

O conceito de dimensão, em matemática, é abstrato. E mesmo conceitos comuns da geometria são também abstratos, como ponto, reta, plano e espaço.

No entanto, teorias matemáticas sustentadas em conceitos abstratos são comumente aplicadas para modelar o mundo físico. Mas, de forma alguma devemos entender com isso que o caráter ontológico de uma teoria matemática necessariamente espelha o caráter ontológico do mundo físico. 

Cito dois exemplos: mecânica corpuscular clássica e mecânica quântica.

Mecânica corpuscular clássica é parcialmente desenvolvida em espaços tridimensionais. O que isso significa? Significa que posições e velocidades de partículas são descritas como funções sobre um espaço vetorial de três dimensões. Ou seja, partículas e espaço são meramente conceitos matemáticos. 

Surpreendentemente, é possível corresponder esses conceitos abstratos a objetos do mundo real. Neste sentido, não basta para o físico ter em mãos uma teoria matemática. É necessário ele fazer uma correspondência entre os conceitos matemáticos disponíveis e aquilo que ele pode efetivamente medir no mundo real. Por conta disso que existem aqueles que definem teoria física como uma tripla ordenada (M, D, r), sendo que M é uma teoria matemática, D é o domínio de aplicação (mundo real) e r é um conjunto de relações entre M e D

Muito se sabe sobre M e D. Mas a literatura sobre as relações r é ainda muito pobre. Nada se sabe sobre elas. Por conta disso que existem tantas discussões sobre o caráter ontológico de teorias físicas. Justamente porque ainda não se sabe o quão fiel a matemática é, para informar sobre a natureza íntima do mundo real. 

No caso da mecânica corpuscular clássica, diz-se que uma partícula pode ser localizada em um espaço tridimensional. E, a partir disso, cria-se uma intuição física na qual se fala de posições horizontais, verticais e de profundidade, relativamente a um observador físico.

No entanto, o fato de podemos criar uma intuição física para um espaço tridimensional exclusivamente matemático não significa que vivemos em um mundo tridimensional. Afirmar isso retrata a pretensão de conhecermos a natureza íntima do espaço físico. A bem da verdade, não sabemos sequer se existe algum espaço físico. 

Na mecânica quântica a posição de um objeto físico (como um elétron) é descrita em um espaço vetorial conhecido como espaço de Hilbert. E este espaço de Hilbert tem infinitas dimensões. 

Observe que o propósito é ainda o mesmo: localizar uma partícula. No entanto, para acomodar características atípicas de certas partículas, físicos perceberam que não podem mais usar espaços vetoriais de três dimensões para dizer onde, por exemplo, um elétron está.

Um espaço vetorial de três dimensões é usualmente descrito como um caso particular de conjunto. E um conjunto é um conceito abstrato. É simplesmente impossível enxergar um conjunto. Ainda que os elementos de um conjunto pudessem ser objetos do mundo real (como pessoas ou canecas), o conjunto em si não pode ser percebido pelos sentidos físicos. O conjunto das pessoas que já leram alguma postagem deste blog é um conceito abstrato que persiste mesmo quando todas essas pessoas já tiverem morrido daqui a cem milhões de anos. É possível, por enquanto, ver essas pessoas. Mas o conjunto em si não pode ser visto, apesar de poder ser matematicamente definido. 

Se físicos trabalham com espaços de dimensão infinita, para realizar a simples tarefa de dizer onde um elétron está, é porque esses mesmos físicos estão se empenhando em desenvolver uma intuição diferente daquela explorada em mecânica corpuscular clássica. 

A verdade é que nada sabemos sobre o suposto espaço físico que parece nos envolver. Se você acha que enxerga em três dimensões, precisa rever o que entende por "dimensão". Se a palavra "dimensão" for empregada no sentido matemático usual, você está enganado. Não é possível enxergar em dimensão alguma. Se a palavra "dimensão" é usada em outra acepção, então esclareça sobre o que, afinal, você está falando. 

Quando vídeos são exibidos na internet para criar uma visão intuitiva sobre espaços de dimensão superior, eles invariavelmente estão comprometidos com um único caráter ontológico. Intuições não precisam ser desenvolvidas apenas de um ponto de vista geométrico, antenado com preconceitos com os quais estamos simplesmente acostumados. Intuições podem também ser desenvolvidas sob outras perspectivas. Por que não desenvolver, por exemplo, uma intuição algébrica sobre dimensões?

