segunda-feira, 5 de abril de 2010

Histórias e probabilidades


Sofia é uma bela jovem que pratica yoga três vezes por semana, é vegetariana, não fuma e só consome bebida alcoólica com moderação. Um dia ela decide realizar um exame clínico. Sofia leu em um jornal que já surgiram vítimas no mundo inteiro - com um caso no Brasil - de uma nova forma de gripe que é rara, mas pode ser fatal. É uma gripe que tem contaminado uma a cada 10.000 pessoas nos países onde a doença está presente, através de verduras e cereais, os quais são agentes transmissores. Como ela está com uma leve, mas insistente, dor de cabeça, decide fazer uma consulta com sua médica, Dr.a Cassandra.


Cassandra: “Não se preocupe por antecipação, Sofia. Essa gripe é rara, e o teste para diagnóstico é muito seguro. Ele tem um índice de acerto de 99%. Mesmo assim, quero que me mantenha o tempo todo informada sobre quaisquer alterações em seu estado de saúde. Por enquanto não vou receitar coisa alguma para sua dor de cabeça, já que ela nem é tão forte assim. Desse modo poderemos acompanhar o desenvolvimento de eventuais sintomas.”

Sofia: “OK. Quando a senhora diz que o índice de acerto do exame é de 99%, isso quer dizer que em 99% dos casos o teste fornece um resultado verdadeiro, seja positivo ou negativo. É isso?”

Cassandra: “É, é isso mesmo. Somente para uma a cada cem pessoas que o teste erra, dando um falso positivo ou um falso negativo. É o exame que o mundo todo está usando. Vou indicá-la para um laboratório muito bom.”

Sofia faz o exame no laboratório indicado pela médica e o resultado é positivo. Sofia fica seriamente preocupada. Mais que preocupada, ela fica estressada. Já começa a lamentar por não ter uma dieta limitada a massas, pelo menos enquanto a doença não é controlada pela Saúde Pública. Ela percebe que sua dor de cabeça voltou mais forte. Retorna à Dra. Cassandra, a qual a examina e diz que Sofia não tem sintoma algum da gripe, com exceção da dor de cabeça.

Cassandra: “Se você estivesse com o vírus, a essa altura outros sintomas já teriam se desenvolvido. O vírus, uma vez no corpo, provoca alguns dos sintomas mais graves em poucos dias.”

Sofia conversa com um amigo, Pascal, sobre uma possível ação judicial contra o laboratório, por danos morais. Afinal, o estresse que ela sofreu com o falso positivo, prejudicou seu trabalho e sua vida pessoal. Dra. Cassandra diagnosticou a dor de cabeça de Sofia como somatização das excessivas preocupações de Sofia. Já na opinião de Sofia, o Brasil é um país que não conhece direito a nova gripe e, por isso, o laboratório deve ter sido incompetente ao se propor a fazer um exame sobre o qual não estava qualificado a fazer. Afinal, não são tantas as pessoas que fazem esse exame, uma vez que a doença praticamente inexiste no país. Não é possível que justamente com ela o laboratório foi cair na margem de erro do teste, pensou Sofia.

Pascal percebe que Sofia está sendo irracional.

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Essa história de Sofia é bastante parecida com muitas outras que conhecemos, testemunhamos ou até vivenciamos. Estamos mergulhados em um mundo no qual inúmeras ações e julgamentos admitem margem de erro inerente, como um campeonato de tiro ao alvo, o testemunho de pessoas sobre algum evento supostamente real, exame de DNA para fins de determinação de paternidade ou um diagnóstico médico.

No entanto, mesmo o conhecimento científico básico, como as noções elementares de probabilidade obviamente pouco dominadas pela jovem Sofia, ainda parece ter um forte caráter hermético e, por isso, às vezes ainda é visto de forma um tanto confusa.

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Pascal explica a Sofia.