Observe que até mesmo a linguagem natural que emprego nesta postagem é impregnada de preconceitos que apenas estreitam a capacidade de compreensão sobre matemática. Afinal, usei a expressão "outras perspectivas" no parágrafo acima. E "perspectiva" é um termo comumente associado a geometria.

Em suma, se você deseja se libertar de graves preconceitos sobre seus modos de percepção do mundo, estudar matemática é uma alternativa interessante. Pelo menos você começa a se acostumar com outras formas de percepção.

domingo, 12 de abril de 2015

Alunos babilônicos


Enquanto produzo a série de vídeos educativos que, em breve, serão disponibilizados gratuitamente, aqui vai uma discussão sobre um tipo muito peculiar de aluno que tem se tornado cada vez mais comum nas salas de aula. É aquilo que chamo de aluno babilônico

Babilônia foi uma região que abrigou uma civilização no Oriente Médio, milhares de anos atrás. Os textos babilônicos mais antigos, sobre matemática, datam de 1900 a 1600 a.C.. É bem sabido, por exemplo, que os babilônios sabiam extrair a raiz quadrada de números (hoje chamados de positivos), usando média aritmética. O método era muito simples e intuitivo.

Digamos que os babilônios quisessem calcular a raiz quadrada de 17. Neste caso, o número 4 era considerado como uma primeira aproximação. Afinal, o quadrado de 4 é 16, algo próximo de 17. Em seguida, eles calculavam a média aritmética entre 4 e 17/4. Apesar de 17/4 ser diferente de 4, o produto entre ambos ainda é 17. A média aritmética entre esses dois valores resulta em 4 + 1/8. Este resultado é uma segunda aproximação, bem mais próxima da raiz quadrada de 17. Para obter uma terceira aproximação, basta repetir o processo, calculando a média aritmética entre 4 + 1/8 e 17/(4 + 1/8). O resultado será um número real mais próximo ainda da raiz quadrada de 17. Enquanto se desejar aproximações melhores, basta repetir este processo. 

O leitor deve perceber que o método babilônico para calcular raiz quadrada (de números reais positivos que não sejam quadrados perfeitos) é um rudimento de método numérico, criado muito antes de computadores serem sequer imaginados. 

Hoje em dia existem múltiplas maneiras para justificar o método babilônico, do ponto de vista matemático. Mas quero focar em uma justificativa em especial: o método de Newton-Raphson

A aplicação do método de Newton-Raphson para determinar os zeros de uma função real f, com domínio nos números reais e dada por f(x) = x^2 - 17, nos leva ao processo iterativo

x(n+1) = [x(n) + 17/x(n)]/2,

onde n é um número natural. Esta é uma tradução do método babilônico (no exemplo acima) para uma linguagem atual.

No entanto, há uma característica nesta aplicação do método de Newton-Raphson que mostra algo interessante. Poderíamos usar procedimento análogo para determinar os zeros de uma função g(x) = x^m - a. Desta forma seria possível calcular a raiz m-ésima (m é um inteiro positivo) de qualquer número real positivo. Por que os babilônios não sabiam disso?

Bem. Apesar de Isaac Newton e Joseph Raphson não terem vivido em um império babilônico quatro mil anos atrás, este fato não responde à questão dada acima. O método de Newton-Raphson estabelece que uma raiz m-ésima de um número real a ainda pode ser calculada por aproximações, envolvendo simples média aritmética entre m parcelas. 

Ou seja, se os babilônios sabiam que a raiz quadrada pode ser calculada por aproximações envolvendo média aritmética entre duas parcelas, por que não cogitaram que a raiz cúbica pode ser calculada por aproximações envolvendo média aritmética entre três parcelas? Parece um passo natural. 

A resposta que Lucas Bunt e colaboradores apresentam neste fabuloso livro sobre história da matemática elementar é a seguinte: a matemática babilônica não era sustentada por generalizações ou justificativas, mas apenas por exemplos pontuais. E este é um aspecto crucial para que eu defenda a tese da presença do espírito babilônico nos dias de hoje.

Tomo como exemplo uma turma de cálculo diferencial e integral que tenho atualmente. A maioria dos alunos dessa turma é completamente incapaz de exemplificar a aplicação de um teorema, mesmo após a sua demonstração. Mas é perfeitamente capaz de repetir um procedimento se eu apresentar um exemplo. Ora. Esta é justamente a forma de pensar dos matemáticos babilônicos de quatro milênios atrás! 

Teoremas, lemas, proposições, corolários, definições, equações e funções, para muitos alunos, constituem aquilo que eles chamam de "letrinhas". Se houver um x ou um y ou um n, eles nada compreendem. Não são capazes de usar as tais das "letrinhas" como ferramenta de generalização. E são incapazes também de fazer inferências elementares. Mesmo diante de uma média aritmética escrita na lousa, não são capazes de reconhecer aquilo como uma média aritmética. Isso porque média aritmética, pelo menos em suas vidas, sempre se limitou à aplicação sobre notas em provas, para determinar média final. Sem um exemplo pontual de qualquer outra aplicação de média aritmética, este conceito passa a ser imperceptível diante de suas mentes. 

Como lidar com mentes babilônicas no mundo de hoje, que tanto evoluiu ao longo de quatro mil anos? Como lidar com jovens definidos por mentes tão velhas e antiquadas?

Em artigo recente, publicado em um dos mais prestigiados periódicos especializados em educação, Emily Schoerning e colaboradores defendem a adoção de técnicas comuns à investigação científica para lecionar ciências, especialmente no ensino elementar. Sem métodos de investigação baseados em argumentação, não é possível lecionar ciências. 

Sim. Claro! Mas como promover isso se os próprios professores de ciências não têm contato direto com a prática científica do questionamento, da validação, da busca por evidências, da generalização, da argumentação? Nossos professores não passam de meros repetidores daquilo que está escrito em livros péssimos.

Professores medíocres que abandonaram seus próprios cérebros, alunos defasados em quatro mil anos, livros ruins, internet com conteúdos limitados e não confiáveis e famílias que não estimulam o conhecimento científico, fazem parte de uma poderosa rede social que alimenta apenas a si mesma. 

A solução que vejo? Vender perucas auriculares. Talvez mentes babilônicas tenham interesse nisso.

terça-feira, 7 de abril de 2015

Matemática - Mundo Invisível


A concepção e manutenção deste blog sempre foi motivada, principalmente, pela necessidade de reconhecer que o sistema educacional brasileiro (e sua estreita relação com produção, aplicação e divulgação de conhecimento) precisa urgentemente melhorar muito. 

Este blog está chegando a meio milhão de visualizações e ultrapassando 4500 comentários, ao longo de 276 postagens e 17 páginas. O que aprendi com esta troca de ideias e experiências com leitores e comentaristas?

As principais lições, até este momento, são as seguintes:

1) Existem pessoas neste país que desejam uma educação melhor.

2) Existem também aqueles que estão satisfeitos com a miséria que têm, incluindo professores e até mesmo pesquisadores. São pessoas que efetivamente demonstram acreditar que estão cumprindo com o seu papel social, apesar de não ser o caso. 

3) Existem iniciativas altamente relevantes para estimular avanços na ciência e na educação. Um exemplo muito marcante é a equipe Polyteck, a qual conta hoje com apoio financeiro da Latino Australia Education, do Instituto Renault e da Comsol, empresa especializada em softwares que simulam sistemas físicos. 

4) Mas existe também uma crise intelectual, no Brasil e no mundo, que está afastando pessoas da prática da leitura. E, sem leitura sistemática e metódica, não há como avançar em termos científicos e educacionais.

Uma das propostas mais recorrentes para a busca de soluções educacionais é o ensino a distância, uma forma de promover um alcance mais democrático do conhecimento. No entanto, por mais que se use recursos eletrônicos para disseminar o conhecimento científico, a forma usual de aprendizado não sinaliza mudanças. E qual é a forma usual de aprendizado? É aquela que compreende quatro etapas (não necessariamente nesta ordem): leitura, reflexão, prática e discussão.

Levando em conta todos esses fatores, decidi promover algumas mudanças neste fórum, o qual tem priorizado, por enquanto, o emprego de linguagem escrita.