Pascal: “Não acho uma boa idéia essa ação na Justiça. O laboratório não foi necessariamente negligente ou incompetente, se seu único argumento é apenas o falso positivo. Se quiser processar o laboratório, precisará de alguma base argumentativa mais sólida. Em primeiro lugar, você sabia que havia a probabilidade de erro na análise. Isso, por si só, já é motivo para repensar qualquer ação judicial. Mesmo assim, você deve ponderar com muito cuidado o que realmente significa uma margem de erro de 1%, em um país como o Brasil, no qual a doença praticamente não existe. Segundo dados internacionais, uma em cada 10.000 pessoas fica contaminada nos países onde a doença se mostra presente, certo? Isso significa que apenas cerca de cem pessoas em cada milhão têm o vírus no corpo, em tais países. E com 1% de probabilidade de erro, o teste aplicado a um milhão de pessoas falhará para cerca de dez mil pessoas, sejam contaminadas ou não. Dessas dez mil pessoas, apenas uma, em média, tem o vírus. Ou seja, cerca de 9.999 pessoas a cada milhão diagnosticado terão falsos positivos. Em um país praticamente livre da doença, como o nosso, o total de falsos positivos pode chegar a dez mil. Ou seja, a proporção de falsos positivos seria maior do que a de falsos negativos. Uma coisa é a probabilidade de o teste dizer que você está com o vírus, quando realmente está. Outra é a probabilidade de você estar com o vírus, quando o teste disser que está. São dois números calculados de formas diferentes. Você precisaria conhecer um pouco sobre probabilidades, antes de emitir julgamentos precipitados. Os mais precisos testes freqüentemente fornecem falsos positivos em populações saudáveis nas quais a doença é muito rara. Por mais preciso que seja um teste, ele é muito mais confiável em populações de risco do que em populações saudáveis, como é o caso do Brasil, que teve apenas um registro oficial de pessoa contaminada. De maneira análoga, testemunhos idôneos sobre eventos raros são muito menos confiáveis do que testemunhos sobre fenômenos comuns, ainda que fornecidos pelas mesmas pessoas; assim como as chances de um profissional do tiro se destacar entre amigos não-profissionais são muito maiores do que as chances de ele se destacar entre outros profissionais do tiro. Margens de erro em testemunhos de cidadãos idôneos jamais podem ser avaliadas separadamente da probabilidade de real ocorrência do evento testemunhado. Por isso, se um indivíduo confiável diz ter avistado no céu uma nave extraterrestre ou a Virgem Maria, fica muito difícil considerar tal testemunho como realmente confiável, uma vez que não se conhece a probabilidade de real ocorrência de eventos como esses. Isso é muito diferente da confiabilidade de um testemunho de assalto ou assassinato, eventos cujas probabilidades de ocorrência são mais ou menos conhecidas. Margens de erro em diagnósticos jamais podem ser avaliadas separadamente da probabilidade de incidência real de doenças. Você, Sofia, foi vítima de um falso positivo em um país no qual a tal da gripe é raríssima.”

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Se Sofia entendeu os argumentos de Pascal, deixo isso a cargo do leitor. Para tanto basta se colocar no lugar dela. Ou seja, coloco o leitor no papel de Sofia.

Se Sofia pensar somente em termos de probabilidade de erro de diagnóstico de apenas 1%, ela pode ainda insistir que as chances de erro de exame laboratorial extrapolam o fato de que justamente com ela o exame foi falhar. Como no Brasil não há acompanhamento estatístico sistemático de erros médicos e laboratoriais, qualquer sensação de desconforto pode facilmente se transformar em paranóia. No entanto, se Sofia perceber que teoria de probabilidades não é um luxo intelectual, mas que encontra aplicações fundamentais na vida diária de todos nós, ela poderá compreender que um processo judicial com base em seu raciocínio anterior só pode causar danos a todos os envolvidos.

Em teoria das decisões sabe-se que a boa decisão não é aquela que gera bons resultados, mas aquela que foi tomada em bases racionais. Se uma loteria, por exemplo, paga um milhão de reais para cada real investido, mas com probabilidades de acerto de apenas uma a cada cinqüenta milhões de tentativas, percebe-se que jogar em loteria não é uma boa decisão. Mesmo que um apostador ganhe o tão sonhado prêmio, ainda foi uma decisão ruim. E, na prática, todos os apostadores tomam decisões ruins. Daí o ditado “a casa sempre vence.” Ou seja, o fato de ocasionalmente haver ganhadores de prêmios de loterias apenas alimenta o sonho irracional de ficar milionário do dia para a noite, fazendo com que milhões de apostadores tomem decisões com bases emocionais e não racionais. Um governo federal que alimente tal sistema não apenas está iludindo seu próprio povo, como está em franco desencontro àquilo que deveria ser ensinado nas escolas de maneira ostensiva e competente: teoria de probabilidades.

Para o leitor deste blog que estiver interessado em uma abordagem suave, mas altamente precisa e profunda do uso de probabilidades no dia-a-dia, recomendo o livro de Ian Hacking, An Introduction to Probability and Inductive Logic (Cambridge, Cambridge University Press, 2001).

Teoria de probabilidades é assunto extremamente complicado e demanda conhecimento profundo de matemática. No entanto, a obra de Hacking consegue viabilizar noções elementares, úteis e aprofundadas mesmo para o leitor com pouca familiaridade em matemática. A transposição competente de teoria de probabilidades para o ensino médio ainda não aconteceu de forma sistemática em nosso país. No entanto, noções precisas e úteis sobre probabilidades deveriam ser lecionadas em nossas escolas para que tenhamos chances de contar com novas gerações de cidadãos mais independentes, críticos e capazes de construir um país melhor.

2 comentários:

  1. Há pouco tempo eu estava em uma casa lotérica ouvindo a conversa alheia involuntáriamente. Um sujeito apostando na mega sena estava contando para o amigo que é importante saber matemática pra apostar, ele mesmo só jogava números ímpares, pois como metade dos números são ímpares, ele teria 50% de chance a mais que as outras pessoas de ficar rico. Dá pra acreditar?

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  2. Nossa, Aline. Essa foi inesperada. Adoro comentários inesperados. Como agora estou envolvido na concepção de roteiros para cinema, preciso lembrar dessa para colocar na fala de alguém. Genial!

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