Em breve o blog Matemática e Sociedade estenderá sua rede com o acréscimo de outra mídia, além de sua página no Facebook. Ainda este ano as atividades deste fórum incluirão um canal de vídeos educativos produzidos pelo administrador deste site.

O primeiro vídeo está em fase de edição de som e imagem, bem como montagem. Além disso, os roteiros de mais dois vídeos estão sendo escritos. O objetivo principal é a concepção de vídeos educativos sobre matemática e sua interface com outras áreas do saber, incluindo física, engenharias, artes, filosofia, linguística e história. No entanto, ao contrário do que comumente se pratica, esses vídeos não serão formatados com a finalidade de ensinar matemática. Não há como aprender matemática, de fato, a partir de vídeos. Somente leitura, reflexão, prática e discussão viabilizam o aprendizado profundo e crítico.

Os vídeos em produção serão formatados de modo a estimular jovens e crianças a conhecerem matemática.

Tais vídeos serão disponibilizados em um canal apropriado, de livre acesso, e que permita download rápido e gratuito em diferentes formatos, incluindo tela cheia em alta definição. 

Como a produção desses vídeos tem consumido considerável tempo (trabalho pelo menos quatro horas por dia, de domingo a domingo, desde roteiro até pós-produção), durante os próximos meses o blog Matemática e Sociedade sofrerá uma redução na frequência de postagens novas. A partir do momento em que a concepção desses vídeos ficar mais ágil, as atividades neste fórum deverão voltar ao normal. 

Pretendo lançar o novo canal de vídeos educativos, intitulado "Matemática - Mundo Invisível", até agosto deste ano. Enquanto isso não acontece, peço a compreensão dos leitores. Teremos menos postagens novas pelos próximos meses. Mas este novo projeto deve colocar em prática a construção de uma educação melhor em nosso país. 

É importante criticar. Mas muito mais importante é construir. 

sábado, 4 de abril de 2015

A geração do começo sem fim



Fala-se muito, hoje em dia, sobre técnicas de ensino, em formas para professores se comunicarem melhor com os seus alunos. No entanto, não parece haver preocupação com técnicas de audição, de leitura, de observação. A verdade é que cada vez mais pessoas querem ser ouvidas, sem terem a habilidade de ouvir. 

A indústria fonográfica, por exemplo, já compreendeu há muito tempo que a capacidade de concentração média dos jovens está caindo e é hoje inferior a de peixes. Por conta disso que as músicas populares de sucesso estão perdendo qualidade, justamente para acompanhar a capacidade cognitiva do público. 

Enquanto isso, pedagogos e educadores em geral procuram desesperadamente conseguir a atenção de jovens que, a cada dia, perdem a capacidade de ouvir, ler ou observar. 

Por conta deste perturbador fenômeno social, convidei Alan Carlos Ghedini para escrever uma postagem neste blog. Ghedini foi aluno meu no Curso de Física da Universidade Federal do Paraná. Hoje ele é historiador, graduado pela Universidade do Estado de Santa Catarina, e professor. É também um dos responsáveis pelo site Inventando História

Em postagem a ser publicada até setembro deste ano, pretendo discutir sobre uma proposta concreta para combater pelo menos parte dos problemas da atual realidade educacional em nosso país. Enquanto isso não acontece, peço ao leitor que acompanhe (até o fim, é claro) o texto abaixo de Ghedini. Nele o autor fala sobre navegabilidade no universo do conhecimento. E isso me faz lembrar de um dos mais conhecidos livros de Charles Dickens, obra na qual a personagem David Copperfield questiona: "Se serei o herói de minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar." 

Navegar na internet tem sido sinônimo da condição de um náufrago. Sem instrumentos e sem a capacidade de ler esses instrumentos, jamais sairemos dessa condição.

Desejo a todos uma leitura crítica.
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No caminho do conhecimento, enredados na eterna introdução
de Alan Carlos Ghedini

Creio que não seja surpresa afirmar que as novas gerações sofrem, hoje, de um grande empobrecimento de vocabulário e, portanto, da capacidade de entender textos cuja escrita vá para além do trivial. A velocidade da internet e da hiperconexão trouxe inúmeros benefícios e, igualmente, novos e, não raro, atemorizantes desafios. Se a pressa for, de fato, inimiga da perfeição, então nos encontramos cada vez mais distantes desta última.

Como professor, tenho observado com bastante preocupação que a ampla maioria dos estudantes, sejam de instituições públicas ou particulares, de ensino fundamental, médio ou superior, tem demonstrado desconhecimento sobre o próprio idioma. E não se trata de desconhecer termos essencialmente técnicos a uma área ou coisa que o valha, mas de realmente não entender palavras que há quinze anos seriam conhecidas pelos estudantes. Enfim, se um livro é produzido para estudantes de ensino médio, poderíamos supor que fossem capazes de entender o que ali está escrito. Ledo engano!

Não, decididamente não se trata de baixa habilidade cognitiva. Longe disso, trata-se mesmo de ignorância, não como ofensa, mas no sentido de ignorar, de não conhecer o que se lê. A geração atual de estudantes de Ensino Médio e de jovens universitários é filha da Era Harry Potter, que em tempos fez todo um espectro de estudantes voltarem suas atenções à leitura, na ânsia pelo destino do jovem bruxo tema da série. Porém, o que parecia ser solução, mostrou-se apenas a lente que foi capaz de magnificar a dimensão do problema que temos em mãos.

Sinceramente não pretendo realizar alguma discussão sobre o "internetês" e suas armadilhas. Minha preocupação é que há um visível empobrecimento léxico da atual geração. Às vezes a impressão que se tem é que se lê muito, mas a questão que deve ser feita, de fato é: "lê-se o que e com que qualidade?"

A internet popularizou o texto, transformou a todos em escritores, afinal todos podemos ter e manter, gratuitamente, um blog como este em que publico. Mas se há o mérito da popularização das ideias, há o demérito da banalização destas. Todos têm opinião. No entanto, raros são aqueles que bem a fundamentam, com o relato de sua vivência ou com o uso de um arcabouço teórico adequado.

Como educador de Ensino Médio, preocupa-me de modo bastante urgente sobre o tipo de leitura que têm os estudantes. Vivemos a era da "eterna introdução", a era Wikipedia, em que o estudante vai ao dito site para ler um artigo e, ainda na introdução, uma palavra é link para outro assunto, link que é, sem demora, aberto sem que antes tenha o leitor concluído sequer o começo do texto em que estava originalmente. Não mais se compreende o que significa a base "Introdução - Desenvolvimento - Conclusão".

Pode não parecer algo sério a priori, porém o é. Já é quase comum que, em meio a uma discussão, alguns interlocutores não mostrem capacidade de organizar seus argumentos. O tal do brainstorm tem sido, essencialmente, storm, com todos os raios e trovões a que têm direito sem, contudo, qualquer sombra da esperada bonança. Como podemos, afinal, esperar coerência e boa argumentação se tudo o que temos é apenas a introdução de uma ideia, e não ela em seu pleno desenvolvimento?

Se antes tínhamos hipótese, tese, antítese e síntese, hoje estamos cada vez mais cercados da primeira e cada vez menos brindados com a última. Não se vê estudantes gerando conhecimento como poderiam, mas antes vemos nossos alunos consultando o Google - verdadeiro oráculo da contemporaneidade - buscando ali respostas prontas ao invés de argumentos que lhes permitam formar suas próprias conclusões. Temos copiado mais do que criado, e isso é temerário. O risco não é sequer de voltar, mas de simplesmente não avançar como poderíamos.

Ouso dizer que nunca na história da humanidade tivemos acesso a uma gama tão grande de conhecimento e informação. Nunca foi tão simples acessar o patrimônio cultural da humanidade e, no entanto, nesse revolto oceano de informações falta-nos a navegabilidade. Falta-nos o norte. Sentimo-nos como se estivéssemos embarcados no Santa Maria sem, contudo, a bússola ou o astrolábio, ou ainda com eles, porém sem saber como usá-los.

Minha esperança? A de que sejamos capazes de encontrar esse norte o quanto antes; de que saibamos sair da introdução e desenvolver nosso pensamento de modo crítico, reflexivo; mas não para que sejamos capazes de concluir porém, curiosamente, de iniciar algo inteligentemente. Nossa espécie tem como nome Homo sapiens sapiens, e já passamos do tempo de fazer justiça a essa dupla citação ao termo latino para sabedoria.